Por que produtos
naturais nem sempre são melhores que sintéticos
Antes de escrever
esta reportagem, marquei horário na cabeleireira.
Enquanto ajustava a
capa de corte em torno do meu pescoço, ela apontava para o xampu que iria usar.
"É uma linha nova, feita com 90% de ingredientes naturais", explicou
ela.
O folheto anexo
continha descrições resumidas de cada um dos produtos da linha. Um dos xampus
continha extrato de figo-da-índia e outro usava frutos de açaí. Um terceiro
incluía sementes de chia.
Assim que entrei em
casa, peguei os frascos de xampu que comprei e olhei mais detalhadamente a
lista de ingredientes: álcool cetearílico, glicerina, cloreto de behentrimônio
e miristato de isopropila. Todos são substâncias comuns, feitas em laboratório.
Nenhum desses
ingredientes me preocupava. Mas, mesmo sendo empregados em quantidades muito
maiores do que qualquer um dos extratos de frutas, nenhum deles é destacado nos
anúncios da marca.
A tática empregada
– aparentemente com sucesso, no meu caso – existe há séculos. Ela é adotada com
frequência nas redes sociais, por marcas e influenciadores, e por políticos de
todo o planeta.
O chamado
"apelo à natureza", ou "falácia naturalista", é um dos
tipos mais comumente observados de falácias lógicas – falhas de
raciocínio que podem fazer uma afirmação parecer surpreendentemente
convincente.
Sempre que você
ouvir alguém afirmar que um produto ou prática é superior porque é
"natural", ou que outra é inferior (ou até prejudicial) porque não é
"natural", é porque a falácia naturalista está em andamento.
Dela surgem os
argumentos que defendem que determinado produto segue "os padrões da
natureza", ou que outra substância é ruim especificamente porque é
"química" ou "sintética".
A natureza é
maravilhosa em muitos aspectos e tem muito a nos ensinar. Mas por que algo não
é necessariamente melhor apenas porque vem da natureza?
A resposta é porque
a natureza não tem intenções, pelo menos em sentido consciente. Ou seja, ela
não tem a intenção de fazer o bem, ou de ajudar os seres humanos,
especificamente falando.
Não precisamos
filosofar muito para chegar a esta conclusão. Basta considerar algumas das
criações da natureza.
O arsênio, por
exemplo, é um produto natural que pode matar um ser humano adulto com uma dose
de até 70 mg. Outro produto natural é o amianto, que é cancerígeno.
O cianeto pode
matar com até 1,5 mg por kg de peso do corpo, se for ingerido. Ele é uma
fitotoxina, produzida naturalmente por mais de 2 mil espécies de plantas,
incluindo as amêndoas, damascos e pêssegos.
Por isso, alguns
remédios "naturais" frequentemente comercializados podem, na verdade,
ser perigosos para o consumo, como sementes de damasco moídas.
Esta é a questão do
uso da palavra "natural", tão comum nos anúncios de diversos
produtos. Trata-se de um termo mal definido, que não significa necessariamente
que o produto será melhor, ou até mais seguro, do que outras opções.
Uma pesquisa sobre
produtos para a dentição dos bebês rotulados como "naturais"
descobriu, por exemplo, que mais de 370 crianças sofreram efeitos adversos,
como convulsões ou delírios. Os produtos continham níveis inconsistentes, às
vezes elevados, de beladona.
É claro que também
podemos observar fenômenos naturais, além dos ingredientes empregados nos
produtos.
A varíola, por
exemplo, chegou a matar uma em cada três pessoas infectadas pela doença. Este
vírus de ocorrência natural foi responsável pela morte de uma quantidade
surpreendente de pessoas – 300 a 500 milhões, somente no século 20 – até que
foi erradicado graças à vacinação.
A hera venenosa, a
poliomielite, os tornados, as picadas de insetos e a eventual e inevitável
morte do Sol que, um dia, irá pôr fim a toda a vida na Terra também são eventos
naturais.
No seu ensaio sobre
a natureza, de 1874, o filósofo britânico John Stuart Mill (1806-1873) indicou
que este é um dos principais problemas dos chamados "apelos à
natureza":
Para ele, "ou
será certo matar, porque a natureza mata; torturar, pois a natureza tortura;
arruinar e devastar, porque a natureza assim o faz; ou não devemos considerar o
que a natureza faz, mas sim fazer aquilo que é bom fazer".
Em outras palavras,
se a premissa do apelo à natureza for correta e tudo o que for
"natural" deve ser melhor, apenas porque é natural, precisaremos
também estar dispostos a aceitar tudo o que a natureza traz. Caso contrário,
provavelmente não acreditamos, na realidade, que tudo é inerentemente melhor
quando é natural.
Paralelamente,
existem centenas de coisas que podemos considerar não naturais e que, na
verdade, melhoraram muito a vida de muitas pessoas.
Antes da medicina
moderna, mais de uma a cada 100 mulheres morria ao dar à luz. Atualmente, nos
países ricos e industrializados como o Reino Unido, morre uma mulher a cada 10
mil.
