A
universidade refém do produtivismo
Pode-se
afirmar que o fundamento que estrutura o meio acadêmico brasileiro é o da
precarização, ou seja, a maior parte dos profissionais que produzem
conhecimento científico o fazem em condições de extrema dificuldade. Não há
muitas das condições básicas para a realização das atividades, seja em termos
de estrutura física ou de pessoal, fazendo com que o pesquisador e seus
colaboradores encontrem grandes dificuldades para realizar seu trabalho.
Os
professores das universidades públicas, onde é realizada a maior parte das
pesquisas, encontram dificuldades como a escassez de tempo para se dedicar à
pesquisa e à extensão, combinada a uma extensa carga horária de aulas. Os
professores das instituições privadas, com poucas exceções, não são
incentivados a fazer pesquisa nem a atuar na pós-graduação. Os
técnico-administrativos, além de gastar a maior parte do seu tempo em tarefas
operacionais, sofrem com todo tipo de preconceitos e marginalização, tornando
praticamente impossível a dedicação a outras atividades do espaço acadêmico,
como pesquisa e extensão. Os centros de pesquisa públicos são poucos e, a
despeito de produzirem importantes pesquisas, não conseguem dar conta das
necessidades demandadas pela sociedade.
Outro
aspecto a ser considerado se refere à materialização da precarização na
condição dos estudantes. Como os docentes têm dificuldades de tempo e de
estrutura para realizar suas pesquisas, acabam sendo os estudantes os
responsáveis por realizar parte dmerco trabalho, cabendo ao coordenador do
projeto se limitar a uma orientação genérica ou simplesmente colocar o nome no
artigo final. Esse elemento se manifesta em especial numa divisão de tarefas em
que a pesquisa dos orientadores é dividida em partes que os discentes assumem,
independentemente do seu nível de formação. Com isso, grande parte das
dissertações e teses desenvolvidas no interior dos grupos de pesquisa acabam
sendo não o produto do interesse dos pesquisadores em formação, mas fragmentos
de uma investigação cujos resultados estão voltados para os interesses e para o
currículo do docente que coordena o projeto.
Os
discentes, a despeito da enorme responsabilidade que acabam assumindo,
inclusive eventualmente de docência, recebem bolsas cujos valores não condizem
com suas necessidades vitais e mesmo de apoio às suas pesquisas. Em meio à
necessidade de aquisição de bibliografia, de viagem para pesquisas e eventos,
além de necessidades primordiais, como se alimentar e pagar aluguel, os valores
pagos pelas bolsas vão sendo corroídos pela inflação sem que haja qualquer
política de reajuste permanente. Um fator ainda mais degradante se refere ao
fato de que, em um cenário de crise econômica e desemprego, para esses
pesquisadores em formação a bolsa muitas vezes não está ligada a um projeto de
vida e carreira como pesquisador, mas apenas à necessidade imediata de sobrevivência.
Em meio
a isso, se coloca a supervalorização da titulação, onde a obtenção do doutorado
não é encarada como uma fase da formação do pesquisador, mas um objeto de poder
que pode ser utilizado como uma forma de distinção dentro do ambiente
acadêmico. Nas universidades o título de doutor pode representar também o ponto
mais elevado dentro da burocracia universitária, ocupando cargos de direção ou
mesmo a reitoria. O docente doutor pode orientar pesquisadores de todos os
níveis de formação, pleitear todos os tipos de financiamento e acessar todos os
cargos e órgãos disponíveis na instituição. Muitos doutores fazem questão não
apenas de ressaltar sua titulação, mas de destacar que isso os torna especiais
e, por isso, mais importantes que todos os demais profissionais que atuam na
instituição, inclusive em comparação até mesmo com técnico-administrativos que
possuem doutorado. Essa relação de poder e detenção de status é
uma demonstração de que “o capital universitário se obtém e se mantém por meio
da ocupação de posições que permitem dominar outras posições e seus ocupantes”.
Para
que seja relevante, o título de doutor dos pesquisadores precisa estar
acompanhado de uma rede de financiamento e alianças que possibilitem à
instituição obter mais e mais recursos. Em função disso, não importa a
relevância da pesquisa ou o papel que possui o pesquisador em sua área, mas
somente a capacidade que ele tem de obter recursos, sejam públicos ou privados,
e as redes de contatos em que está inserido. Para a maior parte das
instituições vale mais a pena ter um pesquisador que, embora sem grandes
contribuições em sua área de pesquisa, possua amigos influentes em outras
universidades e centros de pesquisa.
Essa
necessidade de busca por financiamento impacta na escolha do que é produzido na
instituição, ainda que a pesquisa seja irrelevante em sua área do conhecimento
ou apresente uma baixa qualidade teórica e metodológica. O critério passa pela
publicidade que a pesquisa possa alcançar e pela sua capacidade de ser vendida
ao mercado. Esse processo tem relação direta com a crise na qual se encontra o
sistema capitalista, que:
“[…]
reflete-se numa crise dos valores burgueses, da moralidade, da religião, da política
e da filosofia. O pessimismo que aflige à burguesia e aos seus ideólogos neste
período se manifesta na pobreza de seus pensamentos, na trivialidade de sua
arte e no vazio de seus valores espirituais. Expressa-se no espantalho
filosófico pós-modernista, que se imagina superior a toda filosofia anterior,
quando, na realidade, é absolutamente inferior”.
Muitas
das pesquisas se tornam meras repetições umas das outras, com pequenas
variações, dentro de grupos de pesquisas ou como parte de redes. Produz-se uma
grande quantidade de teses, dissertações e artigos que basicamente discutem os
mesmos assuntos, apresentando pequenas mudanças nos objetos ou nos problemas a
serem discutidos. Não há uma preocupação efetiva em ensaiar novas metodologias
e perspectivas, mas somente em chegar a um produto, o que obviamente é
garantido por uma metodologia conhecida e utilizada de forma repetida e
recorrente. Não se trata aqui de experimentos variados que levam a um novo
conhecimento, podendo contribuir inclusive para uma renovação daquele campo de
pesquisa, mas de um conhecimento pronto que basicamente vai sendo repetido à
exaustão e, dessa forma, garantir a produção em grande escala de dissertações,
teses e artigos.
Uma
consequência dessa repetição de métodos e procedimentos é um completo desdém
pelo debate teórico. Evita-se produzir reflexões que exijam a leitura
aprofundada de clássicos e um denso debate epistemológico, e que poderiam
apontar para novas interpretações ou mesmo para construções teóricas
inovadoras. O caminho mais comum é partir de algum referencial pronto,
normalmente algum autor ou um campo da moda na Europa ou nos Estados Unidos, e
aplicar na pesquisa. Muitos pesquisadores apenas se alongam em citações que,
com sorte, talvez façam sentido dentro da lógica do texto. Como consequência, a
ciência “se converter numa rotina de simples absorção e arquivamento de ideias,
de mera repetição de procedimentos conhecidos e sancionados, dos quais apenas
se esperam os resultados seguros e rendosos que não podem
faltar”. Torna-se, assim, praticamente impossível a construção de um
referencial teórico que apresente inovações e novos olhares para os objetos de
pesquisa.
Essa
situação acaba se mostrando mais grave na pós-graduação, onde se estruturou uma
avaliação quantitativa do trabalho realizado, embasada num sistema de controle
que inicia nos projetos em andamento, passa pelas orientações e trabalhos em
eventos, chegando à publicação de artigos e livros, exigindo uma coerência
temática e metodológica que é medida não por critérios teóricos e metodológicos
ou pela relevância para a área de conhecimento, mas, em última instância, por
palavras-chave ou número de citações. Os pesquisadores, as instituições a que
estão vinculados, os periódicos e os livros são categorizados e ranqueados,
sendo sua classificação um critério determinante na definição da distribuição
de recursos. Entende-se que essa “adoção do modo quantitativo de avaliação das
produções cientificas, e o fato de que ele passa ser visto como razoável,
decorre do processo de mercantilização ao qual a ciência está sujeita no
capitalismo”.
Esse
cenário de pressão pela produtividade está associado às mudanças na forma de
organização do trabalho, na medida em que o capitalismo necessita cada vez mais
que a técnica e a tecnologia garantam a diminuição nos custos de produção. No
sistema capitalista, “a grande indústria tem de incrementar extraordinariamente
a força produtiva do trabalho por meio da incorporação de enormes forças
naturais e das ciências da natureza ao processo de produção”. Cabe à
pesquisa um papel decisivo nesse processo, na medida em que possibilita a
incorporação de novas tecnologias ao processo produtivo, exigindo-se resultados
rápidos, inovadores e com impactos práticos. Como parte do processo de
“reorganização econômica, a esfera de natureza simbólico-cultural altera-se, para
constituir-se de valores e signos próprios da produção econômica, no contexto
de tecnificação da política e da cultura”. Consequentemente, diante de
dificuldades estruturais, de pressão pela produtividade, e de avaliações com
critérios arbitrários, criam-se formas de garantir dados estatísticos de
produção. Nesse sentido:
“[…]
a pressão produtivista gera o efeito perverso do agir instrumental e do
abandono do essencial (o processo em si, gerador de conhecimento e
enriquecedor da formação intelectual) pelo aparente, isto é, o resultado
espelhado na pontuação. Em outras palavras, privilegia-se a quantidade sem se
importar com a qualidade”.
