A
gamificação do ódio no submundo das redes
As mais
de 2 milhões de pessoas que assistiram ao show gratuito de Lady Gaga na praia
de Copacabana, no sábado passado (03/05), não podiam imaginar que quase viveram
uma tragédia motivada pelo ódio. Enquanto o mar de gente batia leques em
sincronia com os sucessos da cantora, em uma celebração de diversidade e
empatia, a Polícia Civil do Rio de Janeiro impedia um ataque com coquetéis
molotov e bombas improvisadas.
Tratava-se
de um atentado organizado por jovens usuários de plataformas digitais como o
Discord, que mirava o público LGBTQIA+ e crianças. Chamavam o plano de “desafio
coletivo”, em busca de notoriedade online. O episódio, que poderia ter
terminado em luto nacional, é um alerta urgente sobre o crescimento de redes de
ódio entre os mais jovens — e sobre como as plataformas, de forma
irresponsável, fomentam essa radicalização.
Há algo
de profundamente geracional nesse fenômeno. A série Adolescência, da Netflix,
bateu recorde de espectadores ao retratar com crueza como jovens vivem em
ambientes hiperconectados, com ausência do Estado e de supervisão parental e
permeados por bullying, masculinidade tóxica e normalização da violência. É um
espelho não só do que acontece no Brasil, mas também no mundo afora. Dados do
Gallup mostram que estamos diante de uma ruptura ideológica entre jovens homens
e mulheres da Geração Z.
Nos
Estados Unidos de Donald Trump, mulheres de 18 a 30 anos são hoje 30 pontos
percentuais mais liberais que seus pares masculinos. Na Alemanha, onde uma
aliança de direita saiu vitoriosa em eleições recentes e o partido de
extrema-direita AfD está crescendo a uma taxa alarmante, a diferença também é
de 30 pontos. Na Polônia, embora a extrema direita tenha deixado o poder no fim
de 2023 depois de 8 anos, quase metade dos homens entre 18 e 21 anos apoia
partidos dessa orientação política, contra apenas um sexto das mulheres da
mesma faixa etária.
Misoginia,
racismo e transfobia
Tal
polarização entre jovens se dá justamente num momento em que redes como o
Discord, TikTok e Reddit se tornaram espaços formativos de identidade. Em vez
de promoverem diversidade, no entanto, muitas dessas plataformas funcionam como
máquinas de produção e circulação de ódio. O estudo “Mapping Discord’s
Darkside”, publicado na New Media & Society, revela que, apesar dos
esforços de marketing para se distanciar da extrema-direita, o Discord abriga
milhares de servidores associados a discursos neonazistas, misóginos, racistas,
transfóbicos e conspiratórios. Foram identificados 2.741 servidores com essas
características — com mais de 850 mil membros ativos.
Essas
redes acabam funcionando como espaços de aliciamento, em que jovens,
principalmente meninos, são atraídos por memes ousados (“edgy”), promessas de
pertencimento e jogos de identidade baseados na exclusão do outro. A estrutura
do Discord, que valoriza a privacidade e descentralização, se tornou o terreno
fértil ideal para o surgimento dessas “tecnoculturas tóxicas”, como define a
pesquisadora Adrienne Massanari. Plataformas como Disboard — um motor de busca
informal para servidores de Discord — são utilizadas para recrutar adolescentes
para comunidades que glorificam o nazismo, estimulam o ódio a mulheres e
LGBTQIA+, e até oferecem “serviços” de ataques coordenados a outros servidores.
Parte
do sucesso desses ambientes de radicalização se deve à gamificação — o uso de
elementos típicos de jogos, como desafios, recompensas e rankings, em contextos
que não são jogos. Aplicada a redes sociais e fóruns extremistas, a gamificação
transforma o engajamento em competição e o discurso de ódio em desafio lúdico.
Essa prática torna a entrada no extremismo mais palatável, disfarçando a
violência por trás de mecânicas aparentemente inofensivas. Como observa o
relatório “Gamification and Online Hate Speech”, a gamificação torna-se uma
poderosa ferramenta de normalização e disseminação do ódio, principalmente
entre jovens que buscam reconhecimento e pertencimento.
