sexta-feira, 16 de maio de 2025

Advogados transformam defesa dos homens em ataque a mulheres

Nas redes sociais, advogados ensinam a revogar medidas protetivas, questionam leis de proteção e se anunciam como especialistas na ‘defesa de homens’ .

Tendência chamada de “advocacia para homens” ganha espaço nas redes, com perfis que questionam medidas protetivas e a aplicação da Lei Maria da Penha;

Especialistas alertam para estratégias jurídicas que podem desestimular denúncias e expor vítimas a novos ciclos de violência;

Práticas como divulgar decisões judiciais e prometer revogações são apontadas como possíveis violações éticas por entidades da advocacia.

“Especialista em revogação de medidas protetivas” é a frase que estampa a biografia do Instagram do advogado Julio Konkowski. Já Ináh Confolonieri se intitula “especialista na defesa de homens pais” e Mara Damasceno afirma que “não há justiça quando homens inocentes são silenciados”. Os advogados acumulam, juntos, mais de 161 mil seguidores e fazem parte de uma tendência em expansão: a “advocacia para homens”.

Eles defendem que “homens e mulheres não são iguais perante a lei“, em seus perfis, pois mulheres teriam “permissão social e legislativa para fazer falsas acusações e saírem impunes“. Afirmam que “a coisa mais fácil do mundo é conseguir uma medida protetiva” e ensinam estratégias para revogar as medidas “pelo cansaço”. Em tom de humor, dão conselhos como comprar “um cachorro bravo, de grande porte” para espantar a ex-mulher.

Esses profissionais chamam atenção pela quantidade de seguidores e repercussão, mas não são os únicos atuando nessa linha. Em maio, a reportagem analisou 24 vídeos publicados no TikTok, compostos pelos 12 primeiros resultados para os termos “advogado para homens” e “revogação de medida protetiva”. No primeiro caso, metade dos vídeos analisados trazem discursos que descredibilizam a palavra da mulher e sugerem que homens estão em risco.

Um advogado diz que, no divórcio, a mulher transfere o imóvel para o nome do filho “como fachada” para ser proprietária. Há ainda vídeos orientando que homens não fiquem sozinhos com mulheres nem as cumprimentem. Um dos profissionais resume: “a melhor defesa é o ataque judicial”. Apenas dois desses vídeos têm menos de mil curtidas, os mais “populares” registravam 18 mil, 23,1 mil e 62,7 mil curtidas.

Quando buscamos “revogação de medida protetiva”, a maioria dos conteúdos analisados tinha caráter informativo — com exceção de um vídeo em que o advogado celebra a revogação de uma medida protetiva repetindo na legenda cinco vezes: “falsas acusações”, duas vezes, a palavra “injusta”, e uma “denúncia falsa”. Neste grupo, nenhum vídeo ultrapassa 700 curtidas.

NÚMEROS MOSTRAM AUMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

No Brasil, 21,4 milhões de mulheres com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de violência, ou agressão, em 2024. O número representa um aumento expressivo nos últimos anos. De 2017 a 2025, a taxa de mulheres vítimas de violência passou de 28,6% para 37,5%, segundo a pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Mesmo sendo considerada uma das melhores leis do mundo por ativistas contra a violência doméstica, a Lei Maria da Penha (LMP) recebe críticas de advogados dos agressores em suas redes sociais. Eles justificam que estão oferecendo conteúdo jurídico e informativo. Muitos alimentam a ideia de que os homens estão sob ataque e reforçam a narrativa de que as leis — e as mulheres — são suas inimigas.

“Você pode fazer o que quiser, pode me processar, não vai acontecer nada comigo”. Carla*, de 34 anos, ouviu isso repetidas vezes do ex-companheiro. Durante oito anos, foi exatamente o que ocorreu: ele descumpriu medidas protetivas, fez ameaças de morte, perseguiu familiares e atacou profissionais da rede de apoio da vítima — sem nunca ser penalizado.

