Extrema-direita
distorce conceito de liberdade com o objetivo de consolidar seu projeto
autoritário
Na história recente
do Brasil o termo “liberdade” se tornou, mais que um bordão e menos que um
conceito, um significante vazio. Não porque não representa nada, mas justamente
porque ao reduzir sua polissemia a um projeto político e ideológico,
transformou-se em algo que no fundo é uma palavra de ordem em favor da
extrema-direita. Um autor do pós-Guerra, Isaiah Berlin, nos ajuda a compreender
as origens e os sentidos do conceito de liberdade, que passa, ao menos, por
duas chaves de leitura importantes: liberdade positiva e liberdade negativa.
“Os efeitos de
liberdade negativa são aquelas liberdades individuais conquistadas no decorrer
da história, geralmente classificadas como liberdade de alguma coisa. A
liberdade positiva é caracterizada em geral como uma liberdade para fazer algo,
a liberdade para se realizar, para efetivar o fim desejado. São essas as
diferenças entre liberdade negativa e positiva”, explica o professor e
pesquisador, Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros, em entrevista por áudios
enviados ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Há um pressuposto
geral que deve ser observado quando falamos de liberdade, que é, precisamente,
uma certa racionalização do indivíduo sobre o que é liberdade. Isso é tudo o
contrário do que defende uma moral de manada fanatizada politicamente.
“Para Berlin, na
origem dos regimes autoritários está essa ideia de liberdade positiva, que é um
ideal do passado, das sociedades fechadas do mundo antigo e que deve ser
completamente abandonada em favor da concepção negativa de liberdade. Porque a
concepção positiva passa pelo pressuposto de um monismo físico e ontológico.
Berlin alega que as finalidades da vida humana são múltiplas e os valores são
diversos e nem todos são compatíveis entre si, por isso temos sempre um
inevitável conflito entre valores, que são igualmente defensáveis, entre
finalidades igualmente válidas”, situa o entrevistado sobre a problemática em
torno da aplicação social do conceito de liberdade.
“O que a
extrema-direita faz é deformar o sentido da liberdade negativa e tomar essas
liberdades individuais – de ir e vir, de expressar a opinião e a crença e de
reunião – como sendo liberdades absolutas, liberdades que não conhecem limites.
Claramente, a liberdade de ir e vir, por exemplo, em uma crise sanitária como
foi a pandemia de coronavírus, essa liberdade de ir e vir, diante da saúde
pública, conhece um limite, daí a justificativa para o isolamento social. A
liberdade de expressão também tem um limite. Não se pode exprimir opinião
pessoal ou a crença se essa opinião, por exemplo, atenta contra a dignidade da
pessoa humana, se ela suscita o ódio e a violência contra a determinados grupos.
Então, toda a liberdade tem limites”, complementa.
<><> Confira
a entrevista.
·
O
que é, em termos políticos, a “liberdade”? Como o tema passou a ocupar o
interesse intelectual no pós-guerra do século XX?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – O conceito de liberdade é polissêmico, ou seja, tem
diferentes significados e é utilizado em diferentes domínios da realidade
humana. Por exemplo, posso falar da liberdade da vontade, aquilo que
tradicionalmente, na história da filosofia, ficou conhecido como o problema do
livre arbítrio ou posso tratar do problema da relação liberdade e necessidade.
Enfim, posso tratar a liberdade em vários domínios da realidade humana e um
desses domínios é no campo político. Então, quando falo em liberdade em termos
políticos, eu quero entender como as pessoas são livres vivendo em uma
sociedade política.
O tema da liberdade
política passou a ocupar um lugar de destaque no debate intelectual do
pós-guerra principalmente em razão da tentativa de alguns autores de
compreender o fenômeno, até então desconhecido, do totalitarismo. Esses autores
se debruçaram sobre o problema do que é ser livre em uma sociedade política.
·
Há
uma polissemia em torno do sentido do termo “liberdade”. No entanto, quais são
as principais compreensões em torno dele?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Entre os escritos publicados nesse período do pós-guerra,
que procuraram compreender o que vem a ser então a liberdade política,
destaca-se, sem dúvida, o ensaio de Isaiah Berlin, intitulado Dois
conceitos de liberdade, publicado em 1958. Nesse ensaio, Berlin reconhece que o
conceito de liberdade tem vários significados, mas ele destaca dois sentidos
historicamente atribuídos ao conceito de liberdade: o sentido negativo, que
procurava responder à pergunta sobre qual deve ser a área que um agente deve
realizar o que é capaz de realizar sem sofrer a interferência sobre outros
agentes; e o sentido positivo, que procurava responder à pergunta sobre qual é
a fonte de controle da ação do agente.
