Como começou rivalidade entre EUA e China,
acirrada por guerra comercial de Trump
A
escalada da guerra comercial entre Estados Unidos e China nas últimas
semanas é a demonstração mais recente da crescente rivalidade entre os dois
países.
O
anúncio no início de abril pelo presidente americano, Donald Trump, que seriam
aplicadas tarifas de 34% sobre produtos chineses gerou uma retaliação em igual
medida de Pequim.
Isso
desencadeou novos golpes e contra-golpes de ambos os lados que resultaram até
agora em tarifas americanas que somam 145% contra a China e de tarifas de 125%
sobre produtos americanos importados pela China.
Os
anúncios geraram instabilidade nas bolsas de valores e temores de recessão e impactos
negativos na economia global.
Poucos
dias depois, Trump anunciou uma pausa de 90 dias nas tarifas
adicionais a vários outros países. A China, porém, não foi poupada.
O
governo chinês descreveu as ações de Washington como "bullying econômico".
Em comunicado, o Conselho de Estado chinês disse que "se os EUA insistirem
em prejudicar substancialmente os interesses da China, a China retaliará
firmemente e lutará até o fim".
As duas
maiores economias do mundo têm uma relação complexa e uma rivalidade que
abrange não somente competição econômica, mas também tensões geopolíticas e
diferenças ideológicas.
Ao
longo das décadas, essa relação foi marcada tanto por períodos de cooperação
quanto de competição estratégica.
·
Vitória comunista
A
origem dessa dinâmica remonta a 1949, com a fundação da República Popular da
China por Mao Tsé-Tung, após a vitória comunista sobre as forças nacionalistas
de Chiang Kai-shek na guerra civil chinesa.
"A
China e os Estados Unidos foram aliados na [Segunda] Guerra [Mundial], que
terminou em 1945 com a derrota do Japão imperial", diz à BBC News Brasil a
cientista política Mary Gallagher, especialista em política chinesa e
professora da Universidade de Notre Dame.
"No
entanto, a própria China estava muito dividida internamente entre o partido
governante da época [os nacionalistas, ou Kuomintang] e os comunistas. Quase
imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, houve uma guerra civil que durou
até 1949, vencida pelos comunistas", observa Gallagher.
Os EUA
se recusaram a reconhecer o novo governo comunista em Pequim. Em vez disso,
continuaram a apoiar o governo nacionalista, que havia perdido a guerra civil e
fugido para a ilha de Taiwan.
A
cientista política Ann Chih Lin, especialista em política chinesa e professora
da Universidade de Michigan, observa que, se considerarmos a longa relação
entre os dois países antes da guerra civil, a posição dos EUA em 1949 foi não
apenas de rejeitar o comunismo, mas de manter o apoio ao governo nacionalista,
com o qual já tinha uma relação.
"Se
entendermos que os EUA [já] estavam orientados para o governo vigente, fica
fácil entender o que aconteceu em 1949 não tanto como uma recusa em reconhecer
a República Popular da China, mas sim que os EUA já tinham laços com o governo
nacionalista de Chiang Kai-shek", diz Lin à BBC News Brasil.
Segundo
Lin, além disso, a rejeição dos EUA não era motivada especificamente por medo
do comunismo chinês, mas direcionada principalmente à União Soviética, com o
entendimento de que a China era um parceiro menor que poderia potencialmente
apoiar as ambições soviéticas (no contexto da Guerra Fria).
·
Guerra da Coreia
A
recusa dos EUA em reconhecer o governo comunista em Pequim deu início a um
período de mais de 20 anos de interação limitada com a China continental, sem
laços diplomáticos.
A
Guerra da Coreia (1950-1953) aprofundou o antagonismo entre os dois países. Os
chineses apoiaram o norte (que tinha apoio soviético), enquanto os EUA e a ONU
defenderam as forças do sul.
"À
medida que a Guerra Fria se intensificou, ficou cada vez mais difícil para os
EUA manterem um relacionamento com a República Popular da China", ressalta
Gallagher.
"Do
fim da Guerra da Coreia, em 1953, até 1979, os EUA e a República Popular da
China não tiveram relações diplomáticas, não tiveram muito intercâmbio
econômico, não tiveram muito intercâmbio entre povos. Por um longo período de
tempo, foi um relacionamento muito ruim", salienta Gallagher.
