Valério
Arcary: Brasil, nação “interrompida”?
Uma
nação não é mesmo que um Estado. Há nações oprimidas sem Estado, como os
palestinos e curdos. Há Estados que exercem poder sobre várias nações, como o
Espanhol, que oprime catalães, bascos, e galegos, entre outros. Toda nação tem
determinações objetivas – uma geografia e uma história, espaço e tempo – mas é,
sobretudo, a construção histórica da consciência que um povo tem de si mesmo.
Uma nação está formada quando se consolida uma identidade nacional. Ou quando
um povo se reconhece a si mesmo como uma “comunidade de destino compartilhado”,
segundo Benedict Anderson.
Nessa
dimensão, a nação é uma consciência de pertencimento. O Estado é um aparelho de
coerção e representação do poder político. O país é uma síntese do
Estado-nação. A maioria das nações foram construções políticas, porque os
Estados anteciparam a nação. Em outras palavras, o padrão histórico foi a
consolidação de Estados nacionais como instrumentos da transformação da
sociedade, com suas estratificações raciais, sociais, regionais, linguísticas e
culturais em uma nação. O sujeito social desta mobilização ideológica de um
povo em nação foi, historicamente, a burguesia que, além de dominar,
ambicionava conquistar hegemonia e dirigir.
A
construção da nação foi uma das tarefas das revoluções democráticas. Mas
assumiu formas diferentes em cada país. Nos países centrais aconteceu de forma
pioneira, em comparação com a lentidão dos países na periferia do sistema
internacional, e serviu para legitimar ideologias imperialistas. Já entre as
ex-colônias, embora as variações tenham sido muito grandes, se compararmos
América Latina, África e Ásia, o nacionalismo assumiu uma dupla e até
contraditória dimensão: validou a dominação burguesa, mas teve, também, um
papel progressivo de luta pela independência nacional.
Nação
brasileira e revolução
Existe
uma nação brasileira, porque o povo se identifica com um destino comum, mas o
seu processo de formação foi muito complexo e conflitivo por, pelo menos, três
fatores:
1)
trezentos anos de escravidão onde foi imposto à maioria negra e indígena
condições desumanas de superexploração e opressão;
2) um
processo lento de construção do Estado Nacional;
3) o
terrível atraso e incompletude da revolução burguesa.
A ideia
original de uma nação em processo, porque a revolução burguesa ficou “inacabada”
foi formulada por Caio Prado Jr.. A interpretação de uma nação “interrompida”
responde à condição dependente diante da ordem imperialista, mas, também, à
principal peculiaridade da história brasileira: a extrema desigualdade social.
O
Brasil, o país mais importante ao sul do Equador, é uma sociedade fraturada por
uma aberração histórica: um grau de injustiça social absurdo e monstruoso. O
Brasil é o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das dez
maiores economias do mundo, com vinte e duas cidades com um milhão ou mais de
habitantes, e 85% da população economicamente ativa em centros urbanos. Um
laboratório histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Uma união do
obsoleto e do moderno, um amálgama de formas arcaicas e contemporâneas.
Insere-se no mundo como um híbrido de semicolônia privilegiada e submetrópole
regional. Mas o desafio de uma interpretação marxista do Brasil é a resposta ao
tema da principal peculiaridade nacional: a desigualdade social extrema. Essa é
a nossa excepcionalidade. Essa é a chave da revolução brasileira.
Escravidão,
desigualdade e burguesia
Se a
chave de interpretação do Brasil é a desigualdade social, a chave da
desigualdade é a escravidão. Sem compreender o significado histórico da
escravidão é impossível decifrar a especificidade do Brasil. O capitalismo
brasileiro perpetuou a escravidão até quase o fim do XIX. Uma escravidão tão
longa e em escala tão grande deixou uma herança social que não é, somente, uma
curiosidade histórica.
A
população indígena, estimada em três milhões, dois milhões ao longo da costa, e
um milhão nos interiores, foi dizimada quando da invasão. O Brasil conheceu a
escravidão indígena até às reformas pombalinas, na segunda metade do século
XVIII. A escravidão negra surge com as primeiras fazendas de monocultura de
açúcar, a partir de 1530, e persistiu durante, aproximadamente, três séculos e
meio. Estima-se que a população escrava não deve ter sido menor que um terço do
total até 1850, e pode ter sido próxima à metade, ou pelo menos 40% no século
XVIII, no auge da exploração do ouro das Minas Gerais.