Ele vincula então o
sentido negativo à tradição liberal, em particular aos autores liberais que
afirmaram a necessidade de uma esfera de ação individual independente do
controle social, livre de qualquer ingerência ou coerção para que os indivíduos
pudessem desenvolver plenamente suas faculdades. Já o sentido positivo, ele
vincula a autores que postularam a existência de um valor social supremo, ao
qual todos os demais valores deveriam estar subordinados, que postularam a
existência de um fim último para o qual todos os meios da sociedade deveriam se
dirigir. E ele associa esse sentido positivo de liberdade à tradição
socialista, comunista, que teria sua origem na Antiguidade e que teria sido
retomada na Modernidade por autores como Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e
Friedrich Hegel, e que depois estaria nessa tradição socialista e marxista.
IHU – O que é
liberdade positiva e liberdade negativa? Que exemplos nos ajudam a pensar essas
diferenças?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Berlin caracteriza a liberdade no sentido negativo como a
ausência de obstáculos externos às possíveis escolhas e ações de um agente.
Então, o agente é livre, quanto maior for seu campo de escolhas e de ações que
não sofram a interferência de outros agentes, quando ele não é impedido ou
coagido por outros agentes. Claramente a perda da liberdade nesse sentido é
marcada por uma intervenção, interferência deliberada de outros agentes,
impedindo ou tornando inelegível a escolha ou a ação.
Já a liberdade no
sentido positivo, Berlin exprimiria a determinação do agente em ser senhor de
si mesmo, de agir de acordo com seus propósitos sem ser determinado por forças
exteriores. Ela é justamente classificada como positiva porque não designa a
ausência de algo, como a liberdade negativa, mas a presença de um atributo
específico do querer, enfatizando a capacidade do agente de agir conforme sua
determinação. Desse modo, nesse sentido, ela requer que o agente tome parte
ativa no controle de si mesmo e das suas ações a fim de realizar o que
considera necessário para seu próprio bem.
Os efeitos de
liberdade negativa são aquelas liberdades individuais conquistadas no decorrer
da história, geralmente classificadas como liberdade de alguma coisa. Como a
liberdade de ir e vir sem ser coagido, a liberdade de expressar a própria
opinião ou crença sem ser impedido, a liberdade de se associar com outros
agentes e de se reunir com esses outros agentes sem ser impedido. São sempre
caracterizados como liberdades de alguma coisa. A liberdade positiva é
caracterizada em geral como uma liberdade para fazer algo, a liberdade para se
realizar, para efetivar o fim desejado. São essas as diferenças entre liberdade
negativa e positiva.
·
Por
que a liberdade positiva é associada por Berlin à emergência de regimes
totalitários?
Alberto Ribeiro Gonçalves
de Barros – De acordo com Berlin, os dois aspectos mais relevantes que têm sido
atribuídos ao ideal de liberdade positiva, são a autoabnegação e a
autorrealização. Como a autoabnegação é um ideal frequentemente associado à
retirada do indivíduo para uma cidadela interior na qual é possível sua
emancipação, é deixada de lado porque ela não é considerada uma expressão da
liberdade da vida social, Berlin então se concentra nesse ideal de
autorrealização. Esse ideal de autorrealização é sintetizado pela ideia de que
compreender o mundo é libertar-se do que é contingente. O seu pressuposto é que
ao compreender a necessidade racional de algo, o indivíduo não pode desejar
outra coisa, pois seria pura ignorância ou irracionalidade desejar o que não é
necessário. O indivíduo é livre se, e somente se, impor a si mesmo ou pelo
menos aceitar o que é necessário, isto é, racional. A liberdade então é fruto
de um autogoverno racional.
O problema para
Berlin está na aplicação deste autogoverno racional do indivíduo à sociedade,
ou seja, quando há uma transposição da autodeterminação individual para o campo
social. Isso acontece em geral quando uma instituição social, partido político
ou igreja arroga ser portadora da razão. Aí, supostamente ao encarnar a razão,
essa instituição acaba impondo suas diretrizes sem pedir permissão ou mesmo sem
ter consentimento dos seus membros, reprimindo inclusive aqueles que não
cumprirem com suas determinações. O grande perigo, para Berlin, é quando essa
instituição é o Estado, porque quando as lieis são impostas pela autoridade
política, elas acabam sendo promulgadas pelos próprios indivíduos, caso
estivessem consultado a própria razão. Portanto, aqueles que não percebem a
racionalidade intrínseca das leis do Estado e nem a compreendem, podem ser
forçados a obedecer a sua própria razão e a liberdade então se transforma em
defesa da autoridade e da opressão.
