Dowbor:
Não chame de capitalismo – é muito pior
O termo
parece defasado. Chamar de capitalismo já não dá conta de descrever o sistema
em que estamos inseridos. Precisamos aprofundar as noções da revolução digital,
do conhecimento como fator de produção e do rentismo, esse mecanismo de
exploração por excelência. Quem sabe aí, para além do diagnóstico, podemos
elaborar melhor os desafios a serem enfrentados, já que eles são novos, mais
perversos e estão aí, nos atropelando.
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Leia a entrevista
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O senhor começa o livro dizendo que nas últimas décadas
as coisas mudaram, se referindo ao funcionamento daquilo que a gente se
acostumou a chamar de capitalismo. E as coisas mudaram, então, muito por conta
dessa revolução digital que tornou a lógica muito mais dura, acelerando a
desigualdade e numa base pouco produtiva. Que novo sistema é esse? Qual é o
centro da ideia desse livro?
Você
sabe que nós temos uma mudança profunda que a gente pode pegar, por exemplo,
através do trabalho do André Gorz, sobre o imaterial. O dinheiro hoje é
essencialmente um sinal magnético. O dinheiro, esse papel impresso pelo
governo, representa no mundo cerca de 5% apenas da chamada liquidez. 95% são
apenas sinais magnéticos, anotações em computadores. Isso permite o dinheiro
circular na velocidade da luz, enfim, em todo o planeta, praticamente sem
controle.
Isso
muda profundamente, porque se eu voltei de Angola e o pessoal queria saber, na
alfândega, se eu estava com mais de 5 mil dólares na mala. Mas você vai no BTG
Pactual e pede para transferir milhões para um paraíso fiscal, só aperta enter.
De certa maneira, nós estamos em outra dimensão. Então, o dinheiro é imaterial.
A outra
dimensão é que o conhecimento, o conjunto das informações que a gente tem, o
mundo da informação, ele se tornou essencialmente também um sinal magnético. É
imaterial. Todo o sistema de informação que a gente usa, hoje o Facebook, o
Amazon, o Google, a Microsoft, enfim, o chamado GAFAM, todo esse sistema lida
essencialmente com o imaterial. Então, de certa maneira, temos uma
desmaterialização da economia no geral, e isso está levando a outras regras do
jogo, outra forma de organizar a economia, porque quando você está online não
existem fronteiras, não existe de que lado você está, territórios, coisas do
gênero. É interessante o título de um livro americano: O Espaço Morreu. Na
realidade, você está no mundo.
Um
segundo eixo é a conectividade global. Em poucos anos praticamente todo mundo
terá acesso, através do celular no bolso, do computador, de diversos meios. Eu
posso puxar um artigo de um amigo do Japão em frações de segundos, ele está
aqui no ar, meu celular pega. Ou seja, o conhecimento banha o planeta, são
sinais magnéticos, e nós temos as gigantescas infraestruturas, que são tanto os
satélites em volta da Terra, como a rede de cabos e de fibra ótica que está em
todo o planeta, que atinge praticamente, ou está em vias de atingir, todos os
lugares do mundo.
Então
você gerou uma conectividade planetária, e isso desloca radicalmente a visão de
economia. Não é mais o cara que faz a fábrica naquele bairro — tem o dono da
fábrica, que contrata trabalhadores e paga mal os trabalhadores, mas para
lucrar com os trabalhadores ele tem que pelo menos gerar emprego para eles, tem
que gerar produtos. Agora, esse sistema imaterial é diferente. Quando, por
exemplo, uma empresa está em Genebra, tem uma Asset Management (gestão de
ativos) dessa empresa que pega o empréstimo no Japão a 3% ao ano, compram
títulos do governo aqui no Brasil a 14,25%, e, sem sair de Genebra, sem sair da
frente do computador, ganha rios de dinheiro, desviando parte dos nossos
impostos para lucros financeiros. De certa maneira, se você junta o imaterial
com a conectividade planetária e a capacidade de grandes grupos internacionais
controlarem o conjunto do sistema dessa conectividade, que é justamente o GAFAM
(Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, e hoje se acrescentam alguns),
você mudou o sistema.
·
E do que a gente está chamando isso agora?
Por
exemplo, a Mariana Mazzucato chama isso de capitalismo extrativo, porque o
pessoal que ganha esse dinheiro dessa maneira, sem produzir, está extraindo
riqueza simplesmente. Você vai ter um trabalho de Shoshana Zuboff que mostra
que essa conectividade global permite a grandes grupos internacionais puxar
informações nossas, informações privadas, do nosso computador, dos nossos
celulares, e criou o que ela chama de capitalismo de vigilância. O Robert Reich
chama de capitalismo corporativo, o Bauman chama de capitalismo parasitário, o
Varoufakis chama de tecnofeudalismo.
Quer
dizer, você tem um conjunto de pesquisadores de primeira linha internacional,
por exemplo, o Stiglitz, que é um prêmio Nobel de Economia, que foi
economista-chefe do Banco Mundial, e chama isso de diversos adjetivos, porque o
sistema mudou. Agora, a minha visão nesse livro é o seguinte: eu pego e
sistematizo as diversas mudanças e vejo que isso está criando uma outra coisa.
Ou seja, a forma de apropriação do excedente social, do que as populações
produzem pelas elites, mudou.
Não é
mais um cara que tem uma fábrica e está explorando os trabalhadores através da
mais-valia. Hoje são sistemas financeiros que exploram de maneira absolutamente
radical, como o exemplo que eu dei de especulação financeira. E se trata também
de uma economia oligopolizada. A gente usa o exemplo do Paxlovir, que é um
medicamento, não é vacina, é um medicamento para a Covid, e esse medicamento
está sendo vendido pela Pfizer a US$1.390 a caixinha. A Universidade de Harvard
fez a pesquisa, viu que o custo de produção desse medicamento é de US$13. O
comentário da empresa é que você precisa ver o valor que você dá à sua vida, e
não o custo da nossa produção. Estamos nesse nível diferente, que não é voltar
a regular o capitalismo, porque o que a gente está enfrentando não é mais
capitalismo, é um sistema global de dinheiro imaterial, extremamente fluido,
controlado por um oligopólio planetário, que exige outras medidas, outras
formas de enfrentar o sistema.
·
E nessa área do conhecimento, o livro vai chamar de
“conhecimento como principal fator de produção”, e a gente vai passar por temas
como esse controle da produção, por exemplo, na área de entretenimento, onde
quem produz o filme é também dono dos meios de comunicação e distribuição, ou
mesmo tratar, na universidade, do custo de acesso a livros e textos. Enfim,
conta um pouco como é que tem se relacionado esse controle do campo das ideias
a esse sistema novo que a gente está tratando.
Hoje
nós estamos enfrentando um oligopólio planetário. Eu fiz um artigo para a
Universidade da Califórnia, a pedido deles. Não me pagaram nada, me convidaram
porque eu tenho currículos, conhecem os meus trabalhos, é investimento meu.
Eles navegam nisso, pedem o artigo, eu escrevi o artigo, publicaram. Mas eles
terceirizam a publicação dos artigos com a Sage, que é um grupo internacional
de publicação de artigos científicos. A Sage me manda o artigo dizendo que eu
posso acessar durante 24 horas. O meu artigo que eu escrevi, que não me
pagaram, mas que se eu quiser ler amanhã eu tenho que pagar US$34 por 24 horas.
Depois eu recebi uma sugestão para recomendar aos meus amigos que leiam o meu
artigo. Ou seja, para ler o meu artigo a cada 24 horas, sem poder gravar no seu
computador. Uma fortuna. Na realidade, por que é isso? Porque você coloca
entraves ao acesso.
Isso aí
tem uma batalha contrária, que é o Open Access, que é o Creative Commons. Por
exemplo, você pega o meu site, tem cerca de 1.500 títulos, nós somos uma rede
que disponibiliza tudo online gratuitamente, o que não me gera custos, mas que
permite que mais gente acesse esse conhecimento. O conhecimento, uma vez
criado, pode ser generalizado para todo o planeta sem custos adicionais. Os
chineses traduziram o livro meu, A era do capitão improdutivo [no Brasil, por
Autonomia Literária e Outras Palavras], e não me tira a pedaço o fato de um
monte de gente na China ler o meu livro.
Se eu
pego o meu celular, eu tenho lá, quando muito, 5% de trabalho físico e de
matéria-prima. Quer dizer, a indústria. 95% do valor do celular é conhecimento
incorporado, são ideias. Essas ideias podem circular pelo planeta. Daí a
batalha dos grandes grupos internacionais, pega Ed Server, por exemplo, de
dificultar o acesso para poder cobrar.
Agora o
conhecimento pode ser generalizado. Por que a China acelerou de tal maneira os
seus progressos científicos? Na China, o cara que tem uma ideia, que
desenvolveu uma tecnologia na universidade, ele não sai da universidade para
abrir uma startup e esperar que alguém compre a ideia. Ele recebe um bônus e o
avanço científico dele é repassado para todo o sistema universitário da China e
os centros de pesquisa. Está entendendo? Ou seja, se adquire um efeito
multiplicador do conhecimento absolutamente brutal. E ninguém fica reinventando
a roda. Porque o progresso de qualquer parte da China é repassado para o
conjunto.
Ou
seja, o conjunto evolui. Por que isso é tão importante? Porque, na realidade,
esse sistema na China se chama ORE, Open Resource for Education. O MIT nos
Estados Unidos adotou o mesmo sistema, se chama OCW, OpenCourseWare. Outros já
estão adotando. Porque nós podemos generalizar um processo colaborativo
planetário de avanço científico fenomenal.
O que
fazem os grandes grupos? Tentam impedir isso. Dizem que é pirataria, enfim,
tudo o que a gente ouve no rádio, essas coisas. Então, você tem uma tensão
entre os avanços científicos e tecnológicos que são de cientistas,
essencialmente, que permitem imensos avanços e imensas possibilidades de
progresso. Você tem uma batalha dos grandes grupos, das corporações, que querem
colocar pedágio em cada conhecimento para mamar simplesmente sobre o trabalho
dos outros. É uma imensa transformação porque, justamente, as ideias estão no
centro da economia. Por que tem essa batalha dos grandes grupos internacionais
de privatizar a educação no Brasil? Isso faz parte dessa tensão. O pano de
fundo é que, antigamente, a briga era quem controlava, quem era dono da fábrica.
Hoje, na realidade, é quem controla o sistema de comunicação, de informação e
de conhecimento.
·
E tem saída para a gente retomar um pouco o controle
sobre isso, sobre o dinheiro? O senhor vai falar do rentismo, vai tratar desse
dreno rentista e vai trazer depois, para citar aqui um exemplo muito palpável,
que há poucas décadas um executivo recebia cerca de 30 vezes o salário médio
pago por suas empresas. Hoje, isso bate 300, 400 vezes. No exemplo do livro,
até 680 vezes. E aí é interessante pensar essa diferença, hoje, obscena do
salário de um executivo, de um líder da empresa, de um CEO, para um operário.
Como a gente trata, então, desse tema se a diferença está desse nível, de
perder de vista para um trabalhador comum?
Você
sabe que, em grande parte, isso depende do fato de que quando você tem
exploração através da mais-valia, que continua, mas é muito menor, se numa
empresa o patrão está pagando mal ou tem condições de trabalho ruins, as
pessoas estão ali juntas, se organizam, brigam, fazem greve e se ajeitam de
alguma maneira. É claro, para um trabalhador, digamos, o fato de que ele está
sendo mal pago ou que não recebeu aumento frente à inflação, coisas do gênero.
Agora, o sistema financeiro as pessoas simplesmente desconhecem, não entendem
como se dá o processo.
A
lógica do processo decisório na empresa, nas grandes corporações atualmente, é
diferente, porque antigamente, o que se chamava capitalismo industrial, você
tem uma empresa, você conhece o proprietário da empresa, ele mora em tal lugar,
enfim, você tem coisas bastante claras. Hoje, pego, por exemplo, a Samarco, com
o desastre de Mariana, ligada e controlada pela Vale, pelo Bradesco, pela
Billiton Internacional e outros grupos. Você não tem um proprietário claro da
Samarco, você tem um conselho de administração que é nomeado através dos
grandes acionistas, a Billiton, a Vale, o Bradesco, etc.
Então,
a gente chama eles internacionalmente de absentee owners, de
proprietários ausentes. Quando começou a vazar a barragem da Samarco em
Mariana, eles viram, já sabiam, havia dois anos que estava vazando. Agora, a
opção deles era entre consertar a barragem, que significava investir dinheiro
na própria empresa, ou pagar mais dividendos. Eles optaram por pagar mais
dividendos, pagando mais dividendos para gente ausente, que está na Austrália,
que está em diversos lugares do mundo, que são acionistas. Quando você
privatiza uma empresa, você desnacionaliza também. Qualquer grupo internacional
compra essas ações e passa a controlar.
Eles
passam a ter, digamos, uma capacidade de extração dentro do país. Agora, se
essa Samarco, o conselho de administração, não paga mais dividendos para os
proprietários nacionais e internacionais, para o pessoal da área de finanças, o
que acontece? O próprio bônus deles vai ser reduzido. Resultado? Você não tem
mais uma gestão na empresa pensando no futuro da empresa, no desenvolvimento do
país, em gerar emprego ou produto útil, coisa do gênero. Eles pensam
simplesmente em como maximizar a extração financeira. Isso foi ajudado porque
esses grupos têm suficiente poder para eliminar os impostos. Simplesmente um
dreno financeiro.
Por que
é tão importante isso? Porque é diferente um capitalista, digamos, tradicional,
o cara, sei lá, tem uma fábrica de bicicletas. Esse cara, se ele reinveste na
empresa, ele está interessado nisso, está aumentando o capital. Aqui não, é um
sistema de dreno. Então, isso muda o caráter do que a gente chamava de
capitalismo, porque no centro do capitalismo tem o conceito de acumulação de
capital. O cara tem uma empresa, ele explora os trabalhadores, investe em mais
empresas, compra mais máquinas, e isso vai aumentando o capital do país. Agora,
esse dreno financeiro, através da Billiton, dos acionistas do Bradesco e de
outros, que lucram simplesmente exportando o recurso natural de um país e nem
sequer pagam impostos, isso naturalmente gera um sistema muito falho, que
deforma e que permite essas remunerações fabulosas de executivos, para mais de
300, e alguém, no caso da empresa britânica que eu menciono, mais de 600 vezes
o salário médio da empresa. Porque isso está junto, é dinheiro que eles extraem
da empresa e que se transforma em lucros de acionistas, em dividendos, em vez
de ser reinvestimento.
Por
exemplo, quando você tem a decisão da Petrobras, absurda, de elevar os preços
do petróleo para um nível de preços internacionais que não era necessário,
porque o petróleo está no Brasil, é nosso. O lucro é superior, porque um monte
de gente passou a pagar mais pelo botijão de gás, para encher o tanque de
gasolina, etc. Todo esse dinheiro nosso, de toda essa população, vai para
alguém. Então, esse lucro a mais da Petrobras, que você podia melhorar a
situação dos trabalhadores, você podia reinvestir na empresa para gerar maior
capacidade produtiva, você podia pagar mais impostos para esse produto que é da
nação, que está na terra, servir para financiar infraestrutura, saúde, etc… Mas
você pode aumentar o lucro dos que compraram as ações da empresa, os dividendos,
o sistema extrativo. No caso, claro, grande parte de todo esse empobrecimento
da população que pagou muito mais caro pelo gás, pela gasolina… Todo esse
dinheiro foi essencialmente para dividendos. Dividendos pagos a quem? Aos
acionistas. Acionistas que são nacionais, mas também internacionais. Isso se
chama financiarização. Isso deforma profundamente todo o sistema, porque
fragiliza o crescimento.
Por que
a China se desenvolve tão rapidamente? De um lado, aquilo que eu mencionei, ela
segura um sistema colaborativo de construção de ciência e tecnologia, mas, por
outro lado, ela tem um sistema extremamente forte de controle de agiotagem.
Para pegar um empréstimo na China, você vai pagar 4,6% ao ano. Desconto a
inflação de 2%, é um juro real de 2,6% ao ano. No Brasil, eu tenho os dados do
Banco Central, o juro para a família, em média, é 54%. Isso sem falar do
rotativo do cartão, que está 430%. Eu apresento esses números em reuniões
internacionais e o pessoal sorri, porque não acreditam que não estamos na Idade
Média. No século XXI tem um país que faz agiotagem dessa maneira. O Brasil não
é um país pobre, mas se trata de resgatar tanto o uso do conhecimento como o
uso do dinheiro, que são motores que ajudam a dinamizar o desenvolvimento. Tem
que se resgatar para as necessidades da sociedade. Nós temos que assegurar uma
sociedade que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e
ambientalmente sustentável. É um tripé básico, aceito mundialmente. E nós temos
o dinheiro necessário.
Eu faço
um cálculo muito simples, que apresento também no livro. Você pega o PIB do
Brasil, 12 trilhões de reais, dividido pela população de 215 milhões. Isso dá
17 mil reais por mês por família de 4 pessoas. O que a gente produz de bens e
serviços dá para todo mundo viver de maneira digna e confortável. É só reduzir
um pouco a desigualdade.
De
certa maneira, nosso problema não é econômico, nosso problema é de organização
política e social. Nós temos que assegurar que o dinheiro, a ciência, a
tecnologia, todas as nossas capacidades produtivas, sirvam para desenvolver o
país e não sejam extraídas pelo sistema financeiro ou sistema de controle de
ciência e tecnologia.
Fonte:
Blog Elefante

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