Antes da difusão
global das vacinas, a coqueluche matava uma a cada 10 crianças infectadas.
Depois da vacinação, as mortes caíram para uma fração – mais especificamente,
1/157 – dos números anteriores.
Até aqui, falamos
apenas da medicina. Mas basta olhar em volta para observar dezenas de outros
exemplos.
Usar óculos,
refrigerar os alimentos ou ligar o aquecimento no inverno, por exemplo, podem
não ser ações "naturais". Mas, para muitos de nós, é uma alternativa
melhor do que andar por aí sem enxergar direito, deixar a carne estragar ou ter
arrepios de frio no inverno.
Grande parte dos
alimentos que consumimos não chega até nós na mesma forma em que a natureza os
apresenta. Nós os processamos e cozinhamos.
A colheita, moagem
e o processamento dos grãos ajudaram na transição que fez com que a nossa
espécie deixasse de ser nômade, caçadora e coletora, passando a ser formada por
agricultores estabelecidos, capazes de construir sofisticadas civilizações.
O mesmo ocorreu com
o nosso cultivo e cruzamento das plantas. Eles fizeram com que muitos dos
alimentos nutritivos que consideramos "naturais" hoje em dia, desde a
cenoura até a banana moderna, tenham aparência e sabor muito diferentes dos
seus antepassagens silvestres.
É claro que não
estaria certo sugerir que os produtos fabricados pelo homem não nos causam
problemas, como no caso da poluição gerada pelos plásticos
sintéticos ou
do uso de armas e explosivos. E isso também não significa que, em muitos casos,
a opção mais "natural" não possa ser melhor para nós.
Mas o fato é que
não podemos considerar que a opção mais "natural" é melhor
simplesmente por ser natural, apesar da frequente tendência entre as pessoas de
acreditar no contrário.
As cenouras podem
ser melhores para nós do que os salgadinhos, mas o paracetamol – sintetizado
quimicamente – também é melhor que o arsênio, de ocorrência natural.
·
Mas
o que é natural?
Alguns destes
exemplos indicam outro grande problema do "apelo à natureza". Como
determinar o que é natural e o que não é?
Afinal, os seres
humanos vêm da natureza. Por isso, se algo produzido por um animal ou planta é
"natural", por que aquilo que os humanos fazem não é?
E como ficam as
criações que são misturas do que tradicionalmente chamamos de natural e
substâncias ou processos feitos pelo homem? Como ficam as vacinas, que são
derivadas de partes de um vírus ou bactéria natural e, quando injetadas, ajudam
a ensinar o nosso sistema imunológico a se defender naturalmente do mesmo
patógeno no futuro?
"Como todas as
palavras realmente interessantes, 'natureza' tem inúmeros significados",
escreve a historiadora de ciência Lorraine Daston.
A palavra pode
significar quase tudo, dependendo do contexto. E esta difusão de significados é
exatamente o que faz dela um termo tão versátil para a publicidade – e explica
por que somos tão facilmente convencidos.
Mas existe ainda
outro problema. Mesmo se houvesse uma linha divisória clara entre
"humano" e "natural", muitas vezes não sabemos ao certo o
que realmente é sintético e o que não é.
Quando escovamos os dentes, por exemplo. É
natural escovar os dentes com um creme dental com flúor? Que tal fazer a
escovação com um creme sem flúor?
O instinto de
muitas pessoas poderá dizer que escovar com flúor não é natural e o creme
dental sem flúor é natural.
Mas o fluoreto é um
mineral de ocorrência natural. Ele pode ser encontrado no solo, na água e nas
rochas. E uma das alternativas comuns dos cremes dentais "naturais" é
a nano-hidroxiapatita – um componente sintético.
E precisamos também
considerar que a limpeza dos dentes, certamente com os produtos que usamos hoje
em dia, está longe de ser natural. O máximo que os outros primatas fazem para
escovar seus dentes é passar "fio dental" com o que estiver à mão,
como penas de aves.
Mesmo se
quiséssemos escovar como faziam nossos ancestrais humanos, precisaríamos
esfregar os dentes com galhos, pelos de porcos ou até espinhos de
porcos-espinhos.
Outra pergunta: se
eu dissesse para você que fiz uma bebida composta por 99% de monóxido de
di-hidrogênio, você aceitaria?
O nome químico
parece descrever algo bastante sintético, mas basta pensar um pouco nele.
O monóxido de
di-hidrogênio, naturalmente, é composto por dois átomos de hidrogênio e um de
oxigênio. Sua fórmula química talvez pareça mais familiar: H2O. Sim, estamos
falando da água.
Por tudo isso, na
próxima vez em que você observar o anúncio de um produto baseado na sua origem
natural (ou alguém atacando algum produto por ser sintético), vale a pena
questionar o que aquilo realmente significa.
É possível que seja
preciso questionar por que as pessoas responsáveis por aquele produto ou
prática estão fazendo uso da falácia do "apelo ao natural" para
convencer o público dos seus valores, em vez de simplesmente apresentar os
argumentos lógicos que justificam por que aquela é realmente a melhor opção.
Fonte: Por Amanda
Ruggeri, da BBC Future
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