sexta-feira, 16 de maio de 2025

Big techs e a política do ódio: o apagamento digital da população LGBTQIAPN+

Meta, X e outras plataformas digitais reduzem proteções e normalizam ataques, tornando a internet um espaço cada vez mais hostil à diversidade

##

“O seu cu é um depósito de porra”. Faz alguns anos que li essa frase em um comentário de uma rede social. Era uma reação a um post de um candidato gay que concorria às eleições: um homem branco, cis, de um partido de centro-esquerda. Quem destilava tanto ódio era um usuário não identificável: sem foto, nome ou qualquer pista de sua identidade.

O que me surpreendia não era o ódio em si — como mulher negra e bissexual, a homolesbotransfobia e o racismo, infelizmente, são parte do meu cotidiano. O que me intrigava era o motivo pelo qual um conteúdo como esse permanecia online. Na época, as principais plataformas digitais — o falecido Twitter (atual X), o Facebook, o Instagram e o YouTube — tinham políticas relativamente claras sobre o combate ao discurso de ódio. Mas não pareciam suficientemente preparadas — ou interessadas — em agir diante desses comentários.

FEMINISMO E DIREITOS HUMANOS SEM INTERMEDIÁRIOS

O ano era 2022, tínhamos um presidente de extrema direita no Brasil e os direitos LGBTQIAPN+ estavam na mira, mas parecíamos ainda ter alguns aliados quando nos dirigíamos às plataformas. Eu posso dizer, como diretora à época de um centro de pesquisa que trabalhava de forma próxima às plataformas, que havia certa abertura delas para escuta. Ao menos no que tangia aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras responsáveis pelas políticas de enfrentamento à homolesbotransfobia, havia, inclusive, retorno de denúncias sobre conteúdos como esses.

Alguns comentários acabaram sendo removidos dias depois. Ainda que a derrubada tardia do ódio não represente o tipo de contenção de que necessitamos, ela mostrava que alguma mediação era possível.  No entanto, nesse ínterim, o candidato já havia sido impactado e os efeitos psicológicos já se instalavam, e era inegável a contribuição para o reforço de um imaginário social que naturaliza ataques a pessoas LGBTQIAPN+.

AFROUXAMENTO DAS POLÍTICAS E RETRAÇÃO DOS CANAIS DE RESPOSTA

Os anos seguintes marcaram um afrouxamento das políticas e a retração dos canais de resposta, especialmente para grupos historicamente vulnerabilizados. Mudanças profundas nas diretrizes de moderação de grandes empresas como Meta e X revelaram não apenas uma diminuição do compromisso com os direitos humanos. Há também uma reconfiguração completa do que é tolerado — e muitas vezes, incentivado — nos espaços digitais.

Para a população LGBTQIAPN+, os impactos dessa guinada foram imediatos e profundos: aumento da violência discursiva, normalização de ataques e esvaziamento dos mecanismos de proteção que antes, mesmo de forma insuficiente, ofereciam algum suporte.

O desmoronamento do compromisso com a segurança de populações marginalizadas não se deu da noite para o dia. Construiu-se aos poucos, e teve seu marco simbólico com a presença dos CEOs das big techs na posse de Donald Trump, nos Estados Unidos. A influência do novo presidente ultrapassa as fronteiras do país americano e reconfigura dinâmicas políticas, sociais e econômicas do Norte ao Sul Global.

Cada plataforma carrega problemas específicos, mas todas têm produzido um efeito comum: o silenciamento e o afastamento de pessoas LGBTQIAPN+ das redes sociais — lugares que hoje se configuram como verdadeiros espaços cívicos. Estar presente nesse ecossistema digital é, em muitos casos, parte essencial do exercício de uma cidadania plena. Mas como cada uma das maiores plataformas tem se pronunciado diante desse cenário? Vejamos a seguir.

O INÍCIO DO LABORATÓRIO DO ÓDIO DIGITAL

O antigo Twitter, comprado em 2022 por Elon Musk, abriu as portas e se colocou como um experimento do que seria uma plataforma sem regras que protegessem populações dissidentes. A normalização do discurso de ódio, o desmonte das políticas de moderação de conteúdo, a dissolução dos sistemas de denúncia e o incentivo a uma suposta “liberdade de expressão” foram as amostras iniciais de uma cadeia de ações que estava apenas começando.

A proclamação desse espaço “livre” se manteve, mesmo com saídas recorrentes de jornalistas, veículos de mídia, organizações não governamentais, intelectuais e ativistas do X. Entre disputas jurídicas que envolveram o Brasil e o bloqueio do X por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2024, chegamos a 2025 com Elon Musk integrando oficialmente o governo Trump. Agora, o que era um laboratório social de ódio em uma rede social se transformou em um projeto global, extrapolando os limites de uma única plataforma.

Não à toa, vimos recentemente a deputada federal Erika Hilton ter seus direitos enquanto mulher trans desrespeitados publicamente, com a tentativa de apagar seu gênero feminino, informado nos documentos oficiais brasileiros.

A transfobia que se enraizou e se prolifera no X — impulsionada por mudanças deliberadas nas políticas da plataforma — não está mais restrita ao ambiente virtual. Ela agora compõe um projeto político articulado que pretende deslegitimar e apagar a existência de pessoas LGBTQIAPN+ em todo o mundo. Não se trata apenas de violência discursiva, mas de um esforço coordenado para reescrever quem pode ou não existir no espaço público.

ENERGIA MASCULINA E LIBERDADE PARA O ÓDIO

A Meta, por sua vez, não ficou atrás. Em 2024, já havia se pronunciado sobre a decisão de reduzir a recomendação de conteúdos compreendidos como políticos para as pessoas que usam a plataforma. A mudança provocou questionamentos sobre o que a plataforma estava considerando como político — e quais vozes seriam empurradas para as margens.

Mark Zuckerberg chamou atenção, este ano, ao declarar que o mundo carecia de mais “energia masculina” para a tomada de decisões e de mais clareza sobre o tipo de progresso que deveria ser perseguido. Nesse contexto, as políticas da Meta também foram modificadas.

Chegou ao fim o programa de checagem de fatos, e as diretrizes de proteção a grupos marginalizados passaram a respeitar uma noção distorcida de “liberdade de expressão religiosa”. Uma liberdade que permite, entre outras coisas, que pessoas LGBTQIAPN+ sejam publicamente tratadas como doentes.

Não é preciso muita imaginação para perceber qual ideologia é favorecida com essa mudança. Não se trata da abertura a conteúdos dissidentes ou da superação das chamadas bolhas informacionais. Estamos diante de uma prática perversa, que não só transforma pessoas LGBTQIAPN+ em alvos fáceis para grupos extremistas, mas também fomenta ataques aos seus direitos fundamentais.

MUITO ALÉM DE X E META: UM ECOSSISTEMA DE EXCLUSÃO

É fundamental reconhecer que o problema é mais profundo e sistêmico. Plataformas como YouTube e TikTok, embora não alinhadas explicitamente a projetos de extrema direita, também têm sido objeto de críticas por parte de ativistas e pesquisadores LGBTQIAPN+.

Esses grupos têm chamado atenção para práticas que podem resultar na desmonetização de conteúdos, na censura algorítmica, na moderação frouxa de conteúdo ou na despriorização de vozes dissidentes. Os efeitos impactam de maneira desproporcional a presença e a visibilidade LGBTQIAPN+ no espaço digital.

Esse padrão de exclusão se estende a outros espaços digitais. Um bom exemplo são os aplicativos de encontro, concentrados em torno de experiências cis e masculinas, enquanto mulheres lésbicas, bissexuais, trans e pessoas não binárias seguem sub-representadas ou invisibilizadas.

Diante desse cenário, o que está em disputa é o próprio direito de existir, circular e exercer cidadania plena no espaço digital. Não podemos mais aceitar compromissos vagos ou políticas genéricas de “diversidade”. Precisamos exigir compromissos transparentes, monitoráveis e públicos com a inclusão de todas as formas de existência.

Se as empresas realmente desejam ser compreendidas como espaços seguros para a população LGBTQIAPN+, precisarão abrir mão do receio de impactar seus lucros — e nos reconhecer não apenas como usuárias(os), mas também como consumidoras(es). Não queremos apenas acesso: queremos políticas de diversidade e inclusão fortalecidas, ampliadas e consolidadas. Não aceitamos – e não aceitaremos – a construção de um mundo cada vez mais austero e hostil às nossas existências.

Ademais, talvez o alerta já esteja nítido: se quisermos de fato plataformas que nos respeitem plenamente, é preciso dar a largada para a construção de novos espaços digitais, guiados por uma ética feminista, antirracista e anti-LGBTQIAPN+fóbica. Enquanto esse momento não chega, a pressão sobre as plataformas existentes deve ser firme e inequívoca: nossos direitos não são negociáveis.

 

Fonte: Por Fernanda Martins, em AzMina

 

Nenhum comentário: