Brasileiros
em universidades dos EUA relatam medo sob Trump
Formado
na área de Ciências Sociais, Josué M. mudou-se
para os Estados Unidos para fazer um
doutorado numa prestigiada universidade do centro-oeste americano. Ele chegou
ao país em 2023, no penúltimo ano do governo Joe Biden, e viu na prática
como as políticas de incentivo à pesquisa acadêmica e de financiamento das
universidades mudaram a partir deste ano, com a volta de Donald Trump à
presidência.
"A gente convive diariamente com essa energia negativa que paira sobre as
cidades universitárias. Estamos num ambiente cheio de incertezas", relata
ele.
"Eu
gostaria de ter informações concretas, mesmo que fossem notícias ruins. Queria
saber se terei salário no próximo ano, ou se serei deportado. Se meu visto for revogado,
tudo bem, volto para o Brasil com um enorme
sorriso na cara. Mas o problema é essa incerteza", complementa o
estudante.
Josué
M. foi um dos poucos que aceitou compartilhar um relato para esta reportagem.
Ao
longo das últimas semanas, a BBC News Brasil tentou marcar entrevistas com mais
de uma dezena de estudantes, professores e pesquisadores brasileiros que
trabalham nos Estados Unidos. Os contatos foram feitos via WhatsApp — os
próprios pesquisadores orientaram que nenhuma mensagem ou convite para
entrevista fosse enviado diretamente pelo e-mail institucional, vinculado à
universidade, pois eles temem que as caixas de entrada sejam monitoradas. Mesmo
no aplicativo de troca de mensagens, a maioria declinou o convite para a
entrevista. O principal argumento usado para a recusa foi o risco de
represálias ou de uma revogação do visto americano em razão de eventuais
críticas ou opiniões em relação às políticas de educação superior implementadas
nos últimos meses pelo governo Trump. "Estou legalizado aqui, tenho
emprego estável como docente e estou preocupado", justificou um dos
indivíduos contactados pela reportagem, que pediu para não ser identificado.
Outro
opinou que "vivemos tempos sombrios" e disse ter sido
"aconselhado a não discutir" publicamente sobre o assunto.
Mesmo
entre os pesquisadores que aceitaram falar, houve um pedido unânime: todos não
quiseram ter seus nomes, cargos ou vínculos com universidades e centros de
estudos identificados ao longo do texto. O clima de medo ficou evidente nas
conversas, que aconteceram antes de a Casa Branca escalar a ofensiva contra a
universidade Harvard nesta quint-feira (22/5), proibindo uma das instituições mais
prestigiosas do mundo de matricular estrangeiros. Por isso, todos os
nomes citados na reportagem são pseudônimos e as instituições às quais eles
pertencem foram identificadas de modo genérico. A BBC News Brasil também entrou
em contato com a Casa Branca e o Departamento de Educação dos EUA para que eles
pudessem se posicionar sobre esse debate. Não foram enviadas respostas até a
publicação desta reportagem.
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Cortes profundos
Todas
as fontes ouvidas pela BBC News Brasil dizem que a mudança mais visível está
relacionada aos cortes em orçamentos e no financiamento de bolsas ou projetos
de pesquisa a partir de janeiro de 2025. Só para os Institutos Nacionais de
Saúde (NIH, na sigla em inglês) — que estão entre os maiores centros de
referência em pesquisa biomédica do mundo — há uma proposta de reduzir o
orçamento em 40% a partir de 2026. Recentemente, Harvard também foi impactada
com o congelamento de US$ 2,3 bilhões (R$ 12,8 bi) em fundos do Departamento de
Educação, após a recusa da direção da
universidade em aceitar demandas do governo Trump — que incluíam
monitorar atividades consideradas antissemitas, acabar com programas de
diversidade, igualdade e inclusão e instaurar uma disciplina mais rigorosa
entre estudantes. Nesta quinta-feira (22/05), a Casa Branca revogou a
"certificação do Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio devido
a falhas [de Harvard] em cumprir a lei". Na prática, a revogação impede a
matrícula de estrangeiros. Em diversas ocasiões, Trump e seus apoiadores
disseram que as universidades de elite do país estão "doutrinando"
pessoas com ideologias de esquerda.
Uma
pesquisa realizada pelo instituto Gallup no verão passado sugeriu que a
confiança no ensino superior vem caindo ao longo do tempo entre americanos de
todas as origens políticas, em parte impulsionada pela crença crescente de que
as universidades promovem uma agenda política. O declínio foi particularmente
acentuado entre os republicanos. Vale lembrar que as universidades americanas
são, em sua maioria, privadas. Mas elas recebem investimentos do governo para
projetos específicos e também se beneficiam de isenções fiscais e outros
incentivos garantidos pelo poder público. Nas últimas semanas, uma carta
assinada por representantes de 150 instituições de ensino superior dos EUA
denunciou o "excesso de poder governamental e interferência política sem
precedentes" do governo Trump. "Estamos abertos a reformas
construtivas e não nos opomos à supervisão governamental legítima", aponta
o texto. "No entanto, devemos nos opor à intrusão indevida do governo na
vida daqueles que estudam, vivem e trabalham em nossos campus."