No
Brasil a burguesia surgiu no século XVI e o proletariado no final do XIX. Na
Europa a burguesia se forjou, também, como classe muitos séculos antes da
existência do proletariado moderno, mas como classe média proprietária, porém,
oprimida, não como classe dominante, e teve que lutar pelo poder. A burguesia
brasileira teve duzentos e cinquenta anos para se formar como classe dirigente,
ainda que subordinada à metrópole.
·
O
“caráter nacional” do povo brasileiro
Todas
as nações capitalistas, no centro ou na periferia do sistema, são desiguais, e
a desigualdade está aumentando desde a década de oitenta. Mas o
capitalismo brasileiro tem um tipo de desigualdade anacrônica. Por que os graus
de desigualdade social foram sempre tão, desproporcionalmente, elevados, quando
comparados com as nações vizinhas, como Argentina, ou Uruguai?
Hipóteses
reacionárias variadas foram elaboradas, ao longo de décadas. As mais influentes
eram fundamentadas em premissas racistas, inspiradas pela eugenia, em um debate
que não é somente histórico, porque nos informa sobre um traço, especialmente,
aberrante da mentalidade de frações da classe dominante que ainda subsiste.
Obras lusofóbicas como Evolução do Povo Brasileiro, de 1923, de
Oliveira Viana, que defendia a necessidade do “embranquecimento” do povo,
pretenderam explicar a desigualdade pelo atraso, e o atraso pela miscigenação
de raças. Outras, como Casa Grande e Senzala de Gilberto
Freire, adepto da lusofilia, apresentam a miscigenação como uma chave de
distinção progressiva no Brasil entre os países, como os Estados Unidos, em que
se impôs a apartação racial, o apartheid.
A
burguesia brasileira buscava intérpretes de sua história que pudessem legitimar
uma demanda ideológica para o seu nacionalismo. A ideia de uma “nação de
sangue” como fundamento da interpretação do caráter de um povo revelaria um
destino histórico para a sociedade. A investigação do que seria o caráter do
povo brasileiro passou então a ser o centro de um projeto ideológico.
A visão
do Brasil como um país de povo dócil e intensamente emocional correspondia às
necessidades da classe dominante de encontrar o “caráter nacional” do povo
brasileiro, em uma época em que a sociologia estudava o caráter “enérgico” dos
alemães ou “passional” dos italianos. A obra de Sergio Buarque de
Hollanda, Raízes do Brasil, apresentou a ideia do “brasileiro
cordial”. Mas Sergio Buarque estava preocupado em compreender, sobretudo, a
aversão da classe dominante ao critério meritocrático liberal.
A
mobilidade social do Brasil agrário era muito baixa e lenta. O Brasil era uma
sociedade muito desigual e rígida, quase estamental. Era estamental porque os
critérios de classe e raça se cruzavam, forjando um sistema híbrido de classe e
casta que congelava a mobilidade. A ascensão social era somente individual e
estreita. Dependia, essencialmente, de relações de influência, portanto, de
clientela e dependência através de vínculos pessoais: o pistolão. O critério de
seleção era de tipo pré-capitalista: o parentesco e a confiança pessoal.
Publicada,
em 1936, e resgatada do esquecimento por Antonio Cândido nos anos
sessenta, Raízes do Brasil exerceu influência, inclusive, na
esquerda. A avaliação da resistência ideológica ao liberalismo era o centro de
seu pensamento: alguns interpretaram, erroneamente, que ele
estariadefendendo que o conceito de “homem cordial” era uma imagem que remetia
somente a uma afetuosidade natural, uma gentileza autêntica, uma presteza no
trato. Mas Sergio Buarque sublinhou a prevalência durante muitas gerações de uma
inserção social quase hereditária de castas: os filhos dos sapateiros, ou dos
alfaiates, ou dos comerciantes, ou dos médicos, engenheiros, advogados herdavam
o negócio dos pais. A grande maioria do povo não herdava nada, porque eram os
afrodescendentes do trabalho escravo, predominantemente, agrário.
·
Marxismo
brasileiro
Aassimetria
do processo histórico-social de formação das duas classes mais importantes da
atual sociedade brasileira potencializou no marxismo três posições opostas. A
escola influenciada pelo PCB defendeu a tese de que ela teria sido feudal.