Esse
processo, chamado de “gamificação bottom-up”, acontece quando os próprios
usuários criam as regras, recompensas simbólicas e desafios. Por exemplo, ao
transformar discursos de ódio em “desafios” que envolvem humilhar mulheres ou
membros da comunidade LGBTQIA+ online, o grupo promove a desumanização desses
alvos de forma lúdica e viral.
Incentivo
à violência em forma de ‘desafio’
A
investigação do ataque frustrado ao show da Lady Gaga em Copacabana revelou
justamente esse mecanismo: o atentado era tratado como um “desafio coletivo”,
com jovens sendo recrutados para fabricar coquetéis molotov e mochilas
explosivas com o objetivo de obter notoriedade nas redes sociais. O discurso de
ódio não aparece como ponto de partida, mas como consequência internalizada
após repetidas interações lúdicas com conteúdos violentos.
A
lógica da gamificação também cria uma estrutura de “conquista” e “pontuação”
que estimula competição e reforça a ideologia radical. Como mostra o estudo de
Lakhani e Wiedlitzka de 2022, ataques como o de Christchurch foram planejados e
executados com forte inspiração em jogos, incluindo transmissões ao vivo
semelhantes a “Let’s Play” e comentários de espectadores que tratavam o número
de mortes como uma “pontuação”.
Essa
estetização da violência serve como elemento de coesão comunitária entre jovens
do sexo masculino em espaços digitais, especialmente os que já se sentem
deslocados ou frustrados, e encontram nesses jogos de ódio uma forma de
pertencimento e afirmação. Assim, a gamificação transforma o ódio em
entretenimento, reforçando laços em comunidades tóxicas e dificultando a
percepção de que aquilo é, de fato, extremismo.
Estamos,
portanto, diante de um duplo desafio: o da moderação das plataformas e o do
acolhimento geracional. A divergência de gênero da Geração Z não é trivial. Ela
reflete o abismo entre a geração de jovens mulheres que, despertadas pelo
#MeToo e outras lutas feministas, abraçaram pautas progressistas, enquanto a
geração de homens, em reação, é cooptada por discursos conservadores e
misóginos em ambientes digitais.
Esse
abismo tem consequências reais no debate público, nas relações pessoais, no
espaço escolar e, de forma geral, na democracia. Mas ele também revela algo que
precisa ser dito com todas as letras: a regulação das plataformas não é uma
questão técnica, mas uma questão de justiça geracional. O futuro de uma geração
não pode ser construído sobre algoritmos que premiam o ódio e a radicalização.
O
Brasil precisa urgentemente avançar na regulação das plataformas, mas de forma
inclusiva, ouvindo as juventudes, especialmente aquelas das periferias e das
comunidades mais vulneráveis, que são frequentemente silenciadas no debate
público. Precisamos discutir mecanismos que coíbam o uso de plataformas para o
recrutamento em massa de jovens por grupos extremistas e que responsabilizem
empresas que terceirizam a moderação enquanto alimentam ecossistemas tóxicos.
Ao
ignorarmos o alerta, corremos o risco de normalizar a ideia de que a
radicalização de jovens é apenas um efeito colateral do mundo digital. E isso é
inaceitável. Como nos lembra a série Adolescência, por trás de cada tela há um
jovem buscando pertencimento, sentido e futuro. Não podemos deixar que essas
buscas encontrem o caminho da intolerância e do ódio.
• Por que se ataca o Comitê Gestor da
Internet?
As
bancadas conservadoras da Câmara dos Deputados lançaram, há semanas, campanha
contra um dos órgãos de gestão da internet mais conceituados e repeitados em
todo o mundo: o CGI-Brasil. Em meio à carência constante de verbas para a
Ciência e Tecnologia, o CGI tem se destacado por lançar mão de arranjos sábios
para cumprir sua missão. É ela que as bancadas conservadoras atacam – enquanto
defendem uma internet “sem controles”, ou seja, totalmente prostrada à lógica
de lucro máximo das big techs.
Ao
identificar os riscos presentes nessa movimentação, o Centro de Mídias
Alternativas Barão de Itraré emitiu nota de alerta.
É este
documento que reproduzimos a seguir:
“O
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé vem a público
manifestar extrema preocupação e indignação diante dos ataques ao Comitê Gestor
da Internet no Brasil (CGI.br), órgão multissetorial que é referência nacional
e internacional em matéria de governança da Internet e questões digitais.