Para Berlin, na
origem dos regimes autoritários está essa ideia de liberdade positiva, que é um
ideal do passado, das sociedades fechadas do mundo antigo e que deve ser
completamente abandonada em favor da concepção negativa de liberdade. Porque a
concepção positiva passa pelo pressuposto de um monismo físico e ontológico.
Berlin alega que as finalidades da vida humana são múltiplas e os valores são
diversos e nem todos são compatíveis entre si, por isso temos sempre um
inevitável conflito entre valores, que são igualmente defensáveis, entre
finalidades igualmente válidas. Por isso, para ele, a opção entre os dois
sentidos de liberdade é evidente: seria preciso abandonar o sentido positivo,
porque ele traz prejuízos à independência individual quando sujeita os
indivíduos ao social, e ficar com o sentido negativo, que respeita a
diversidade de valores e de fins, que é o único sentido adequado ao pluralismo
das sociedades modernas.
·
Por
que a extrema-direita é tão apegada a repetição de um discurso em favor da
“liberdade”?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Essa é uma questão extremamente interessante e difícil de
ser respondida, não tenho uma resposta muito clara e precisa. A minha hipótese
– e apostaria nela – é de que a extrema-direita retomou um discurso ideológico
muito utilizado no período do pós-Segunda Guerra Mundial que opunha dois
campos. Nós sabemos que o pós-Segunda Guerra, no século passado, foi
caracterizado por um Guerra Fria, de um lado as chamadas democracias liberais
do Ocidente e do outro os regimes socialistas do Leste Europeu.
E, muito autores,
incluindo o Isaiah Berlin, entraram nesse debate defendendo as democracias ocidentais
com o argumento que só nas democracias ocidentais a liberdade dos indivíduos
era respeitada. Nos regimes socialistas do Leste Europeu a liberdade era
sacrificada em nome de uma suposta igualdade, uma igualdade que era nivelada
por baixo na extrema miséria da população nesses países socialistas. Então, a
defesa à liberdade seria a defesa das democracias ocidentais, porque liberdade
e igualdade seriam antagônicos: para que eu possa ter liberdade não posso
sacrificar essa liberdade em nome de maior igualdade social.
A extrema-direita
parece que se apropria desse discurso ideológico e acaba associando governos,
supostamente de esquerda, governos que supostamente por serem de esquerda
querem implementar o socialismo e depois o comunismo, seguindo o modelo da
experiência dos países do Leste Europeu no século passado. A extrema-direita
acaba se apresentando como a defensora das liberdades individuais contra esse
projeto socialista, comunista dos supostos partidos de esquerda. O que na
verdade acontece é uma apropriação de uma concepção de liberdade que veio da
tradição liberal, uma apropriação de um conceito de liberdade negativa, mas
esta apropriação acontece com uma deformação do que vem a ser a liberdade
negativa.
·
Em
que sentido a liberdade se transformou em uma plataforma ideológica?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – O interessante é que a extrema-direita se apropria dessa
concepção negativa de liberdade e muda o seu significado. Na tradição liberal,
a liberdade é sempre condicionada, a liberdade, por maior que seja, é sempre
limitada. Os autores liberais, seja John Stuart Mill ou o próprio Berlin,
reconhecem que não há uma liberdade absoluta. Toda e qualquer liberdade tem o
seu limite. E o limite, em geral, é dado pela ordem, pelo bem público, pela segurança
pública e assim por diante.
O que a
extrema-direita faz é deformar o sentido da liberdade negativa e tomar essas
liberdades individuais – de ir e vir, de expressar a opinião e a crença e de
reunião – como sendo liberdades absolutas, liberdades que não conhecem limites.
Claramente, a liberdade de ir e vir, por exemplo, em uma crise sanitária como
foi a pandemia de coronavírus, essa liberdade de ir e vir, diante da saúde
pública, conhece um limite, daí a justificativa para o isolamento social. A liberdade
de expressão também tem um limite. Não se pode exprimir opinião pessoal ou a
crença se essa opinião, por exemplo, atenta contra a dignidade da pessoa
humana, se ela suscita o ódio e a violência contra a determinados grupos.
Então, toda a liberdade tem limites.
