Brasília,
65: Por uma história de quem a ergueu
Brasília
completa 65 anos em 2025. Consolidou-se, no imaginário coletivo nacional, a
ideia de uma cidade criada pela audácia e heroísmo de Juscelino Kubistchek, sob
os traços inovadores e modernistas de Niemeyer e Lúcio Costa. De um Cerrado
longínquo e desabitado, fariam surgir um novo país, voltado para o futuro,
industrializado, menos desigual, abandonando séculos de colonização e
subdesenvolvimento. A nova capital seria a vitrine do Brasil para o mundo.
Segundo Helena Bomeny (2002), essa é a perspectiva historiográfica oficial,
hegemônica e do senso comum sobre Brasília.
Essa
imagem de Brasília que se consolidou entre nós é a de uma cidade sem povo, sem
trabalhadores ou pessoas comuns, despida de contradições e problemas,
petrificada em 21 de abril de 1960. É como se integrasse um fenômeno apartado
do tempo histórico. Pouco ou nada se sabe ou se discute a respeito das
identidades e experiências das dezenas de milhares de trabalhadores que a
construíram, da nova sociedade que se constituiu pós-inauguração, as
continuidades e rupturas ao longo dessas seis décadas. Tampouco se conhecem os
contrastes e a vida atual da região metropolitana com a terceira maior
população (IBGE, 2023), e a segunda maior favela do país (Farias; Montes,
2022).
É uma
versão histórica compartilhada, difundida e comemorada publicamente a cada
aniversário da cidade. Para Vesentini (1993), essa percepção de euforia
patriótica recorrentemente identificada com a inauguração da capital, em 21 de
abril de 1960, não passa de uma “imagem idílica e fantasiosa”. Por isso mesmo,
a história da construção de Brasília pode e deve ser contada afastando-se da
versão hegemônica, oficial e do senso comum. Há décadas, historiadores,
antropólogos, geógrafos, sociólogos e arquitetos têm apresentado contribuições
significativas para o que classificamos de uma História de Brasília desde
baixo. Contrariando o senso comum e a visão oficial ou oficiosa, o foco está
nos operários e nas pessoas comuns, na diversidade de sujeitos históricos responsáveis
por construir a cidade em pouco mais de três anos.
Trata-se
de uma História que rompe o tabu e o silenciamento a respeito das condições de
trabalho e vida no canteiro de obras. Uma História que aborda o conjunto das
“experiências” daqueles trabalhadores, a partir do conceito desenvolvido por E.
P. Thompson (1987). Há farta documentação e pesquisas reveladoras da exploração
do trabalho, das identidades e vivências dos candangos. Por exemplo, boletins
de ocorrência da polícia estão repletos de registros de acidentes e mortes de
trabalhadores.
Há 15
anos pesquisando os boletins de ocorrência policial registrados entre 1957 e o
início da década de 1960, descobrimos registros como o de 13 de abril de 1960.
Uma semana antes da inauguração de Brasília, o operário José Leone de Brito
morreu vítima de um desabamento, durante a construção da capital. Não foi um
fato isolado, como revela a série documental produzida pela polícia que atuava
no canteiro de obras. No entanto, na historiografia hegemônica, os acidentes e
mortes de trabalhadores seguem silenciados.
É
patente a tentativa de apagar as identidades de pelos menos 64 mil pessoas que,
de acordo com o Censo Experimental de 1959, viviam no canteiro de obras (IBGE,
1959). Aquelas dezenas de milhares de trabalhadores eram migrantes, vindos de
todas as regiões do país, mas principalmente de Goiás, Minas Gerais e Bahia.
Eram homens, solteiros, entre 20 e 59 anos de idade, com atividades ligadas à
construção civil, como pedreiros, carpinteiros, marceneiros e eletricistas.
É o
caso de Afonso Pereira de Souza, natural de Santa Quitéria, no Ceará. Tinha 21
anos quando foi contratado pela Construtora Planalto, em novembro de 1958.
Segundo a ficha funcional, foi demitido alguns meses depois, em abril de 1959,
por não ser mais necessária a sua força de trabalho. Essa foi uma causa comum
de demissão, encontrada em muitas fichas funcionais. A justificativa demonstra
o quão instáveis e precárias eram as relações trabalhistas estabelecidas com as
empresas privadas e a Novacap, estatal criada para construir Brasília.
Conforme
Gustavo Lins Ribeiro (2008), o movimento de chegada e saída de trabalhadores
foi ditado pelo ritmo das obras, mas havia mão de obra disponível em excesso.
Foi um dos motivos para o surgimento das primeiras “invasões”, e levou à
criação das primeiras cidades-satélites, para onde foram empurrados os
candangos.
Outro
dado revelado pelo documento é o fato de Afonso muito provavelmente ser
analfabeto ou ter pouca escolaridade, já que não assinou o próprio nome.
Segundo o Censo Experimental de 1959 do IBGE, o total de alfabetizados no
canteiro de obras era de 55,6%, percentual superior à média nacional da época
(IBGE, 1959). Ainda assim, Afonso provavelmente integrava a massa dos outros
45% dos operários migrantes analfabetos que criaram uma cidade do zero.
A
bebida, os bares e a zona do baixo meretrício eram os espaços de sociabilidade
e diversão, nas poucas horas livres de que dispunham os trabalhadores. Mas a
Guarda Especial de Brasília (GEB) exercia controle rígido e reprimia o consumo
de álcool com brutalidade e violência. Os operários tentavam burlar, consumindo
inclusive nos acampamentos e no horário de trabalho. Muitos acabavam presos,
como revela o inestimável conjunto documental dos boletins de ocorrência.
