Por
que o Discord tem sido terreno fértil na internet para crimes de extremismo
Duzentas
pessoas assistiam ao vivo no Discord a uma das cenas que até hoje está na
cabeça do delegado Alesandro Barreto. Um homem segurava um cachorro com as
patas e o focinho amarrados, enquanto mensagens pipocavam em tempo real pedindo
mais intensidade na crueldade. No fim, o animal foi morto a tiros.
"O
cachorro gritando e todo mundo assistindo e falando como se fosse um jogo, como
se fosse para passar de fase", diz Barreto, que é coordenador-geral do
Ciberlab, órgão do Ministério da Justiça de combate aos crimes no ambiente
digital.
Nos
últimos dias, o Ciberlab ajudou a Polícia do Rio de Janeiro na operação contra
um grupo que teria planejado no Discord um ataque contra adolescentes e pessoas
LGBTs no show da cantora Lady Gaga, na praia de Copacabana.
Essa
não foi a primeira vez que o Discord apareceu como um elemento central em
tramas de ataques —- concretizados ou não — no Brasil, muitas vezes movidos por
discurso de ódio.
Em
abril, integrantes de comunidades no Discord passaram a ser investigados em
quatro Estados por atentados contra moradores de rua.
Em
novembro de 2024, um homem que usava apelido de "Hitler da Bahia" em
plataformas comoo o Discord foi preso acusado de crimes digitais, como estupro
virtual, incentivo a automutilação, comercialização de imagens de pedofilia e
violência psicológica contra mulher.
Casos
como esses têm chamado a atenção de autoridades e pesquisadores que acompanham
o alcance de discursos extremistas na internet.
"Com
certeza, hoje é a plataforma que mais preocupa", diz Tatiana Azevedo,
pesquisadora independente sobre movimentos extremistas online e responsável por
relatórios usados como base pelo poder público.
"Em
todas as plataformas, a gente tem algum tipo de coisa horrenda. O problema no
Discord é que ele vem produzindo a coisa horrenda ao vivo e, a partir dali,
contamina outras redes."
Levantamento
da Safernet, ONG que se dedica à defesa dos direitos humanos na internet,
mostra que no primeiro trimestre de 2025 o número de denúncias envolvendo o
Discord aumentou 172,5 %, na comparação com o mesmo período do ano passado.
Os
maiores aumentos foram de denúncias dos crimes de apologia e incitação a crimes
contra a vida, homofobia e pornografia infantil (que inclui imagens de abuso e
exploração sexual infantil).
O
delegado Alesandro Barreto, do Ciberlab, relata que, nos últimos anos, o
Discord tem contribuído com as investigações do poder público, incluindo a
produção de seus próprios alertas e parceria de treinamentos com o Ministério
da Justiça.
Apesar
disso, o delegado revela que, entre as denúncias que chegam ao órgão
atualmente, o Discord tem sido utilizado com cada vez mais recorrência,
principalmente em transmissões de cenas cruéis.
"Eu
chego a me questionar o quão cruel uma pessoa pode ser. A realidade é muito
pior que a ficção", diz Barreto, ao comparar o que vê nas investigações
com a série Adolescência, recente sucesso da Netflix.
Durante
a entrevista, o delegado fez questão de usar com recorrência palavras como
"atrocidade", "perverso", "terror" e
"barbaridade".
Em
geral, os ataques são transmitidos ao vivo nas comunidades extremistas. Faz
parte do que membros chamam de "lulz", uma expressão que significa
algo como "rindo alto" (LOL, na sigla em inglês) diante de atos
cruéis.
Na
última quarta-feira (7/5), o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP) entrou
com um pedido ao Ministério Público Federal (MPF) para a suspensão do Discord
no Brasil, alegando preocupações com os casos criminosos recentes em que a
plataforma foi utilizada.
Em nota
à BBC News Brasil, o Discord disse estar preocupado "com a forma
equivocada como a plataforma tem sido retratada como insegura e não apoiamos
qualquer uso indevido dela".
A
plataforma afirma que tem colaborado com autoridades, inclusive na operação
Fake Monster, no show de Lady Gaga, e que mantém política de tolerância zero
para atividades ilegais.
"Nossas
ações proativas às autoridades brasileiras já resultaram em prisões confirmadas
e na prevenção de atividades criminosas", diz o Discord.
• O que faz do Discord um problema
A
proliferação do discurso extremista online não começou no Discord nem se
restringe à plataforma, que surgiu em 2015 como um espaço para jogadores online
compartilharem mensagens, imagens, áudios, memes e transmissões num só lugar.
Todas
as plataformas de mídias digitais são campos férteis para proliferação do
extremismo, desde o finado Orkut ao TikTok, avalia o pesquisador João Victor
Ferreira, da Universidade de Brasília (UnB), autor de uma premiada dissertação
sobre a radicalização política dentro do Discord.
Mas,
segundo Ferreira e outros pesquisadores, a própria construção do Discord o
diferencia de outras plataformas — e permite mais o seu uso para formação de
núcleos extremistas.
A
principal característica é que o Discord preza pela criação de uma comunidade
fechada, chamada de servidores ou "panelas" (no caso de um subgrupo
dentro de um servidor). Ou seja, o conteúdo é produzido para dentro, a um grupo
restrito, e não para viralizar e ganhar alcance, como no Instagram ou TikTok.
O
Discord existe para propiciar que os jogadores tenham melhores experiências
entre seus pares.
"Você
tem ali uma comunidade mais fechada, que cria conteúdo para si mesma, e não uma
comunidade em que as pessoas criam o conteúdo para se tornar famosa, para se
tornar influencer e ganhar dinheiro", explica Ferreira.
O
pesquisador observa há cinco anos alguns canais para entender como funciona a
radicalização naqueles espaços.
Ferreira
percebeu que grupos extremistas enxergam nessa possibilidade de criação de uma
comunidade fechada um terreno fértil para difundir suas ideias.
Em
redes mais abertas, com conteúdo acessível a pessoas que pensam diferente de
você, haveria alguns freios.
"Se
você lançar um conteúdo abertamente masculinista, dizendo que a mulher tem que
ser submissa a você, vai encontrar também muito ímpeto de resistência dentro
dessas plataformas de viralização", diz Ferreira.
Uma
segunda característica do Discord é que, por seu ambiente fechado, há uma
dificuldade ainda maior para uma tutela do Estado, na comparação com outras
plataformas, segundo os pesquisadores.
Além
disso, diz Ferreira, a ideologia gamer por trás da formação do Discord também
tem muita conexão com o libertarianismo e neoliberalismo.
"Eles
são muito avessos a essas estruturas de moderação, entendendo como censura e
cerceamento da liberdade de expressão", explica.
Os
pesquisadores também apontam para uma deficiência na moderação de conteúdo no
Discord, já que os próprios usuários dentro dos canais têm a principal função
de moderar.
"O
Discord terceiriza para o dono do servidor [os canais] a responsabilidade de
moderar. É como se desse para a raposa cuidar do galinheiro. Se é alguém
querendo fazer atrocidades, não podemos esperar que eles moderem nada",
avalia a pesquisadora Tatiana Azevedo, que acompanha a plataforma desde 2023.
"É
um moderador que cultua aquilo que está escrito ali", completa Ferreira.
Para
você participar de um servidor no Discord, não é tão simples quanto seguir uma
página em outras redes. Em geral, não tem como buscar e encontrá-los.
É
preciso receber um link com o convite para participar, que muitas vezes chega
via outras redes sociais.
Alguns
desses canais são abertos a quem quiser participar, e envolvem divulgação de
cultura pop e assuntos de interesse. Com o link na mão, você já esta dentro do
servidor.
O
Discord também tem sido usado por empresas como espaços para trabalho e por
escolas como ferramenta de ensino à distância.
Mas
outros canais, em especial aqueles com ideologias mais extremas, são fechados.
Em muitos deles, além de receber o link, é preciso passar por uma entrevista e
um período de teste até que a pessoa seja aprovada.
Em
alguns grupos, há quase uma estrutura de Estado, com líder, moderadores,
cidadãos de primeira e segunda classe.
"Existe
um processo de cooptação e radicalização", diz Tatiana Azevedo.
A busca
por novos usuários acontece em outras redes, quando os membros percebem
interesse ao divulgarem algum vídeo com conteúdo extremista.
"Esse
conteúdo extremo vicia rapidamente e é como se fosse um convite. Eles vão
querendo cada vez mais, e aí passam a migrar de uma plataforma para
outra", completa Azevedo.
Ou
seja, na avaliação dos pesquisadores, o Discord sozinho não conseguiria ter
esse efeito todo na radicalização
"As
plataformas se retroalimentam", avalia João Victor Ferreira, da UnB.
O
Discord informou à BBC News Brasil que os administradores de servidores e
moderadores voluntários não podem ir contra as diretrizes da plataforma e
precisam manter "política de tolerância zero para atividades
ilegais".
A
plataforma disse ainda que contratou uma equipe dedicada ao mercado brasileiro,
incluindo "implantação de equipes especializadas em identificar e remover
conteúdos nocivos específicos da região".
Para a
pesquisadora Tatiana Azevedo, também contribui para os problemas no Discord o
fato de que as situações mais graves ocorrem nas transmissões ao vivo nesses
grupos fechados, com ainda menos controle. Uma vez encerradas, elas não ficam
salvas para apoiar investigações.
Questionado
sobre o armazenamento dessas transmissões potencialmente criminosas, o Discord
não se manifestou.
Fonte:
BBC News Brasil

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