Alberto
Passos Guimarães e sua obra Quatro séculos de latifúndio conseguiu
grande repercussão. Nelson Werneck Sodré que exerceu grande influência no
ISEB até à sua proibição em 1964, publicou Formação Histórica do
Brasil, que obteve boa recepção. O diálogo dos estalinistas, a
corrente política da esquerda mais forte, nos anos cinquenta, com os
estruturalistas, a escola teórica mais influente, fez esta interpretação
prevalecer até os anos sessenta. Não admitiam a possibilidade da existência de
uma colonização capitalista desde a invasão portuguesa. Defenderam que uma
sociedade deve ser caracterizada, historicamente, pelas relações sociais de
produção dominantes. Afirmaram, como um dogma, que o que caracteriza o
capitalismo é, em primeiro lugar o trabalho assalariado. Se o trabalho
assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista. Insistiram durante
décadas na defesa esdrúxula de que teria existido feudalismo no Brasil. Jacob
Gorender contribuiu para o debate com uma elaboração mais inspirada, compartilhada
por Ciro Flamarion Cardoso, sugerindo que o Brasil teria conhecido um modo de
produção próprio, o escravista colonial.
Gunder
Frank respondeu aos cepalinos dualistas defendendo que a colonização da América
Latina teria sido diretamente capitalista, ao fundamentar sua versão da teoria
da dependência com a famosa fórmula de que o futuro do capitalismo seria o
“desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Mas esta formulação, uma posição
simétrica à dos estruturalistas, era, também, unilateral. Gunder Franck teve o
mérito de ser um pioneiro entre os circulacionistas. Afirmava que a colonização
teria sido, sumariamente, capitalista, desprezando o fato monumental de que,
por exemplo, no Brasil, o escravismo criou raízes profundas em quase quatro
séculos de existência. Duas décadas depois, os circulacionistas, porque
defendiam que a integração das colônias à circulação mundial do capital era um
critério suficiente para definir a colonização como capitalista, passaram a ser
mais conhecidos como a escola do sistema-mundo, inspirados em Immanuel
Wallerstein e Giovanni Arrighi.
A
terceira corrente foi a dos marxistas de tradição trotskista, como o argentino
Nahuel Moreno e o chileno Luís Vitale que, inspirados pela teoria do
desenvolvimento desigual e combinado, reconheceram que a colonização teria sido
um processo mais complexo, porque resultado de um amálgama entre interesses
capitalistas, relações sociais escravistas e formas legais feudais, portanto,
uma formação social original, um híbrido histórico e alertavam que:
“se a
colonização foi desde o princípio capitalista não cabe mais que a revolução
socialista na América Latina, e não uma combinação e subordinação da revolução
democrático burguesa à revolução socialista”
O
marxismo latino-americano foi educado sob a influência de um pseudomarxismo que
tinha bebido nas fontes dos historiadores liberais. Eles pregavam que uma
suposta colonização feudal pela Espanha e Portugal tinha sido a origem do nosso
atraso relativo aos Estados Unidos. Este falso esquema da colonização foi
suplantado em alguns ambientes marxistas por outro tão perigoso quanto o
anterior: a colonização da América Latina teria sido diretamente capitalista.
Gunder Frank foi um dos representantes mais importantes desta nova corrente de
interpretação.
·
Como
bem respondeu George Novack para Gunder Frank
“o
capitalismo começa a penetrar, formar, a caracterizar por completo a América
Latina (…) já, no século XVI. Produção e descobrimentos por objetivos
capitalistas; relações escravas ou semiescravas; formas e terminologias feudais
(igual que o capitalismo mediterrânico) são os três pilares em que se assentou
a colonização da América (…) Não inauguraram um sistema de produção capitalista
porque não havia na América um exército de trabalhadores livres no mercado. Foi
assim como os colonizadores, para poder explorar, capitalísticamente, a
América, viram-se obrigados a recorrer a relações de produção não capitalistas:
a escravidão ou uma semiescravidão dos indígenas.”
Nesta
chave a revolução brasileira será a simultaneidade de várias revoluções: será
ambientalista e educacional, democrática e agrária, negra e feminista, operária
e popular, anticapitalista, mas, também, anti-imperialista. Ela virá.
Fonte: Jacobin Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário