Bolívia: Poderá Andrónico salvar a esquerda?
Com seu “aceito” no sábado, 3 de maio,
Andrónico Rodríguez decidiu intervir de forma mais decisiva na guerra interna
entre partidários de Evo Morales (“evistas”) e de Luís Arce (“arcistas”) que
ameaça destruir o Movimento ao Socialismo (MAS) e alterar o tabuleiro eleitoral
na Bolívia. Usando capacete de mineiro, o jovem presidente do Senado (de 36
anos) disse “sim” às organizações sociais que o ovacionavam em Oruro, em seu
ato de proclamação formal. Ele concorrerá à presidência do país em 17 de agosto
próximo.
Com o presidente Luis Arce Catacora no chão,
nas pesquisas, e Evo Morales inelegível, Andrónico, como todos o chamam, busca
se posicionar como a face renovadora de um espaço político enfraquecido pela
luta interna, que eclodiu assim que o MAS retornou ao poder em outubro de 2020,
cerca de um ano após a derrubada de Evo Morales por um golpe cívico-policial em
2019.
A decisão inicial de Arce de excluir de seu
gabinete as figuras mais relevantes do evismo desencadeou uma guerra sem
trégua. O governo perseguiu Evo Morales, que acabou «exilado» na região
cocalera do Chapare, seu bastião político e territorial, protegido por milícias
sindicais camponesas para evitar ser detido. Ao mesmo tempo, Evo buscou
enfraquecer ao máximo o presidente por ele indicado, a quem hoje considera a
“direita endógena”.
O governo de Arce retomou uma denúncia por
abuso e tráfico de pessoas contra Morales, acusado de relacionamento com uma
menor de idade, em um processo no qual o Ministério Público agiu de ofício.
Trata-se, na verdade, de uma denúncia impulsionada pelo governo [golpista] de
Jeanine Áñez, à qual o arcismo recorreu para neutralizar o ex-presidente. Este,
por sua vez, organizou uma série de bloqueios de estradas para tentar evitar
sua inelegibilidade, mas não obteve sucesso e acabou se enclausurando em sua «zona
segura», embora o ataque a tiros contra seu veículo, em outubro de 2024, mostre
que não há segurança em meio a tal enfrentamento político.
A mediação de diversas figuras da esquerda
sul-ameiricana, incluindo presidentes e ex-presidentes, para tentar aproximar
as partes, não obteve nenhum resultado. O MAS seguiu rumo a um processo de
verdadeira autodestruição. Também não funcionaram os esforços para preservar a
relação Evo-Andrónico. No fim, não foi a direita, enfraquecida após o governo
de Jeanine Áñez e a derrota eleitoral de 2020, mas as confrontações internas —
somadas à crise econômica — que transformaram o poderoso partido camponês, capaz
de articular um bloco político indígena-popular tanto nas urnas quanto nas
ruas, em uma sombra de si mesmo, marcado por um clima de decomposição política.
Nessa guerra interna, Arce conseguiu primeiro
que a Justiça ‘interpretasse’ de forma caprichosa a Constituição, no sentido de
que não é possível a reeleição não consecutiva após dois mandatos presidenciais
— o que tirou Morales do jogo. Depois, arrancou do líder cocalero a sigla do
MAS, por meio de um congresso paralelo organizado pelo aparato estatal e
posteriormente reconhecido pelos juízes.
Mas o atual presidente pode tirar pouco
proveito dessa sigla outrora imbatível: sua gestão, considerada abaixo do
medíocre por analistas de todos os espectros ideológicos, somada a uma forte
crise econômica, afundou-o nas pesquisas, deixando-o com cerca de 5% de apoio.
A imagem de Arce como artífice do milagre econômico boliviano se esvaeceu, e
ele passou a ser visto como um governante incapaz de gerir o Estado.
A queda das reservas de gás acelerou a erosão
do modelo adotado desde 2006, que por anos trouxe bons resultados em
crescimento econômico e acumulação de divisas, mas hoje se mostra esgotado.
Morales está bem melhor posicionado nas
pesquisas (com mais de 20% das preferências), mas a rejeição que sua figura
gera em parte da população torna quase impossível uma vitória no segundo turno.
Recluso no Chapare, ele se aferrou um discurso bolivariano intransigente e
chegou a acusar de traidores figuras como Álvaro García Linera, que o
acompanhou no poder por quase 14 anos.
A Álvaro, ex-vice-presidente ocorreu dizer
publicamente que talvez fosse melhor que Morales e Arce renunciassem às suas
aspirações presidenciais para viabilizar uma nova figura renovadora. Essa
figura de unidade, imaginava ele, poderia ser Andrónico Rodríguez.
Impulsionado por Evo Morales como seu
sucessor nos sindicatos cocaleros, Andrónico foi eleito em 2018 vice-presidente
das Seis Federações Cocaleras do Trópico de Cochabamba. Faz parte das novas
gerações de líderes camponeses, com uma relação muito mais fluida com as
cidades — o que a antropóloga Alison Spedding chamou de ‘semicamponeses’, por
seu vínculo urbano-rural.
Nascido em Sacaba, capital da província do
Chapare, estudou Ciências Políticas na Universidad Mayor de San Simón e depois
retornou ao campo. Segundo seu próprio relato, desde criança acompanhava o pai
nas reuniões dos sindicatos camponeses e foi percebendo a necessidade da
educação formal. «Ao meu pai faltava um pouco de conhecimento, e pensei que
[eu] deveria superar isso”, diz Andrónico. E prossegue: “Preciso ler, estudar e
ver como colaborar com minha comunidade com maior sabedoria acadêmica e técnica».
Em 2020, chegou ao Senado e foi eleito para presidi-lo.
Visto como o “delfim” de Evo Morales, começou
a demonstrar capacidade de liderança no Senado e a se distanciar da facção
evista — sem, no entanto, alinhar-se à arcista —, enquanto o conflito devastava
o MAS. Calculando cada passo para evitar que pequenos erros virassem equívocos
catastróficos, e sem alarde, Andrónico foi conquistando autonomia frente a
Morales. Tornou-se assunto recorrente na política e na imprensa
locais o fato de que, ultimamente, sempre que era convocado para reuniões
evistas no Chapare, o senador aparecia surpreendentemente em alguma viagem ao
exterior. Um timing impressionante para não ficar associado a um Evo recolhido
em si mesmo e com discursos radicais — veiculados em seu programa na rádio
Kawsachun Coca —, que o distanciaram de grande parte de seus antigos eleitores.
“Andrónico passou a ser vigiado
permanentemente por seu mentor, em busca de possíveis atos de «traição».
Primeiro, havia o temor de que migrasse para as trincheiras arcistas; mas,
quando isso não ocorreu, a mera autonomia do que começava a ser visto como uma
terceira via «androniquista» já surgia como ameaça para um Evo Morales que
insiste em concorrer a um novo mandato. Para isso, o ex-presidente lançou o
movimento EVO Pueblo (Estamos Volviendo Obedeciendo al Pueblo). A reação do
ex-presidente à candidatura de Andrónico Rodríguez manteve o mesmo tom: «Quem
se afasta é funcional ao império», declarou.
Andrónico Rodríguez parece consciente de que
o contexto político da Bolívia e da região é muito diferente do entusiasmo
antineoliberal de 2005, quando Evo venceu com 54% dos votos e inaugurou o
chamado «processo de mudança», com um discurso nacionalista popular e
indigenista, ao mesmo tempo radical e pragmático. Já candidato —
embora ainda sem definir sua sigla —, Andrónico criticou a construção de
fábricas estatais ineficientes para atender demandas corporativas de regiões e
organizações sociais. Em fórum organizado pelo jornal El Deber, de Santa Cruz
de la Sierra, o senador enfatizou que o Estado deve focar em setores-chave como
hidrocarbonetos e energia, sem se dispersar em empreendimentos menores. «O
Estado não precisa monopolizar, mas sim atuar onde realmente importa»,
ressaltou. Chegou a acusar Arce de transformar o modelo econômico do MAS em um
«Estado paternalista que relega a economia privada, comunitária e cooperativa».
A candidatura de Andrónico, que registra mais
de 20% das preferências — colocando-o no topo das pesquisas ao lado do
empresário Samuel Doria Medina —, poderia ter bom desempenho em um eventual
segundo turno, segundo os mesmos levantamentos. O espectro do centro à direita
está dividido e sem novas lideranças: o próprio Doria Medina, assim como Jorge
‘Tuto’ Quiroga — alinhado com a direita de Miami — e o prefeito de Cochabamba,
Manfred Reyes Villa, são figuras desgastadas, que emetem à era pré-2005.”
Quiroga assumiu a presidência em 2001 após a
morte de Hugo Banzer, e Reyes Villa foi um dos principais candidatos em 2002. A
campanha de Doria Medina, como economista e empresário
liberal-desenvolvimentista, conecta-se melhor ao contexto de crise, mas ainda
integra essa «velha política», agravada por sua lendária falta de carisma.
Embora as tentativas de formar um bloco
unificado do centro à direita tenham fracassado, todos os candidatos desse
espectro sonham em derrotar facilmente o MAS no segundo turno — em um espécie
de «efeito Equador». A candidatura de Andrónico poderá alterar esse cenário?
O histriônico milionário Marcelo Claure, que
aspira a ser uma espécie de Elon Musk no próximo governo — sem definir
claramente preferência entre os candidatos opositores após o fracasso da união
da direita —, celebrou a decisão de Andrónico e tentou semear discórdia com sua
verborragia trumpista. «Andrónico é mil vezes melhor que um pedófilo
[referindo-se a Evo Morales] ou um incompetente [Arce], e tenho muita fé que
trabalharemos juntos para tirar a Bolívia deste buraco».
Embora não concorra pela sigla do MAS, a
aposta de Andrónico Rodríguez é representar o mesmo bloco «indígena plebeu» —
espelho da complexa sociologia popular boliviana, marcada também por formas
vigorosas de empreendedorismo — e, na prática, reconstruir o MAS. O novo
candidato é autocrítico dos últimos anos de gestão do MAS e passou a tratar Evo
Morales mais como figura histórica do que como líder inconteste do presente.
Seu perfil voltado ao diálogo — que o manteve à frente do Senado em meio a
turbulências políticas — é um trunfo, num contexto em que a esquerda precisa
reconquistar aliados afastados e, eventualmente, governar em meio a crises.
Entre suas fraquezas, estão sua limitada
experiência política e a rejeição social à atual gestão do MAS sob Arce. Ficar
à margem do arcismo (que controla recursos estatais) e do evismo (que ainda tem
base social) é uma faca de dois gumes: fortalece seu discurso renovador, mas
enfraquece sua capacidade de mobilização.
Ainda assim, muitos setores sociais, cansados
da briga interna, passaram a enxergar em Andrónico uma candidatura a priori
competitiva — quando, até pouco tempo atrás, só se vislumbrava a derrota do
“bloco popular” diante de uma direita que, embora antiga, pode capitalizar o
descontentamento geral.
¨
Jones Manoel: Integração
latino-americana, a grande ausente
No final de 2024, fiz a primeira viagem
internacional da minha vida. Passei dez dias na Colômbia, conhecendo as cidades
de Bogotá, Cartagena e Zipaquirá. A visita à Colômbia, especialmente em Bogotá,
com estátuas, símbolos e referências onipresentes a Simón Bolívar, chama a
memória de algo importante: a integração latino-americana. Estou convencido de
que é correta a tese de que nosso continente é uma pátria balcanizada, dividida
em várias fronteiras artificiais, mas com uma clara unidade cultural, étnica, linguística,
geográfica e de sentido histórico. Unidade, é claro, não significa ausência de
pluralidade e particularidades de cada território e povo. Somos um único povo
diverso.
Nesta unidade latino-americana, o Brasil tem,
naturalmente, um papel central. Pelo tamanho da sua economia, território,
população e localização geográfica, o nosso país é um fiador da balança no
nível de integração ou não da América do Sul e de toda a nação
latino-americana. Esse papel de liderança natural, contudo, não se confunde com
legitimar qualquer postura hegemônica e subimperialista do Brasil. A liderança
brasileira, para merecer tal nome, precisa estar alicerçada em valores
anti-imperialistas, solidários, internacionalistas e democráticos.
Ao mesmo tempo, o imperialismo, primeiro o
britânico e depois o estadunidense, sempre entendeu bem que é fundamental
estimular rivalidades regionais, criar confrontos e antagonismos infrutíferos e
garantir que o Brasil, em particular, siga buscando as luzes na Europa e
recebendo ordens dos Estados Unidos. Mas se o problema fosse “apenas” o
imperialismo, a nossa tarefa histórica de construir uma Pátria Grande
Latino-Americana seria mais fácil. As burguesias internas de cada país, classes
dominantes-dominadas, são refratárias a toda ação efetiva de integração. Cada
bloco dominante dos diversos países de Nuestra América busca
manter a relação de dependência-subordinação com o imperialismo, reprimindo
sempre que possível a unidade latino-americana, construindo, no máximo,
unidades contrarrevolucionárias – como a Operação Condor – e blocos para meras
relações comerciais, sem horizonte estratégico de anti-imperialismo e soberania
econômica, produtiva e tecnológica.