Prisões por vadiagem, comércio ilegal de bebida alcoólica e desordens causadas
pelo consumo excessivo de álcool estão entre as acusações contra aqueles que
não se adequavam à disciplina exigida no canteiro de obras.
O caso
do pedreiro baiano João de Souza e Silva é um dos muitos registros de
embriaguez. Ele foi preso em janeiro de 1959, sob a acusação de estado de
embriaguez e, como consequência, ter provocado distúrbios nos alojamentos das
obras do IAPB, o antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários
(IAPB). A documentação revela que se repetia, em Brasília, a tentativa de
controle social de trabalhadores observada ao longo da história, em diferentes
momentos e lugares.
As
condições de exploração do trabalho às quais os operários eram submetidos
também são reveladas pela documentação. No recibo de pagamento do servente de
pedreiro Cícero Marques Araújo consta que ele cumpriu 47 horas de jornada, de
29 a 31 de janeiro de 1959. Foram 32 horas normais e 15 horas extras. Numa
conta simples, dividindo as 32 horas pelos 3 dias, ele cumpriu 10,6 horas
regulares de jornada diária. Se dividirmos as 15 horas extras discriminadas no
recibo, pelos mesmos 3 dias, somam-se mais 5 horas diárias. Ou seja, Cícero
cumpriu, em cada um desses três dias, 15 horas de trabalho na construção de
Brasília. O recebimento dessas horas extras para aumentar o salário certamente
foi o principal atrativo de natureza econômica da migração (Ribeiro, 2008).
As
horas extras podiam se estender em jornadas de dois, três ou mais dias seguidos
de trabalho. As chamadas “viradas” podiam ser de vinte e quatro horas ou mais,
e ocorrer até três vezes por semana, incluindo domingos e feriados. Elas
ajudaram a estabelecer o que ficou conhecido como “ritmo Brasília”: a
necessidade de acelerar as obras para entregá-las a tempo da inauguração, em 21
de abril de 1960. Essa imposição ditou o volume de horas extras e foi
responsável pelo aumento dos salários. Como consequência, ampliou
consideravelmente os riscos e o número de acidentes e mortes, especialmente a
partir de 1959.
Não é
um acaso, portanto, que essa História de Brasília desde baixo seja
negligenciada ou esteja silenciada também em livros didáticos de História. E
não nos referimos a manuais escolares antigos, dos tempos da ditadura. São as
coleções recentes, atualizadas segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
avaliadas e aprovadas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático
(PNLD).
Por
exemplo, a coleção História Sociedade & Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior
(2022), para o 9º ano do Ensino Fundamental. Está entre os manuais escolares de
referência e mais utilizados na educação básica, em escolas públicas e
privadas. E o que ele apresenta sobre os operários que construíram Brasília?
Segundo
o autor, os candangos eram “milhares de pessoas humildes e desconhecidas,
vindas de vários cantos do país”, que trabalharam “muito”, durante um curto
período (Boulos Júnior, 2022, p.216). Não há qualquer menção às péssimas
condições de trabalho, moradia, higiene, alimentação, às identidades reais
daquelas pessoas. O livro simplesmente apaga qualquer traço de identidade,
silencia a respeito da exploração da mão-de-obra, da exclusão social e espacial
dos candangos. O autor segue a historiografia oficial e do senso comum, ao
“obscurecer a atuação dos trabalhadores, e o grau com que contribuíram com
esforços conscientes, no fazer-se da história” (Thompson, 1987, p. 13).
E como
um corolário a repetir outros livros didáticos e a reforçar o ensino
tradicional de História, a única fotografia apresentada serve apenas para
ilustrar o texto. A foto clássica, de Marcel Gautherot, mostra trabalhadores
pendurados durante a concretagem do Congresso Nacional. O livro não enseja
qualquer problematização ou atividade a partir dessa imagem. Há silenciamento
sobre o que a historiografia, outros documentos, e a própria fotografia
utilizada revelam, contrariando pressupostos da didática e do uso de fontes
documentais no ensino de História. A imagem é apenas um acessório estético.
Passados
65 anos da inauguração de Brasília, é possível estabelecer alguns consensos
históricos e historiográficos. Um deles é o silêncio reiterado sobre a decisiva
participação popular para construir a capital. No entanto, há fartura de fontes
documentais e conhecimento suficiente para revisá-la e estabelecer uma História
de Brasília desde baixo. Mas como transpor a barreira da “vontade política”, a
mesma usada como justificativa para a transferência da capital, e que tanto
domina as relações de poder em Brasília, e estabelecer novas perspectivas
historiográficas e de ensino desse tema?
Certamente
existe o receio, de parte da sociedade, de gerar frustração coletiva, ao
constatar que a cidade utópica, imaginada há séculos, não foi fruto apenas da
“vontade política” de JK. Seria a desconstrução de um mito e o rebaixamento de
um dos heróis políticos nacionais. Mas o fato é que Brasília foi construída com
a participação fundamental de trabalhadores e pessoas comuns, e desde então há
um processo de silenciamento desses sujeitos históricos.
Seguiremos
homenageando o heroísmo de JK, em detrimento do papel relevante desempenhado
por José Leone de Brito, Cícero Marques, João de Souza e Silva, Afonso Pereira
de Souza e dezenas de milhares de operários e pessoas comuns que ergueram a
capital? Mergulharemos no presente da capital, na favela do Sol Nascente, para
reconstruir as origens desse passado marcado por exclusão social, urbana e de
memória? Ou caminharemos pela Praça dos Três Poderes, de mãos dadas com o senso
comum e as vendas dos olhos de Têmis, reforçando a fantasiosa imagem de capital
da esperança sem povo?
Fonte:
Outras Palavras

Nenhum comentário:
Postar um comentário