Big
techs e a política do ódio: o apagamento digital da população LGBTQIAPN+
Meta,
X e outras plataformas digitais reduzem proteções e normalizam ataques, tornando
a internet um espaço cada vez mais hostil à diversidade
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“O seu
cu é um depósito de porra”. Faz alguns anos que li essa frase em um comentário
de uma rede social. Era uma reação a um post de um candidato gay que concorria
às eleições: um homem branco, cis, de um partido de centro-esquerda. Quem
destilava tanto ódio era um usuário não identificável: sem foto, nome ou
qualquer pista de sua identidade.
O que
me surpreendia não era o ódio em si — como mulher negra e bissexual, a
homolesbotransfobia e o racismo, infelizmente, são parte do meu cotidiano. O
que me intrigava era o motivo pelo qual um conteúdo como esse permanecia
online. Na época, as principais plataformas digitais — o falecido Twitter
(atual X), o Facebook, o Instagram e o YouTube — tinham políticas relativamente
claras sobre o combate ao discurso de ódio. Mas não pareciam suficientemente
preparadas — ou interessadas — em agir diante desses comentários.
FEMINISMO
E DIREITOS HUMANOS SEM INTERMEDIÁRIOS
O ano
era 2022, tínhamos um presidente de extrema direita no Brasil e os direitos
LGBTQIAPN+ estavam na mira, mas parecíamos ainda ter alguns aliados quando nos
dirigíamos às plataformas. Eu posso dizer, como diretora à época de um centro
de pesquisa que trabalhava de forma próxima às plataformas, que havia certa
abertura delas para escuta. Ao menos no que tangia aos trabalhadores e
trabalhadoras brasileiras responsáveis pelas políticas de enfrentamento à
homolesbotransfobia, havia, inclusive, retorno de denúncias sobre conteúdos
como esses.
Alguns
comentários acabaram sendo removidos dias depois. Ainda que a derrubada tardia
do ódio não represente o tipo de contenção de que necessitamos, ela mostrava
que alguma mediação era possível. No
entanto, nesse ínterim, o candidato já havia sido impactado e os efeitos
psicológicos já se instalavam, e era inegável a contribuição para o reforço de
um imaginário social que naturaliza ataques a pessoas LGBTQIAPN+.
AFROUXAMENTO
DAS POLÍTICAS E RETRAÇÃO DOS CANAIS DE RESPOSTA
Os anos
seguintes marcaram um afrouxamento das políticas e a retração dos canais de
resposta, especialmente para grupos historicamente vulnerabilizados. Mudanças
profundas nas diretrizes de moderação de grandes empresas como Meta e X
revelaram não apenas uma diminuição do compromisso com os direitos humanos. Há
também uma reconfiguração completa do que é tolerado — e muitas vezes,
incentivado — nos espaços digitais.
Para a
população LGBTQIAPN+, os impactos dessa guinada foram imediatos e profundos:
aumento da violência discursiva, normalização de ataques e esvaziamento dos
mecanismos de proteção que antes, mesmo de forma insuficiente, ofereciam algum
suporte.
O
desmoronamento do compromisso com a segurança de populações marginalizadas não
se deu da noite para o dia. Construiu-se aos poucos, e teve seu marco simbólico
com a presença dos CEOs das big techs na posse de Donald Trump, nos Estados
Unidos. A influência do novo presidente ultrapassa as fronteiras do país
americano e reconfigura dinâmicas políticas, sociais e econômicas do Norte ao
Sul Global.
Cada
plataforma carrega problemas específicos, mas todas têm produzido um efeito
comum: o silenciamento e o afastamento de pessoas LGBTQIAPN+ das redes sociais
— lugares que hoje se configuram como verdadeiros espaços cívicos. Estar
presente nesse ecossistema digital é, em muitos casos, parte essencial do
exercício de uma cidadania plena. Mas como cada uma das maiores plataformas tem
se pronunciado diante desse cenário? Vejamos a seguir.
O
INÍCIO DO LABORATÓRIO DO ÓDIO DIGITAL
O
antigo Twitter, comprado em 2022 por Elon Musk, abriu as portas e se colocou
como um experimento do que seria uma plataforma sem regras que protegessem
populações dissidentes. A normalização do discurso de ódio, o desmonte das
políticas de moderação de conteúdo, a dissolução dos sistemas de denúncia e o
incentivo a uma suposta “liberdade de expressão” foram as amostras iniciais de
uma cadeia de ações que estava apenas começando.