Mas
como tudo isso se reflete na prática, no dia a dia de pesquisadores, alunos e
professores brasileiros?
Josué
M. conta que duas bolsas de pesquisas para as quais ele se candidatou
recentemente foram encerradas no meio do processo seletivo. "Conheço casos
de colegas da área de engenharia que faziam estudos sobre a construção de casas
populares e tiveram o financiamento cortado por completo", acrescenta
Diego F., que faz pós-doutorado em Direito numa universidade que também fica no
centro-oeste americano. "É como se eles jogassem no lixo anos de pesquisa
acadêmica por causa de interesses políticos. Isso é muito preocupante",
acrescenta ele.
Carla
D., que trabalha num centro de pesquisas em biotecnologia no extremo oeste do
país, também chama a atenção para a troca das lideranças de muitas
instituições.
"Testemunhamos
a saída de líderes e diretores que têm história dentro da Ciência. Eles foram
substituídos por administradores que não entendem profundamente como os estudos
são feitos", diz ela. "Há um temor de como dados podem ser
interpretados para beneficiar certas causas ou visões de mundo, ou até mesmo
manipular informações ou ignorar fatos que não corroboram com certas teorias ou
ideias", complementa a especialista.
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Diversidade, igualdade e inclusão
Carla
D. e outros pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil destacam ainda que as
mudanças impactam particularmente os programas que buscavam incluir pessoas de
grupos minoritários ou que eram sub-representados na comunidade acadêmica.
Segundo
eles, as chamadas políticas de diversidade, igualdade e inclusão foram
particularmente atingidas pelas mudanças recentes. Ao longo dos últimos meses,
Trump assinou uma série de ordens executivas para acabar com programas
estabelecidos em governos anteriores, que eram voltados a esses objetivos. A
justificativa, segundo ele, é "restaurar os valores de dignidade
individual, trabalho duro e excelência". "Desde janeiro, dentro da
instituição em que trabalho, todos os mecanismos que incentivam essa diversidade
entre os grupos de pesquisa deixaram de existir", conta Carla. E isso,
claro, impacta a chegada de novos estudantes estrangeiros, como aqueles vindos
do Brasil.
Cícero
J., que faz doutorado em mídia e comunicação, percebe que já existe uma
preocupação sobre a entrada de novos pesquisadores vindos de outros países. "Antes,
havia um interesse em trazer pessoas de diferentes lugares, para construir um
ambiente diverso. Isso facilitou a minha vinda para cá e ajudou a conseguir uma
bolsa para me manter nos EUA. E pude trazer minha visão de mundo e contribuir
com o ambiente universitário, assim como colegas que vieram da Nigéria, da
China, da Colômbia, da Índia…", lista ele. "Mas agora, se a
universidade resolver admitir estudantes internacionais, não existe mais
segurança alguma de que aquela pessoa vai conseguir passar quatro ou cinco anos
aqui", argumenta ele. "O presidente pode mudar as regras
repentinamente e aumentar o risco de deportação desses pesquisadores",
complementa Cícero. Com isso, segundo o doutorando, muitas universidades já
começam a refletir se vale a pena investir na chegada de estudantes
estrangeiros nos próximos anos letivos. "Elas correm um risco de gastar
uma verba que, de uma hora pra outra, vai parar no lixo porque a pessoa não
poderá concluir o programa de estudos dela. Não há mais certeza de que haverá
um retorno, em termos de pesquisa, porque o estudante pode perder o visto a
qualquer momento e o investimento feito na educação dele é, entre aspas,
desperdiçado", detalha ele.
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Palavras 'proibidas'?