Em suma, como ensinou José Carlos Mariátegui
há cem anos, a unidade latino-americana será necessariamente obra das classes
exploradas e oprimidas, construída de baixo para cima, contra o imperialismo e
também contra as burguesias internas e suas bases de sustentação social – é
notório e histórico como um amplo setor das camadas médias dos países
latino-americanos se sente confortável com a dependência e vive com o sonho de
ser francês, estadunidense ou britânico nos trópicos.
Uma efetiva integração latino-americana em
bases anti-imperialistas e de superação da dependência significaria o golpe
mais duro da história no sistema imperialista liderado pelos Estados Unidos.
Mais do que a derrota no Vietnã, a Guerra da Coreia, a Revolução Cubana ou
qualquer outro evento que se possa imaginar. Neste debate sobre o declínio da
hegemonia dos Estados Unidos e “multipolaridade”, é preciso saber que, enquanto
a América Latina for uma reserva estratégica do imperialismo, o caminho de tal declínio
ou fim do controle mundial estadunidense vai perdurar por anos e mais anos.
Nós, latino-americanos, temos a mais
importante tarefa na luta anti-imperialista mundial. A nossa libertação será a
maior vitória da luta anti-imperialista da história do mundo moderno. Esse é o
tamanho da nossa tarefa. No caso brasileiro, em particular, o desafio é
agravado pelo histórico afastamento dos demais países da América e pela forma
como, na cultura política e nos marcos teóricos dos partidos, sindicatos,
movimentos sociais e intelectualidade, estamos quase totalmente apartados dos
nossos vizinhos.
A situação brasileira ganha ares de patético
em vários momentos. Por exemplo, o partido espanhol Podemos surge inspirado no
bolivarianismo chavista. A Revolução Bolivariana e o Novo Constitucionalismo
latino-americano influenciaram uma série de organizações e intelectuais na
Espanha, Portugal, França e afins. A esquerda brasileira, em média,
simplesmente ignorou esse processo e mostrou extrema hostilidade para com Hugo
Chávez e seu projeto bolivariano – enquanto adorou a novidade espanhola, e não
faltou quem tomasse o Podemos e Pablo Iglesias como o caminho para renovar a
esquerda brasileira. A matriz latino-americana foi repudiada, a filial europeia
adorada.
A situação tende a piorar ainda mais porque,
hoje, a maioria do que se entende por progressismo é uma subsidiária do Partido
Democrata dos Estados Unidos: cada vez mais colonizada, liberal e com a cabeça
voltada para o norte do mundo. Frente a tudo isso, é tarefa urgente e
indispensável que os revolucionários e revolucionárias de todo o Brasil
coloquem na ordem do dia dois movimentos conjuntos e indissociáveis. É preciso
latino-americanizar o marxismo brasileiro, travar intensos contatos e aprender
com a produção teórica e a luta das classes exploradas de toda Nuestra
América. Faria muito bem ao marxismo brasileiro, por exemplo, tomar ciência
do acúmulo argentino e venezuelano sobre a questão nacional; das contribuições
teóricas bolivianas e peruanas sobre a questão indígena; da experiência prática
e formulação teórica cubana e venezuelana sobre a questão militar, etc.
Ao mesmo tempo, é preciso intensificar as
articulações, campanhas conjuntas, ações de solidariedade e afins em toda a
América Latina. É necessário impor uma agenda de integração latino-americana
como parte fundamental da luta contra a extrema direita e da resistência à nova
ofensiva de Donald Trump. Perdemos tempo nessa luta. O progressismo abandonou o
sonho de Simón Bolívar. Cabe a nós, aqueles que defendem a Revolução
Brasileira, ter consciência de que essa revolução é parte do processo
revolucionário continental que terá de criar a Pátria Grande Socialista. Ou nos
integramos, ou continuaremos no papel de escravos do império.
Fonte: Por Pablo Stefanoni, no Nuso |
Tradução: Antonio Martins, em Outras Palavras/Opera Mundi

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