Esse
problema se manifesta no comércio de publicações. O mercado das revistas
acadêmicas e as parcerias com empresas fazem com que se deixe de lado a
possibilidade de produção de conhecimentos que possam ter um caráter
socialmente refletido e que apontem para uma perspectiva minimamente crítica.
Construiu-se um complexo sistema de indicadores e estatísticas que mede não a
qualidade ou a importância do conhecimento produzido, mas a quantidade de
textos que o pesquisador produz. Não importa o conteúdo desses textos, se
repetem integralmente o que foi escrito antes ou mesmo se não tem alguma
relevância, mas sim as citações que faz e as que possa vir a obter. Os textos
podem não apresentar nenhuma contribuição para sua área do conhecimento, mas
tornam-se importantes dentro da realidade paralela do mundo acadêmico,
importância essa completamente subjetiva e que somente faz sentido para um
grupo específico de profissionais. O objetivo desses artigos produzidos em
grande quantidade não é a apresentação de reflexões realizadas a partir de uma
pesquisa com efetiva contribuição para seu campo de estudo ou a intervenção
para a solução de um problema da sociedade, mas a obtenção de resultados que
sejam mensuráveis por um sistema de avaliação definido com critérios arbitrários
e desconhecido pela esmagadora maioria das pessoas de fora da universidade.
Nesse
cenário, de precarização do trabalho da pesquisa e de atribuição de pouca
relevância ao conteúdo que se produz, a adesão aos modismos acaba sendo o
caminho seguido por pesquisadores em qualquer nível de formação. Os
pesquisadores acabam ou adotando os temas mais comuns do momento ou
incorporando métodos e teorias mais utilizados por seus pares, na medida em que
isso facilita tanto a obtenção de recursos e bolsas, como a publicação em
revistas. O pesquisador deixa de ser um profissional que procura novos caminhos
para seu trabalho, onde poderia encontrar saberes ainda pouco conhecidos e nada
explorados, para permanecer estagnado em um lugar lotado e totalmente
desgastado. Outro aspecto tem relação com o fato de esses métodos, teorias e
objetos de moda normalmente expressarem interesses privados que, mesmo quando
não influem de forma direta sobre o financiamento da pesquisa, determinam a
importância que se deve dar ao trabalho do pesquisador.
Essa
busca por estar na moda e em harmonia com os temas e teorias dominantes nos
meios acadêmicos também tem como consequência o fato de se evitar quaisquer
polêmicas. Se há divergências teóricas, deve-se ou fazê-las da forma mais
cordial possível ou até mesmo evitar torná-las públicas, embora a produção do
conhecimento necessite do debate e da crítica para apontar não apenas
limitações do trabalho realizado, como indicar possíveis caminhos a serem
seguidos. Nos diversos campos, dominam teorias, temas e métodos quase
consensuais, parecendo que todos falam a mesma coisa, ainda que com pequenas
variações na forma. O meio acadêmico atualmente existente, com raras e
marginalizadas exceções, não é constituído por um espaço de debate aberto e
saudável, mas por um comodismo que aceita passivamente os modismos dominantes e
a precarização estrutural.
Nos
últimos anos, algumas vozes têm se levantando para denunciar os problemas
enfrentados pelos pesquisadores, enfatizando especialmente cortes de verbas
para fomento, dificuldades estruturais e a ameaça de perda de bolsas. Contudo,
de forma geral, essas críticas não apresentam uma análise da lógica perversa do
meio acadêmico e do fato de que sua precarização não se limita a um projeto de
governo, mas constitui-se em uma estratégia diretamente ligada aos interesses
do capital, que tem como objetivo a completa transformação do conhecimento em
mercadoria. Deve-se ressaltar que:
“[…] as
atividades intelectuais de produção da ciência e da tecnologia não se
constituem processos autônomos, independentes da realidade concreta onde se
efetivam. A ciência revela-se historicamente como instrumento de poder. Ela
passa a atuar junto às forças produtivas de forma cada vez mais decisiva,
ampliando cada vez mais sua potência econômica”.
O
Estado, diante das variações no modo e nas relações produções, adapta as
políticas educacionais e de pesquisa aos interesses do capital, priorizando ora
investimentos com recursos públicos, ora a entrega da educação à gestão
privada, com ou sem recursos do Estado. Portanto, a despeito de todas as
mediações possíveis, em última instância, a educação sob o capitalismo é
funcional à produção de valores de troca e à exploração do trabalho. Com isso,
a possibilidade de avanço na produção do conhecimento mostra-se incapaz de
romper as barreiras da sua mercantilização, exigindo das organizações
trabalhadores ações que se coloquem no sentido de romper essa bolha perversa.
Fonte: Por Michael
Goulart da Silva, em Outras Palavras

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