A
denúncia que conclamamos às mídias independentes, ao movimento social
brasileiro e ao conjunto da sociedade a repercutir torna-se ainda mais urgente
diante do Projeto de Lei nº 4.557/2024, de autoria do deputado Silas Câmara
(Republicanos-AM).
A
proposta consiste em alterar a estrutura de governança da Internet estabelecida
há 30 anos no Brasil, minando, essencialmente, a representação da sociedade
civil. Isso significa, na prática, um retrocesso de proporções catastróficas.
O
modelo de governança da Internet vigente no Brasil é produto de um profundo
processo democrático de diálogo entre o governo e a sociedade, resultado de
décadas de acúmulo internacional e profunda experiência da academia brasileira,
somada ao setor produtivo que possibilitou a consolidação de uma estrutura
multissetorial.
Referência
mundial para o debate em torno de diretrizes e políticas para o ambiente
digital, o bombardeio contra o órgão tem como objetivo que as incumbências do
CGI.br sejam dominadas exclusivamente por interesses privados.
A
rigor, o PL 4.557/2024 coloca o órgão sob supervisão exclusiva da Agência
Nacional de Telecomunicações (Anatel), também transferindo à Agência as
atividades do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br)
relacionadas à gestão de nomes de domínio e aos demais recursos críticos de
Internet.
A
iniciativa do deputado Silas Câmara representa uma distorção brutal no desenho
do CGI.br: atualmente, o órgão é composto por 21 membros, sendo 9 provenientes
do setor governamental, entre os quais a própria Anatel (!), 4 do setor
empresarial, 4 do terceiro setor e 3 da comunidade científica e tecnológica,
além de um membro de notório saber em assuntos de Internet.
Os
membros não governamentais são eleitos para mandatos de três anos, sem
remuneração – portanto não resultam em custos adicionais ao Estado brasileiro
-, em um processo amplo, transparente e participativo, aberto a todas as
organizações da sociedade que têm interesse em pleitear a participação.
Para os
que têm dúvida ou desconhecem a importância do órgão, o próprio CGI.br, em nota
pública divulgada no dia 25 de abril de 2025, elenca suas atribuições, que vão
muito além do registro de domínios .br e alocação de endereços IP. A lista fala
por si só por que é imprescindível contar com o caráter multissetorial e a
participação do terceiro setor no órgão:
• Estabelecer diretrizes estratégicas
relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil;
• Propor programas de pesquisa e
desenvolvimento relacionados à Internet;
• Promover estudos e recomendar
procedimentos, normas e padrões técnicos e operacionais, para a segurança das
redes e serviços de Internet;
• Articular as ações relativas à
proposição de normas e procedimentos relativos à regulamentação das atividades
inerentes à Internet
Ainda
de acordo com o documento, os resultados apresentados nos 30 anos de CGI.br são
notórios: “A excelência na operação de um dos mais bem sucedidos nomes de
código de país – o .br; projetos de infraestrutura que contribuem diretamente
com a expansão, qualidade, estabilidade e resiliência da Internet no Brasil;
indicadores de segurança, qualidade e padronização, além de indicadores os mais
diversos sobre o uso de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na
sociedade brasileira; e, ainda, programas e iniciativas de divulgação,
informação e capacitação nas mais diversas áreas de interesse para o
desenvolvimento da Internet no país”.
Por
isso, o Barão de Itararé convoca o conjunto das mídias independentes, do
movimento social brasileiro e de toda a sociedade para prestar solidariedade,
defender o modelo vigente do CGI.br dos ataques aos quais está submetido,
considerando a importância da participação da sociedade na decisão dos rumos
das políticas digitais no país e a importância de manter em separado a
regulação da infraestrutura física das telecomunicações.
Não é
possível pensar uma governança da internet no Brasil sem haver o Comitê Gestor
da Internet no Brasil. Delegar o conjunto de atribuições do CGI para algum
outro órgão que não acumule a sua experiência pode resultar em uma perda não
apenas na qualidade da internet no Brasil, mas inclusive na violação de
diversos direitos por parte da sociedade brasileira.”
São
Paulo, 6 de maio de 2025
Centro
de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Fonte:
Por David Nemer e Arthur Coelho Bezerra, no The Conversation

Nenhum comentário:
Postar um comentário