A
década de 1950 foi marcada ainda por crises no Estreito de Taiwan. Diante de
ações militares da China na região e do compromisso dos EUA em defender Taiwan,
as duas nações chegaram à beira de um conflito, em plena Guerra Fria.
Em
1959, após a repressão da China a uma revolta no Tibete, que deixou milhares de
mortos e levou à fuga do Dalai Lama para a Índia, os EUA condenaram os abusos
de direitos humanos e apoiaram a resistência tibetana.
Cinco
anos depois, em outubro de 1964, em meio a tensões entre EUA e China durante a
Guerra do Vietnã, os chineses realizaram seu primeiro teste de uma bomba
atômica.
·
Diplomacia do pingue-pongue
No fim
da década de 1960, porém, havia uma crescente divisão entre China e União
Soviética, com diferenças ideológicas e sobre segurança. Em 1969, isso culminou
em confrontos na fronteira.
Esse
cenário ofereceu uma oportunidade de realinhamento estratégico nas relações
entre Pequim e Washington, para contrabalançar a influência soviética.
O
primeiro sinal de aproximação ocorreu em 1971, quando uma delegação de
jogadores de tênis de mesa dos EUA foi convidada a visitar a China, país que
até então estava fechado aos americanos.
O
episódio ficou conhecido como "diplomacia do pingue-pongue" e abriu
caminho para contatos diplomáticos de alto nível. Em julho daquele ano, o então
conselheiro de Segurança Nacional americano, Henry Kissinger, fez uma viagem
secreta à China.
Em
1972, o então presidente americano Richard Nixon fez sua visita histórica à
China, quando se reuniu com Mao e com o primeiro-ministro chinês, Zhou Enlai. O
Comunicado de Xangai, assinado durante a visita, lançou as bases para a
normalização das relações entre os dois países.
O
reconhecimento diplomático mútuo veio em 1979. Os EUA, sob a liderança de Jimmy
Carter, passaram a reconhecer a posição de Pequim de que há um único Estado
chinês, o princípio de "uma só China".
Ao
mesmo tempo, os EUA mantiveram relações não oficiais, comerciais e culturais
com Taiwan e ambiguidade estratégica em relação à sua defesa.
Pouco
depois, Deng Xiaoping, que liderava reformas econômicas na China, viajou aos
EUA, em uma visita que simbolizou a nova era nas relações entre os dois países.
·
Política de engajamento
"De
1979, quando as relações foram formalmente restabelecidas, até, eu diria, 2014,
os EUA adotaram uma chamada política de engajamento com a República Popular da
China, para ajudar a China a se tornar uma sociedade e economia mais abertas e
globalizadas. E isso correu muito bem durante muitos anos", observa
Gallagher.
Durante
essas décadas, houve alguns períodos de tensão. Em 1989, a repressão violenta
do governo chinês às manifestações por reformas democráticas, no que ficou
conhecido como o Massacre da Praça da Paz Celestial, levou à condenação
internacional, incluindo sanções dos EUA e suspensão de vendas militares.
Em
1999, bombas lançadas por um avião americano atingiram a embaixada chinesa em
Belgrado, matando três jornalistas. Apesar de os EUA terem se desculpado pelo
que disseram ter sido um acidente, houve protestos ao redor da China e contra a
embaixada americana em Pequim.
Em
2001, uma aeronave de reconhecimento americana colidiu com um caça chinês e fez
pouso de emergência na ilha de Hainan, na disputada região do Mar do Sul da
China. Os 24 membros da tripulação americana foram detidos, levando a um
impasse diplomático de vários dias.
A era
pós-Guerra Fria testemunhou uma mistura complexa de integração econômica e
crescente competição estratégica. A política de "engajamento
construtivo", sob o presidente americano Bill Clinton, visava promover
laços econômicos enquanto abordava preocupações com os direitos humanos.
A
entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 impulsionou o
comércio entre os dois países. Cinco anos depois, a China já era o segundo
maior parceiro comercial dos EUA, atrás apenas do Canadá.
·
Segurança
No
entanto, as tensões persistiram sobre questões como direitos humanos,
desequilíbrios comerciais e Taiwan. Os crescentes gastos militares da China e
sua assertividade no Mar do Sul da China também levantaram preocupações nos
EUA.
Em
2007, em viagem à Ásia, o então vice-presidente americano Dick Cheney disse que
o aumento do poderio militar da China "não é consistente" com o
objetivo declarado de uma "ascensão pacífica".