A violência começou durante a gravidez, se intensificou no pós-parto e, quando a filha do casal tinha apenas 17 dias, ele apontou uma faca para o pescoço de Carla*. A partir dali, ela decidiu romper o relacionamento. O que veio depois foram anos de perseguição judicial. “Eu precisava da Justiça para me proteger, mas o que aconteceu foi o contrário”, relata.

MEDIDAS PROTETIVAS NEM SEMPRE PARAM O AGRESSOR

As decisões judiciais chegavam por e-mail para Carla* e eram lidas no trabalho, desencadeando crises de ansiedade e pânico. “Eu tinha que parar o que estava fazendo, chorar, botar para fora, tentar respirar. Já precisei ir para a emergência”, relata. Ela acabou perdendo o emprego. Além de lidar com o impacto emocional e profissional, também carregou a culpa pela violência que atingiu as pessoas que ama — e a responsabilidade integral pelo cuidado da filha.

Carla* conseguiu medida protetiva, mas o assédio do seu agressor não se limitava a ela. “Ele percebeu que não podia mais me atacar diretamente, então passou a ir atrás de quem estava ao meu lado”, conta. Sua mãe, sua melhor amiga, a advogada e a terapeuta dela também sofreram ameaças do agressor, assim como as psicólogas da filha. Algumas delas recorreram à Justiça para conseguir medidas protetivas também.

O advogado Julio Konkowski não atuou no caso de Carla*, mas ele afirma que é especialista em revogar tais medidas e que “muitos homens são injustamente intimados de medidas protetivas”, em vídeo publicado em janeiro deste ano. Segundo ele, isso pode levar a quadros depressivos, paranoicos e de ansiedade, além de “acabar com a vida social, pessoal e trabalhista desse homem”. Embora repita a palavra “injusto” cinco vezes em menos de dois minutos, ele não apresenta nenhum dado ou pesquisa que comprove sua tese. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) confirmou para a reportagem de AzMina que não há levantamento sobre falsa comunicação de violência doméstica.

No encerramento do vídeo, Konkowski diz: “respeitem as mulheres”, enquanto, por uma fração de segundo, uma tela exibe a mensagem de que seu escritório é “o maior do Brasil especializado na defesa do homem na LMP (Lei Maria da Penha)”.

•        “Revogação de protetivas pelo cansaço”

Julio se apresenta como “o advogado mais vitorioso do Brasil na defesa do homem” na landing page do seu escritório, página voltada à captação de clientes. No YouTube, divulga vídeos com suas falas durante audiências e, no Instagram, publica capturas de tela de decisões favoráveis afirmando que “nunca teve um cliente preso” no âmbito da LMP.

Para a advogada Lázara Carvalho, da Comissão da Mulher na OAB-SP, essas práticas violam normas da profissão e transformam o direito em um instrumento de ataque. Ela destaca que o direito não pode ser colocado como vitrine, nem vender decisões como se fossem garantidas. “A advocacia não pode funcionar como uma Black Friday de processos”, critica Lázara.

A advogada cita o Artigo 5º do Código de Ética da OAB, que determina que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”, e o Artigo 7º, que proíbe a captação de clientes por meio de ofertas e promessas de sucesso. E reforça que advogados são proibidos de divulgar resultados de processos nas redes sociais.

Julio Konkowski atribui parte de seu sucesso ao “silêncio da suposta vítima”, como diz no vídeo: “revogação das protetivas pelo cansaço”. Ele explica que seu escritório pede a intimação da vítima ao formular o pedido de revogação, porque muitas mulheres não são encontradas ou não respondem dentro do prazo. Se ela não comparecer, ele argumenta que não há mais risco, facilitando a revogação da medida protetiva.

“NEUTRALIZE UMA FEMINISTA COM AS MESMAS ARMAS QUE ELA”

Com o antebraço direito levantado e os punhos cerrados, a advogada Ináh Confolonieri faz referência ao cartaz “We Can Do It”, atribuído como símbolo do feminismo. No vídeo, ela bate no próprio braço enquanto diz “lute como uma garota e neutralize uma feminista utilizando as mesmas armas que ela”. Usando reivindicações do movimento feminista, ironiza: “diga que é a favor da igualdade entre os gêneros e peça para dividir a conta do primeiro encontro”. Diz também: “lugar de mulher é onde ela quiser, então, ensine ela a trocar o pneu do carro sozinha”.

São discursos que escolhem a palavra ‘armas’ e buscam acirrar o conflito, mas muitas vezes são construídos para se encaixar na conta do humor. Para atrair seguidores e converter possíveis agressores em clientes, muitos perfis dessa linha de ‘advocacia para homens’ constroem a imagem da mulher como uma adversária ardilosa — protegida por leis injustas e disposta a destruir reputações. Ao desqualificar mulheres, eles reforçam a ideia de que os homens estão cercados por um sistema hostil.

Ináh fala em um vídeo que “homens e mulheres não são iguais perante a lei. […] Mulheres têm permissão social e legislativa para realizarem falsas acusações sobre os homens e saírem impunes”. Em outro, comenta que “pela lei, o homem tem que ser corno manso! É isso mesmo, se você for traído, pela lei, você não pode xingar ela com aquela palavra com P…”.

A advogada chama de “Xena” mulheres “tranqueiras”, que “gostam de usar unhas de gel muito compridas, maquiagem excessiva, sobrancelha marcada, silicone chamativo”, além de “roupas curtas e decotadas”. Ao responder um seguidor que questiona como “impedir que a Xena entre” em sua casa, Georgia sugere a compra de “um cachorro bravo, de grande porte”, porque “caso ela [mãe da filha dele] mostre as ‘garrinhas’ dela, você vai colocar o cachorro para poder espantar”.

As fontes ouvidas pela reportagem desconhecem dados que apontem um número elevado de falsas acusações na aplicação da Lei Maria da Penha, e, como dissemos acima, o CNJ também não tem dados específicos sobre isso. É possível que existam casos de denunciação caluniosa, mas isso não legitima o tipo de discurso desses advogados, frequentemente utilizado para desacreditar vítimas, dificultar o acesso à Justiça e perpetuar a violência.

Para Mariana Régis, advogada feminista de Direito das Famílias, essa estratégia defensiva se baseia no ataque à reputação da vítima. “A mulher vítima, na verdade, seria o algoz, e o agressor, a ‘vítima injustiçada’”.

“SITUAÇÕES QUE ANTES ERAM ABSOLUTAMENTE NORMAIS NUM CASAMENTO”

No seu perfil profissional do Instagram, Mara Damasceno, que escreve na apresentação que “homens inocentes são silenciados”, fala em um vídeo que se relacionar está ficando muito caro para o homem. “Casou, perde tudo, a mulher tem direito a tudo, manda o cara embora de casa com uma medida protetiva. Qual a segurança jurídica […] para um homem entrar num relacionamento?”, questiona mostrando indignação.

A realidade é que 40,7% (23,4 milhões) das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais já sofreram violência física, sexual e/ou psicológica por parte de um parceiro ou ex-companheiro ao longo da vida, conforme pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Entre as mulheres agredidas nos últimos 12 meses, 57% apontaram a própria casa como o local da violência.

Mara Damasceno questiona em seu perfil uma suposta criminalização do homem em situações que considera normais dentro de um casamento. “Agora, imagina só: o cara é casado, dorme ao lado da esposa e, num gesto de carinho, dá um beijo nela enquanto ela ainda está dormindo. Pronto! Agora o homem poder ser acusado de estupro de vulnerável”. No post, ela se referia à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que considera o estado de sono como possível vulnerabilidade para casos de estupro, mas a decisão do STJ inclui a análise do contexto.

O discurso de Mara induz a pessoa a entender que qualquer toque ou aproximação é considerado estupro, o que também não tem base nas leis brasileiras. O crime de estupro é tipificado no Artigo 213 do Código Penal como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. E a vulnerabilidade consta no Artigo 217 que se aplica a pessoas com menos de 14 anos e “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. 

Não por acaso, agressores escolhem advogadas mulheres para suas defesas, num cenário social em que homens geralmente contratam e valorizam outros homens. “Estar representado por uma mulher em uma ação de divórcio, alimentos e guarda é simbolicamente forte, transmite um recado ao juiz(a) e até mesmo à outra parte: ‘não sou machista, não sou violento – ou não estaria sendo defendido por outra mulher’”, explica a advogada feminista Mariana Régis.

POSTURA VIOLENTA DOS HOMENS É VALIDADA NAS REDES

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) foi criada a partir de uma necessidade urgente de proteção, com respaldo em tratados e convenções internacionais que reconhecem a violência de gênero como uma violação dos direitos humanos. Hoje, a LMP é considerada pela ONU uma das três principais legislações do mundo no combate à violência doméstica.

“Se existe um ‘direito das mulheres’, é porque há um contexto histórico de violação. O direito dos homens já existe há séculos – foi criado por e para eles”, reforça Gabriela Souza, advogada sócia da Escola Brasileira de Direito das Mulheres. Para ela não existe uma ‘perseguição contra os homens’, e sim  mulheres lutando para viver sem violência.

A narrativa de falsa opressão pode incitar, por exemplo, a violência processual de gênero: quando agressores se valem do Judiciário para assediar, desgastar e retaliar mulheres. Embora os perfis mencionados aleguem oferecer apoio jurídico, outro efeito prático aparece nos comentários das postagens: muitos homens se sentem validados em sua postura violenta. Essa atuação mina o reconhecimento e a responsabilização pela violência – algo que grupos reflexivos de homens buscam justamente reconstruir. Ao reforçar a ideia de injustiça, desestimulam a autocrítica e, com isso, podem aumentar a reincidência entre agressores.

“MOVIMENTO PARA SILENCIÁ-LAS E DESLEGITIMÁ-LAS”

É preciso diferenciar o legítimo direito de defesa de um homem acusado de violência doméstica da atuação que banaliza a lei, desacredita vítimas e empodera agressores.

O impacto dessas narrativas vai além das redes sociais e já atingiu até mesmo a figura que dá nome à lei. A palavra da própria Maria da Penha foi colocada em dúvida após o lançamento de um documentário da produtora Brasil Paralelo, em 2023. O conteúdo questiona as violências sofridas por ela – mesmo com seu agressor tendo sido condenado por tentativa de feminicídio – e impulsionou uma campanha de desinformação nas redes sociais. A onda de ataques foi tão intensa que, em junho de 2024, a ativista Maria da Penha precisou ser incluída no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do governo do Ceará.

Diante do cenário, a deputada Maria do Rosário (PT) propôs o PL 1433/2024, que busca tipificar a violência processual de gênero no Código Penal. A proposta prevê punições para quem usa o sistema judicial para perseguir, humilhar ou desgastar vítimas de violência doméstica e seus familiares. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em dezembro de 2024 e aguarda apreciação pelo Senado Federal.

A advogada Lázara Carvalho lembra que sempre que há avanços dos direitos das mulheres, há também uma reação violenta. Agora, vemos isso no direito: quando as mulheres começam a reivindicar espaço e exigir proteção, surge um movimento contrário para silenciá-las e deslegitimá-las.”

A reportagem procurou os advogados Julio Konkowski, Ináh Confolonieri e Mara Damasceno para comentar suas publicações e práticas profissionais. Todos foram contatados por e-mail e tiveram prazo de uma semana para responder às questões enviadas. Até o fechamento deste texto, nenhum deles deu retorno.

*Nome fictício para proteger a vítima.

 

Fonte: Por Mariana Roseti Maia, em AzMina

 

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