A
proclamação desse espaço “livre” se manteve, mesmo com saídas recorrentes de
jornalistas, veículos de mídia, organizações não governamentais, intelectuais e
ativistas do X. Entre disputas jurídicas que envolveram o Brasil e o bloqueio
do X por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2024, chegamos a 2025 com
Elon Musk integrando oficialmente o governo Trump. Agora, o que era um
laboratório social de ódio em uma rede social se transformou em um projeto
global, extrapolando os limites de uma única plataforma.
Não à
toa, vimos recentemente a deputada federal Erika Hilton ter seus direitos
enquanto mulher trans desrespeitados publicamente, com a tentativa de apagar
seu gênero feminino, informado nos documentos oficiais brasileiros.
A
transfobia que se enraizou e se prolifera no X — impulsionada por mudanças
deliberadas nas políticas da plataforma — não está mais restrita ao ambiente
virtual. Ela agora compõe um projeto político articulado que pretende
deslegitimar e apagar a existência de pessoas LGBTQIAPN+ em todo o mundo. Não
se trata apenas de violência discursiva, mas de um esforço coordenado para
reescrever quem pode ou não existir no espaço público.
ENERGIA
MASCULINA E LIBERDADE PARA O ÓDIO
A Meta,
por sua vez, não ficou atrás. Em 2024, já havia se pronunciado sobre a decisão
de reduzir a recomendação de conteúdos compreendidos como políticos para as
pessoas que usam a plataforma. A mudança provocou questionamentos sobre o que a
plataforma estava considerando como político — e quais vozes seriam empurradas
para as margens.
Mark
Zuckerberg chamou atenção, este ano, ao declarar que o mundo carecia de mais
“energia masculina” para a tomada de decisões e de mais clareza sobre o tipo de
progresso que deveria ser perseguido. Nesse contexto, as políticas da Meta
também foram modificadas.
Chegou
ao fim o programa de checagem de fatos, e as diretrizes de proteção a grupos
marginalizados passaram a respeitar uma noção distorcida de “liberdade de
expressão religiosa”. Uma liberdade que permite, entre outras coisas, que
pessoas LGBTQIAPN+ sejam publicamente tratadas como doentes.
Não é
preciso muita imaginação para perceber qual ideologia é favorecida com essa
mudança. Não se trata da abertura a conteúdos dissidentes ou da superação das
chamadas bolhas informacionais. Estamos diante de uma prática perversa, que não
só transforma pessoas LGBTQIAPN+ em alvos fáceis para grupos extremistas, mas
também fomenta ataques aos seus direitos fundamentais.
MUITO
ALÉM DE X E META: UM ECOSSISTEMA DE EXCLUSÃO
É
fundamental reconhecer que o problema é mais profundo e sistêmico. Plataformas
como YouTube e TikTok, embora não alinhadas explicitamente a projetos de
extrema direita, também têm sido objeto de críticas por parte de ativistas e
pesquisadores LGBTQIAPN+.
Esses
grupos têm chamado atenção para práticas que podem resultar na desmonetização
de conteúdos, na censura algorítmica, na moderação frouxa de conteúdo ou na
despriorização de vozes dissidentes. Os efeitos impactam de maneira
desproporcional a presença e a visibilidade LGBTQIAPN+ no espaço digital.
Esse
padrão de exclusão se estende a outros espaços digitais. Um bom exemplo são os
aplicativos de encontro, concentrados em torno de experiências cis e
masculinas, enquanto mulheres lésbicas, bissexuais, trans e pessoas não
binárias seguem sub-representadas ou invisibilizadas.
Diante
desse cenário, o que está em disputa é o próprio direito de existir, circular e
exercer cidadania plena no espaço digital. Não podemos mais aceitar
compromissos vagos ou políticas genéricas de “diversidade”. Precisamos exigir
compromissos transparentes, monitoráveis e públicos com a inclusão de todas as
formas de existência.
Se as
empresas realmente desejam ser compreendidas como espaços seguros para a
população LGBTQIAPN+, precisarão abrir mão do receio de impactar seus lucros —
e nos reconhecer não apenas como usuárias(os), mas também como
consumidoras(es). Não queremos apenas acesso: queremos políticas de diversidade
e inclusão fortalecidas, ampliadas e consolidadas. Não aceitamos – e não
aceitaremos – a construção de um mundo cada vez mais austero e hostil às nossas
existências.
Ademais,
talvez o alerta já esteja nítido: se quisermos de fato plataformas que nos
respeitem plenamente, é preciso dar a largada para a construção de novos
espaços digitais, guiados por uma ética feminista, antirracista e
anti-LGBTQIAPN+fóbica. Enquanto esse momento não chega, a pressão sobre as
plataformas existentes deve ser firme e inequívoca: nossos direitos não são
negociáveis.
Fonte:
Por Fernanda Martins, em AzMina

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