Como
emenda do 'orçamento secreto' apoiada por Hugo Motta foi parar em obra com
produto de trabalho escravo
Aos 57
anos, Cláudio (nome fictício) relata já ter acumulado quase meio século de
experiência no ofício de cortar pedras.
Ele diz
ter trabalhado a vida toda, desde a infância, em diversos Estados, depois de
aprender o ofício com os pais, até que chegou à Taperoá, no sertão da Paraíba, onde conseguiu
trabalho em uma pedreira na zona rural.
Sem ter
tido treinamento de empregadores, Cláudio não usava equipamentos de proteção,
embora a atividade seja arriscada e inclua até mesmo o uso de explosivos. O
objetivo final do ramo é produzir pedras do tipo paralelepípedo para serem
usadas, principalmente, em obras de calçamento.
Quando
não estava sob o sol cortando pedras, o trabalhador ficava alojado em um
barraco improvisado no local, com chão de terra, estrutura de madeira rústica e
coberta por lona e pedaços de plástico.
Depois
de trabalhar nove horas por dia, dormia sobre pedaços de espuma velha ou bancos
de carro improvisados como camas. Pertences dele e dos colegas ficavam
espalhados pelo chão.
Os
alimentos que comia eram mantidos ao ar livre e o preparo era feito em uma
estrutura de pedra improvisada, no chão, com fogo e lenha.
Como
não havia banheiro, fazia suas necessidades no mato. Já o banho era tomado em
poças formadas pela chuva sobre as pedras.
As
condições de trabalho a que ele foi submetido, registradas por escrito, foram
consideradas degradantes e seu empregador foi autuado pelo Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE), em junho de 2024, por manter trabalhadores em
condições análogas à escravidão. Cláudio e outros três trabalhadores foram
resgatados.
As
pedras cortadas por ele integraram uma ponta da cadeia produtiva do que viria a
ser chamado de maior projeto de pavimentação da história de uma cidade vizinha
à pedreira, Juazeirinho, também na Paraíba, liderado pela prefeita da cidade e
apoiado por um parlamentar que hoje é uma das mais poderosas autoridades do
país: o deputado federal e presidente da Câmara dos Deputados Hugo Motta
(Republicanos-PB).
·
De onde vieram os recursos?
A BBC
News Brasil identificou que a origem política do recurso que bancou o contrato
com a empresa - a que comprou as pedras produzidas por trabalhadores em
condições análogas à escravidão - está vinculada a dois parlamentares do mesmo
Estado.
No
Portal da Transparência o dinheiro é atribuído a uma emenda de relator, nome
técnico do que ficou popularmente conhecido por orçamento secreto, dispositivo
parte do Orçamento-Geral da União, cuja destinação é escolhida por
parlamentares sem transparência, a partir de acordos políticos e cuja
publicidade fica a critério do próprio parlamentar.
Depois
de determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso passou a
divulgar o nome de quem apoiou a indicação dessas emendas do relator, a partir
de informações divulgadas pelos próprios parlamentares.
Em
resposta enviada por meio da Lei de Acesso à Informação à BBC News Brasil, a
Câmara dos Deputados forneceu dois ofícios que pedem a liberação de recursos
desta emenda a Juazeirinho, enviados pelo senador Veneziano Vital do Rego
(MDB-PB), em 2024, e também pelo deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB),
já como presidente da Câmara, em abril deste ano.
A
instituição recomendou que a reportagem buscasse os parlamentares para maiores
esclarecimentos, mas nenhum dos dois respondeu às mensagens por WhatsApp e
e-mail. O espaço segue aberto.
A
Prefeitura de Juazeirinho (PB), que recebeu os recursos, não cita o senador e
diz que pediu os recursos diretamente a Motta, por meio de um ofício
institucional.
O
município disse ainda que a natureza técnica da emenda "não invalida a
origem política da articulação, reconhecida publicamente pelo município e pelo
próprio deputado Hugo Motta."
A prefeita
da cidade, Anna Virginia Matias (Republicanos-PB), deu entrevistas e até
homenageou em cerimônia os esforços do deputado, com direito a uma placa com o
nome das ruas pavimentadas e o dele.
O apoio
via emendas, em casos como este, funcionava assim: a prefeitura pede os
recursos e o parlamentar faz a indicação ao orçamento (pode haver ou não
apresentação de um ofício e há casos em que o acordo é apenas verbal).
O
governo municipal, então, precisa apresentar um projeto que será avaliado pela
Caixa Econômica Federal. Só depois de liberado é que o governo municipal pode
fazer licitação e selecionar a empresa que fará a obra, a partir da melhor
proposta.
Daí em
diante, a responsabilidade pela fiscalização da obra é do município (e
posteriormente dos tribunais de contas) — não da Caixa, nem do parlamentar, que
apenas indica o destino dos recursos.
·
'Fazem uma mansão com o lucro que ganham no nosso suor'
Quando
abordados pelos auditores, no ano passado, os trabalhadores disseram que o
responsável pela pedreira era um homem chamado Haroldo. O auto de infração foi
lavrado em seu nome. O nome dele também foi inserido na lista suja do trabalho
escravo, um cadastro mantido pelo governo federal.
Haroldo
dos Santos Alves, 59 anos, era um intermediário da cadeia de produção e afirma
que nada lucrou com o empreendimento. Antes da entrevista, quem trocou
mensagens com a reportagem por WhatsApp foi sua esposa – ele disse que não
sabia escrever e que não completou o ensino fundamental.
A maior
parte do lucro das vendas das pedras, segundo ele afirmou à BBC News Brasil, ia
para a empresa que as aplicava em obras municipais, a Construtora Realizar,
cujo nome não foi incluído na lista suja.
"Tem
quase cinquenta anos que eu mexo com pedra e eu não tenho riqueza. O senhor
[repórter] entrou na minha casa lá, é humilde."
Quase
um ano se passou desde a operação, que embargou a pedreira, e Haroldo disse não
ter conseguido regularizar a pedreira nem arrumar outros trabalhos, só bicos.
"Moro de aluguel e vivo com menos de um salário [mínimo]."
Ele
afirma que não se via como patrão dos trabalhadores resgatados e que trabalhou
a vida toda no mesmo ofício.
"Somos
cortadores de pedra. Cada cabra trabalha por si. Mas quando o pessoal [da
fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego] chegou aqui [na pedreira],
usou o nome da pessoa que estava aqui", diz ele, que considera o desfecho
da operação injusto: diz que outros enriqueceram às suas custas.
"Olha
o lado da gente pequeno. Vejo o cabra hoje, dentro de um ano, dois anos,
levanta uma mansão. Eu tiro 10 milhas de pedra [10 mil pedras], com essas 10
milhas o cabra faz uma mansão com o lucro que ganha no nosso suor. Nós só
ganhamos a feira. De quem é aquele apartamento? Daquele engenheiro, daquele
prefeito. E nós, vamos ficar onde?"
A
construtora citada, Realizar, tem um contrato com a prefeitura de Juazeirinho
no valor de R$ 1,9 milhão, de recursos de um convênio com a Caixa Econômica
Federal, para obras de calçamento na cidade.
Embora
Haroldo tenha sido responsabilizado pelo dano causado aos trabalhadores, a
rescisão foi paga por um advogado e representante da construtora Realizar,
Jorge Ramos – cerca de R$ 32 mil ao todo. A empresa não foi incluída na lista
suja.
A
Prefeitura de Juazeirinho, que contratou a empresa, também foi citada no
documento da fiscalização, mas não responsabilizada.
"Importante
frisar que toda a destinação do fruto do trabalho da mão de obra encontrada na
pedreira era em benefício final à administração pública, que deveria atuar de
maneira ética e transparente, assegurando о cumprimento das leis trabalhistas e
garantindo condições dignas aos trabalhadores envolvidos em todas as etapas da
cadeia produtiva."
Esta
menção não chegou ao conhecimento do governo municipal. A prefeita disse à BBC
News Brasil que só soube do caso após contato da reportagem, em março deste
ano. A operação que resgatou os trabalhadores foi em junho de 2024.
·
'Infelizmente é a situação que a região tem como
disponível', diz representante de construtora
Jorge
Ramos, advogado e representante da Construtora Realizar, disse à BBC News
Brasil que, apesar de a empresa ter sido a única incluída na infração do
Ministério do Trabalho e Emprego, "tinha diversas outras empresas que
poderiam ter sido chamadas", sem citar nomes.
O
relatório do ministério, baseado em relatos do empregador Haroldo e dos
trabalhadores resgatados, diz que toda a produção da pedreira "estava
sendo destinada à pavimentação de ruas na cidade de Juazeirinho" e que a
construtora representada por Jorge Ramos era "o destinatário
principal."
Ele
acredita que a responsabilidade sobre eventuais irregularidades deveria se
estender a quem contrata o serviço.
"Se
você tem um contrato vinculado com município, Estado ou com governo federal e
todas essas entidades são cientes de que para execução de via com
paralelepípedo vai ter que ter a retirada na pedreira, por que isso não é
fiscalizado desde cima pra baixo, e não de baixo pra cima?"
Ramos
admitiu, no entanto, que a realidade dessas pedreiras "é realmente algo
duro de se ver". Para Ramos, um dos motivos pelos quais não há
fiscalização da origem das pedras é o valor dos editais, que considera baixo.
"Os
preços para empresas são horríveis, consequentemente a compra também vai ser
horrível e quem paga mais de fato é o trabalhador que está lá tirando. A
empresa não concorda com esse tipo de situação, mas infelizmente é a situação
que a região tem como disponível."