Para
além dos anúncios de corte no financiamento e o fim dos programas de inclusão,
os pesquisadores brasileiros falam que as mudanças geram uma autocensura, a
partir de um suposto boicote a projetos de pesquisa que envolvam alguns temas
ou usem certas palavras. "Estudos que tenham como escopo analisar
diversidade, justiça social, ou qualquer outro termo que vai contra a política
do atual governo, precisaram ser remodelados", informa Diego F. "Nos
grupos de pesquisadores, sempre correm listas de termos e expressões, como
ideologia de gênero, multiculturalismo, pluralismo, que em tese estão sob
suspeita. É impossível não perceber como isso afeta o ambiente acadêmico e
coloca os pesquisadores na mira. Os critérios são políticos e não levam em
conta a Ciência. A pesquisa precisa estar livre das amarras e dos anseios
políticos transitórios", complementa ele. "Vimos um grande número de
bolsas de estudo que foram terminadas porque usavam termos como gravidez,
feminino, infertilidade… Parece que certas palavras se tornaram
proibidas", diz Carla D. "Temos uma recomendação informal de não usar
palavras-chave, como mudanças climáticas, ou questões ambientais. Muitos
professores sabem que, se esses termos estiverem em projetos de pesquisa, eles
não serão aprovados e não ganharão bolsas", acrescenta Josué M. "Dentro
das Ciências Humanas, tudo relacionado a temas raciais, direitos LGBTQIA +,
imigração ou América Latina também já entra na linha de corte",
complementa ele.
Reportagens
publicadas em fevereiro de 2025 por jornais como Washington Post e New York
Times revelam listas de palavras que foram banidas de agências governamentais. Muitas
delas foram citadas pelos pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil. Mas há
outras que aparecem em matérias da mídia americana, como "vacinas",
"apropriação cultural", "indígena", "preferência
sexual" e "energia solar". À época, a Casa Branca disse que não
existe uma lista de palavras proibidas, mas agências federais deveriam
interpretar como cumprir ordens executivas assinadas por Trump que reconhecem
apenas o sexo masculino e feminino e extinguiram os programas de diversidade,
equidade e inclusão.
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Boatos, medo e insegurança
Há
ainda uma terceira camada, mais profunda e subliminar, que parece afetar os
pesquisadores brasileiros que estão nos Estados Unidos: um clima de
instabilidade fomentado por fatores que vão além dos cortes nas bolsas e o
suposto veto a certos assuntos. "Você precisa tomar um cuidado constante e
pesado sobre que faz e fala. Eu dou aula e devo pensar em tudo o que digo na
sala. Preciso refletir sobre qualquer posicionamento ou sobre o uso de palavras
que o governo pode considerar inadequadas ou que possam ser interpretadas como
uma crítica", confessa Cícero J.
"Muitos
de nós reduziram a participação em grupos de WhatsApp e apagaram perfis nas
redes sociais, porque há um entendimento geral de que isso pode representar um
risco", acrescenta Josué M. "Como brasileiro e latino-americano,
sinto que há um alvo sobre aquilo que produzo e falo", avalia Diego F. "Isso
chega ao ponto de me questionar sobre tudo e parar de fazer publicações no
Instagram", complementa ele.
Esse
também é um terreno fértil para o surgimento de boatos e rumores.
Em
grupos de conversa e trocas de informações que reúnem pesquisadores
brasileiros, há três orientações frequentes: andar em grupo sempre que
possível, saber o contato de um advogado e não levar o celular em viagens (pelo
medo de que o aparelho seja confiscado e vasculhado por agentes do governo). "A
gente é bombardeado o tempo todo. Eu recebo dia sim, dia não, e-mails vindos de
diversas pessoas sobre como agir, o que fazer… É uma situação terrível",
confessa Josué M.
Várias
das fontes ouvidas pela BBC News Brasil também contaram histórias similares de
estudantes de outros países que tiveram os vistos revogados porque estavam com
o aluguel atrasado ou tinham uma multa de trânsito. Uma reportagem do jornal
britânico The Guardian afirma que pelo menos 40 estudantes estrangeiros que
estavam nos EUA perderam o visto por causa de pequenas infrações, como as
citadas no parágrafo anterior. Há também relatos extra-oficiais sobre
visitas-surpresa de agentes de imigração ou pessoas suspeitas que circulam
pelos campus das universidades e abordam os pesquisadores com perguntas sobre o
status migratório deles. "Muitos rumores se espalham e geram uma
insegurança, um desconforto generalizado, de que a qualquer momento alguém pode
te entrevistar e, por abuso de poder, usar qualquer justificativa para te
deportar", aponta Cícero. "Há um medo muito grande de fazer algo que
pode ser considerado além do ponto de tolerância do governo dos Estados Unidos
ou dos agentes de imigração. Você nunca sabe quanto suas atividades são vistas
como um desvio da norma", complementa ele.
Luiza
A. formou-se em História e atualmente faz um doutorado no Brasil. Ela está
atualmente nos EUA por um semestre, num projeto de visita acadêmica a uma
universidade no oeste do país. Ela observa que essa ameaça constante de sofrer
uma revogação do visto deixa todo mundo "à deriva. Não existem protocolos
e ninguém sabe muito bem como agir. Processos comuns da vida acadêmica agora
são situações de grande ansiedade e incerteza", diz a doutoranda. "Não
vejo a hora de retornar ao Brasil e voltar a ter meus direitos
garantidos", desabafa ela.
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Fuga de cérebros?
Os
pesquisadores ouvidos pela reportagem também parecem concordar que toda essa
transformação afeta o prestígio das instituições de pesquisa e ensino dos
Estados Unidos — que sempre aparecem no topo de rankings globais de educação e
reúnem uma grande quantidade de prêmios Nobel.
Josué
M. não vê um sentido lógico para essas mudanças de política no fomento às
universidades. "Os Estados Unidos investem durante quatro anos num
pesquisador, para que ele se forme e gere conhecimento. E agora muitos querem
ir embora", diz ele. "Seria de interesse do país reter esses cérebros
aqui", complementa o especialista. "Para o Brasil, isso será ótimo.
Em muitos casos, o país não investiu um centavo e vai ganhar 'de graça'
especialistas com grande conhecimento."
Para
Carla D., a perda de prestígio das instituições acadêmicas americanas já está
em curso. "Um estudante de pós-graduação que hoje pode escolher entre vir
para os Estados Unidos e a Europa vai preferir a segunda opção", raciocina
ela. "Conheço pesquisadores que estão com medo de viajar aos EUA",
diz ela. A especialista pontua que o novo curso das políticas sobre o fomento à
pesquisa não leva em conta enormes prejuízos futuros que poderão acontecer. "Imagina
quantos anos um país investe na formação de um cientista. E você vai perder
esse profissional depois de formado? É algo que não faz sentido do ponto de
vista econômico", argumenta ela. Afinal, um profissional altamente
capacitado, com anos de estudo, é o motor por trás da inovação e do surgimento
de soluções para os mais variados problemas que enfrentamos — e isso gera
patentes, novos produtos e lucro. "A população precisa se conscientizar
que praticamente tudo na nossa vida, o computador, o celular, o carro, o
combate aos incêndios, qualquer coisa, tem uma ciência por trás. Alguém
precisou estudar aquilo", diz ela. "Além das questões econômicas, não
podemos ignorar a perda de conhecimento. Essas medidas vão gerar um atraso no
desenvolvimento de novos tratamentos contra doenças, por exemplo", projeta
a especialista.
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O que esperar do futuro?
Diego
F. precisa renovar o visto para continuar as pesquisas nos Estados Unidos.
Enquanto a situação dele não fica 100% regularizada, ele tem medo de viajar ao
Brasil — e ser barrado pela imigração americana na volta. Ele teme que o fato
de estudar temas que podem ser considerados sensíveis pelo atual governo Trump
pese na balança e impeça a renovação do documento necessário para que ele
permaneça legal nos EUA. "Tenho medo que eles entendam que minha pesquisa
não seja de interesse nacional e não traga nenhum ganho", admite ele. O
pesquisador relata que participou de eventos recentes em diversas universidades
e, em todas elas, viu especialistas afetados por dilemas parecidos. "Isso
traz um grande impacto na saúde mental e nós, imigrantes, não podemos estar no
front de resistência", lamenta ele.
"Qualquer
coisa pode ser utilizada para descredibilizar e colocar sob ameaça a comunidade
acadêmica."
Já
Cícero J. sente falta de uma rede de apoio. "Não tenho amigos ou
familiares por perto, que possam passar segurança e dizer que vai ficar tudo
bem. Não ter essa rede próxima é algo
que mexe muito com a saúde mental, emocional e financeira. A gente lida com as
inseguranças completamente sós. A minha mentalidade é seguir um dia de cada vez
e ter muita cautela com tudo o que expresso sobre minha pesquisa para colegas e
professores. Ver as portas se fecharem num momento de vulnerabilidade é algo
que mexe muito com a gente", complementa ele.
Questionado
sobre qual era o sentimento diante do atual momento, Josué M. diz ter ficado
bastante desiludido. "Mas desilusão talvez não seja a palavra... Afinal,
eu nunca tive uma ilusão sobre os Estados Unidos", reflete ele. "Sei
de muita gente que veio para cá e apostou todas as fichas nesse país. Até
porque a gente sempre recebe uma propaganda muito grande sobre as oportunidades
de trabalhar nas melhores universidades do mundo. Então esse pessoal está
decepcionadíssimo e triste, porque pensou que faria uma carreira aqui e vê
agora essas possibilidades ficarem cada vez mais restritas. Mas o meu
sentimento mesmo é de raiva", admite ele. "Como estudante, eu
contribuo com pesquisas, apresento trabalhos em congressos, escrevo artigos,
dou minha força de trabalho e levo o nome da universidade adiante. Tudo isso
para que no final eu seja tratado como algo absolutamente descartável",
conclui ele.
Fonte:
BBC News Mundo

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