Segundo
a China, o objetivo dos gastos era fornecer melhor treinamento e salários para
seus soldados, para proteger sua segurança nacional e integridade territorial.
"Desde
a retomada das relações entre a República Popular e os EUA, tanto governos
republicanos quanto democratas estiveram muito interessados no sucesso
econômico da China e realmente viam o sucesso econômico da China como uma
contribuição para o sucesso econômico dos EUA", diz Lin.
Segundo
Lin, porém, enquanto ambos os países estavam entusiasmados em encontrar
maneiras de colaborar no âmbito econômico, havia mais preocupação e uma relação
mais cautelosa no que diz respeito à segurança.
"A
principal preocupação dos EUA sempre foi Taiwan e a manutenção da situação
separada de Taiwan. Já para a China, acho que sempre houve preocupação sobre as
bases e relações militares dos EUA com outros países na Ásia e como poderiam
ser usadas contra a China em caso de hostilidades", observa Lin.
·
Competição econômica
A crise
financeira global deixou clara a crescente interdependência entre as duas
economias. Em 2008, a China ultrapassou o Japão e se tornou o maior credor
estrangeiro dos EUA, detendo cerca de US$ 600 bilhões em títulos do Tesouro.
Nos anos seguintes, China e Japão se alternaram nessa posição.
Em
2010, a China se tornou a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos
EUA. No ano seguinte, em meio à crescente influência da China, o governo de
Barack Obama passou a buscar um aumento do engajamento diplomático, econômico e
militar dos EUA na Ásia e na região do Pacífico.
"Quando
o governo Obama assumiu, acho que entenderam que, à medida que a economia
chinesa melhorava, à medida que a China começava a olhar para fora, por meio de
políticas como a Nova Rota da Seda, a China estava
assumindo um papel maior no cenário mundial", diz Lin.
"E
o governo Obama estava preocupado se esse papel no cenário mundial seria
complementar ao relacionamento com os EUA ou se seria competitivo",
ressalta Lin. "A China interpretou essa virada [dos EUA] para a Ásia como
algo, se não hostil, pelo menos uma demonstração de suspeita em relação à
China."
Lin
destaca que, nesse período, os EUA estavam tentando criar um bloco comercial
que excluiria a China. Em resposta, Pequim buscava acordos de segurança que
aproximassem a Ásia da China e a tirariam da órbita dos EUA.
A
mudança estratégica dos EUA incluiu a Parceria Transpacífica, acordo de livre
comércio entre 12 países da região, assinado em 2015. Em 2017, o presidente
Donald Trump retirou os EUA do acordo.
Gallagher
cita duas razões principais para a piora do relacionamento entre os dois
países.
"Uma
é que o tipo de desenvolvimento e transformação econômica na China não
significou uma transformação política. De certa forma, à medida que a China se
tornou mais forte e rica, o Partido Comunista Chinês também se tornou mais
forte e rico", afirma.
"E,
em segundo lugar, as duas economias se tornaram muito mais competitivas, em vez
de complementares", ressalta Gallagher. "A China ficou cada vez mais
sofisticada em sua economia e começou a competir mais diretamente com os
EUA."
·
Ascensão de Xi Jinping
Em
2012, a China passou por sua principal transição de liderança em décadas, com a
ascensão de Xi Jinping. No ano seguinte, o
líder chinês foi recebido nos EUA por Obama, e ambos prometeram um novo modelo
nas relações entre as duas potências e maior cooperação em questões bilaterais
e globais.
Em
2015, os EUA deixaram clara sua oposição à militarização da cadeia de ilhas
artificiais e recifes no Mar do Sul da China, território disputado pela China e
vários outros países da região e importante rota do comércio marítimo global.
Durante
seu primeiro mandato, a partir de 2017, Donald Trump lançou uma guerra
comercial, com tarifas sobre produtos chineses e acusando Pequim de roubo de
propriedade intelectual. A China retaliou com tarifas sobre produtos
americanos.
Em
2018, sinalizando uma linha mais dura em relação à China, o vice Mike Pence
falou em priorizar competição em vez de cooperação e usar tarifas para combater
"agressão econômica".
Pence
também condenou as ações militares no Mar do Sul da China e acusou Pequim de
interferir em eleições americanas. A China negou as acusações e alertou para o
risco de danos nas relações bilaterais.
No ano
seguinte, os EUA acusaram a China de manipular sua moeda. No mesmo ano, o apoio
americano a manifestantes pró-democracia em Hong Kong provocou condenação de
Pequim.
·
Pandemia
A pandemia de covid-19, a partir de 2020,
exacerbou as tensões, com ambos os lados inicialmente trocando acusações sobre
as origens do vírus, antes de mudarem o tom.
Gallagher
destaca que a pandemia causou uma grande mudança na opinião pública americana
em relação à China.
"Acredito
que os americanos se tornaram mais negativos em relação à China nos últimos 10
ou 15 anos, devido à competição econômica. Mas a pandemia realmente focou a
atenção das pessoas na dependência da cadeia de suprimentos em relação à
China", afirma Gallagher.
Ao fim
do primeiro mandato de Trump, a postura mais dura dos EUA estava clara, com
diferentes autoridades condenando supostas práticas comerciais injustas da
China, roubo de propriedade intelectual, as ações militares no Mar do Sul da
China, abusos de direitos humanos em Xinjiang e repressão à autonomia de Hong
Kong.
O então
diretor de Inteligência Nacional, John Ratcliffe, chegou a classificar a China
como "a maior ameaça à América".
Joe
Biden, que assumiu o poder em 2021, ampliou várias das medidas do antecessor,
com tarifas comerciais, sanções contra algumas autoridades chinesas e ampliação
da proibição de investimento americano em empresas chinesas com vínculos
militares. Também manteve a designação dos abusos contra os uigures em Xinjiang
como genocídio, o que é rejeitado por Pequim.
Biden
ressaltou a importância de investir mais em tecnologia e infraestrutura para
competir com a China. Em meio a esforços dos EUA por uma resposta coletiva, a
Otan declarou a China um desafio à segurança.
Em um
encontro virtual entre Biden e Xi em 2021, o líder chinês alertou que os EUA
estavam "brincando com fogo" ao apoiar Taiwan, que a China considera
uma província rebelde e parte de seu território.
A
partir da década de 2000, também houve um fortalecimento gradual das relações
entre China e Rússia, com um alinhamento estratégico. Após a invasão da Rússia
à Ucrânia, em 2022, o governo chinês se recusou a condenar o presidente russo,
Vladimir Putin, pela guerra, e criticou sanções coordenadas pelos EUA.
·
Crescente rivalidade
Embora
tenha havido cooperação em algumas áreas, como as mudanças climáticas, a trajetória geral
do relacionamento entre EUA e China continua sendo de crescente rivalidade.
Para
Gallagher, o status de Taiwan e o apoio
americano à ilha continuam sendo a questão mais importante nas relações
bilaterais, que poderia inclusive levar a um conflito militar.
"[Taiwan]
funciona como um país independente, agora é uma democracia muito vibrante. Mas
a República Popular da China ainda afirma que Taiwan é parte da China e que
deve ser devolvida."
No
entanto, Gallagher ressalta que a competição econômica se tornou cada vez mais
importante e também está relacionada à competição militar.
"À
medida que a China se tornou mais sofisticada economicamente, também permitiu
que suas forças armadas se tornassem muito mais sofisticadas e competitivas em
relação aos EUA."
Lin
considera de certa forma surpreendente que as dificuldades atuais nas relações
bilaterais sejam principalmente econômicas, e não de segurança.
"[No
governo Biden, havia] uma preocupação tanto com a China militarmente quanto com
a economia chinesa, e uma tentativa real de dizer que, basicamente, as questões
de segurança econômica nos Estados Unidos também são questões de segurança
nacional", salienta Lin.
"Mas
essa não tem sido a linguagem do governo Trump", observa, lembrando que o
atual governo tem focado não no poderio militar da China, mas sim na ideia de
que a China tratou os EUA de maneira injusta economicamente.
"Não
tenho certeza se a conexão entre segurança nacional e segurança econômica
impedirá os EUA de fazer um acordo com a China. Por outro lado, o ambiente de
negociação entre China e EUA está bem ruim neste momento", ressalta Lin.
Lin
ressalta que, apesar de abordagens diferentes, há muitas semelhanças entre os
dois países, e tanto a China quanto os EUA veem a si mesmos com um senso de
excepcionalismo.
"Em
muitos aspectos, é claro, são muito diferentes. Mas nesse sentido, ao se
entenderem como excepcionais, acho que a China e os EUA estão absolutamente
alinhados."
Fonte: BBC News Brasil

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