·
O apoio via emendas parlamentares
Juazeirinho
é um município com pouco mais de 17 mil habitantes situado na região de Campina
Grande, na Paraíba.
A atual
prefeita, Anna Virginia Matias (Republicanos), em segundo mandato, vem de uma
família tradicional da política na cidade. Seu tio, Bevilacqua Matias, já foi
prefeito. Seu avô, Genival Matias de Oliveira, foi juiz e vice-prefeito. Seu
pai, Genival Matias Filho, foi deputado estadual. Na última eleição à
Prefeitura, de 2024, a disputa também foi em família, contra a candidata
Luciana Matias, que é esposa de seu tio.
Foi a
partir de Anna Virginia à frente da prefeitura que se consolidou uma parceria
política com o deputado federal Hugo Motta, também da Paraíba e com raízes na
região: seu pai, Narbor Wanderley, é prefeito de Patos, que fica a menos de
100km de Juazeirinho.
A dupla
se aproximou ainda em 2021 e, desde então, o deputado federal tem destinado uma
série de emendas parlamentares para o município, que vão de obras de
pavimentação a investimentos em saúde, sempre com a divulgação desses apoios
nas redes sociais.
Quando
Motta foi eleito à presidente da Câmara dos Deputados, em fevereiro de 2025,
Anna Virgínia não economizou elogios: "Hugo Motta sempre foi um grande
deputado, um parceiro essencial da nossa cidade, alguém que nunca mediu
esforços para levar investimentos e melhorias para o nosso povo. Agora, como
presidente da Câmara dos Deputados, tenho certeza de que ele fará ainda mais,
com sua habilidade de diálogo, compromisso e olhar atento para os
municípios."
A troca
de elogios é mútua.
O
deputado foi a Juazeirinho, em agosto de 2024, para apoiar a campanha de Anna
Virginia Matias à reeleição. "Ter uma prefeita como você em nosso partido
(Republicanos) é motivo de alegria, de orgulho, porque você é uma das melhores
prefeitas de toda a Paraíba."
No
mesmo discurso de apoio à prefeita, Motta destacou que ela "tem feito o
maior programa de calçamento de ruas" e deixou uma promessa no ar:
"até o final do seu segundo mandato, nós vamos deixar Juazeirinho 100%
calçada, acabando com a poeira, com a lama na porta das pessoas."
·
Votos de deputado dispararam na cidade após parceria
Em um
palanque na campanha de 2024, Anna Virgínia destacou o empenho de Motta com o
município. "O deputado Hugo Motta, mesmo sem ser votado nesse município,
desde 2021 vem mostrando o seu trabalho. Em 2022, foi votado como o deputado
federal mais votado da história desse município. Isso foi graças ao trabalho
nosso e dele, que tanto tem contribuído para esse município. Todas essas ruas
calçadas foi emendas do deputado Hugo Motta para esse município."
Os
votos na cidade atestam que a popularidade dele cresceu: quando foi eleito pela
primeira vez como deputado federal, em 2010, Hugo Motta teve apenas 17 votos em
Juazeirinho. Em 2022, mais de 4,5 mil, segundo dados abertos do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE).
Ainda
em 2021, em novembro, Motta deu demonstração pública dessa parceria. Ele
visitou a cidade e divulgou uma promessa, compartilhada em suas redes sociais,
de levar investimentos de R$ 2 milhões "para o maior programa de
pavimentação da história da cidade", além de outras obras e projetos.
No ano
seguinte, 2022, a cidade conseguiria um contrato de repasse com a Caixa, de R$
1,9 milhão, para pavimentação de diversas ruas, fruto de emenda parlamentar.
Foi com
esse recurso que a prefeitura contratou a construtora responsável pela obra,
cuja cadeia de suprimentos incluiu a pedreira autuada por trabalho análogo à
escravidão.
A
gestão municipal de Juazeirinho disse à reportagem que o recurso foi solicitado
por meio de um "ofício institucional" ao deputado.
·
Deputado foi homenageado por obras de calçamento
Hugo
Motta não falou diretamente do assunto, mas compartilhou nas redes sociais um
vídeo de quando foi homenageado pessoalmente, no fim de 2023, com o título de
cidadão do município de Juazeirinho, com destaque especial às obras de
pavimentação de ruas.
A
cerimônia contou com um momento em que foi revelada uma placa com o nome de
ruas com entrega dessas obras, incluindo vias que constam do contrato com a
construtora Realizar, o mesmo citado no relatório do Ministério do Trabalho e
Emprego.
No pé
da placa aparecem o nome da prefeita, de sua vice, do secretário de
infraestrutura da cidade e o de Motta.
Motta
foi procurado, mas não comentou o caso, apesar de diversas tentativas.
Veneziano Vital do Rego foi procurado por telefone e por e-mail, mas não
respondeu.
Fonte:
BBC News Brasil

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