O que a
extrema-direita faz é se apresentar como defensora das liberdades individuais,
sendo que essas liberdades seriam absolutas. Portanto, a extrema-direita
distorce o sentido negativo de liberdade tal como está presente na tradição
liberal. É nesse sentido que a liberdade se transforma em uma plataforma
ideológica: defende-se a liberdade naquilo que interessa, no caso da
extrema-direita, ao seu projeto autoritário. Em nome desse projeto autoritário,
que é claramente identificado na extrema-direita, se tem a defesa daquelas
liberdades que são convenientes. Defende-se a liberdade de expressão absoluta,
porque é conveniente poder diminuir, atacar, suscitar e despertar nas pessoas a
violência e o ódio. Assim, defende-se a liberdade plena e absoluta de
expressão, de modo que há um uso ideológico do sentido de liberdade por parte
da extrema-direita.
·
Por
outro lado, qual o papel e o conceito de liberdade em regimes autocráticos de
esquerda?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Os regimes autocráticos de esquerda, podemos citar como
exemplo na atualidade Cuba e Venezuela, adotam, na terminologia proposta por de
Berlin, um conceito de liberdade positiva na medida em que enfatizam que ser
livre é se autodeterminar. Daí a ênfase que esses regimes dão à ideia de
soberania e autodeterminação dos povos e assim por diante.
O problema, que
Berlin já admitia em seu ensaio, é que esses regimes acabam impondo um único
fim para todos os membros da comunidade política, determinam quais são os meios
para se alcançar esse fim. Esses regimes, em geral por meio de um partido ou
uma figura carismática ou outra instituição qualquer, arrogam ser os portadores
da razão. Portanto, aqueles que sabem qual é o caminho a ser seguido, qual é a
maneira de se alcançar o fim que deve ser alcançado.
Esses regimes
autocráticos acabam sufocando as liberdades individuais, que em geral são
associadas ao conceito de liberdade negativa. Isso é feito em nome dessa
liberdade positiva, que acaba sendo distorcida, porque não são as pessoas que se
autodeterminam, mas o regime que estabelece a maneira de se autodeterminar.
Então, é preciso restringir uma série de liberdades em nome desse bem maior,
desse fim último, superior, ao qual todos devem se dirigir. Esses regimes
autocráticos se arrogam com a capacidade de determinar, de saber qual este fim
e para onde a sociedade política deve se dirigir.
·
Como
a restauração do pânico moral em torno do fantasma do comunismo está associada
ao debate contemporâneo sobre a liberdade?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Como disse anteriormente, a minha hipótese é que os
partidos de extrema-direita e seus porta-vozes retomam este debate ideológico
do período pós-Segunda Guerra Mundial, onde há uma oposição entre as
democracias ocidentais livres e os regimes socialistas e comunistas do Leste
Europeu, que suprimem as liberdades individuais, e atualizam este debate para
hoje, fazendo uso desse fantasma que paira – não sei explicar a razão – do
comunismo. No sentido de que eles conseguiram fazer que esta ideia de que, se
os partidos associados à esquerda assumirem o poder, implementariam regimes
comunistas ou socialistas. Quando nós sabemos que nenhum desses partidos
associados à esquerda que têm ocupado o poder têm no seu horizonte o
estabelecimento de um regime socialista ou comunista.
Mas eles
conseguiram difundir essa ideia na sociedade, resgatar este pânico no sentido
de que “se esses partidos chegarem ao poder vão instaurar um regime no qual as
liberdades serão sufocadas, no qual, em nome da igualdade social, as liberdades
serão comprometidas”. E conseguem disseminar essa imagem, fazendo com que de
fato muitas pessoas acabem se vinculando a partidos de extrema-direita em razão
desse fantasma. De novo, que não sabemos como e porque foi estabelecido. E está
muito claro na sociedade brasileira o fantasma do comunismo. Isso influencia o
debate contemporâneo sobre liberdade porque, justamente, a extrema-direita
acaba assumindo esse papel de defensora da liberdade, contra a suposta intenção
dos partidos vinculados à esquerda estabelecerem regimes em que essas
liberdades não são respeitadas.
·
De
que maneira podemos compreender a contradição na qual, historicamente, os
únicos agentes de perseguição política e das liberdades individuais no Brasil,
os militares e apoiadores da ditadura civil-militar, são hoje os porta-vozes da
liberdade?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Essa pergunta é bastante interessante, porque se formos
ver a história do Brasil mais recente, vamos constatar que com o
estabelecimento da ditadura civil-militar nos anos 1960 foram, de fato, os
movimentos e partidos, em geral associados à esquerda, que foram às ruas
defender as liberdades individuais e políticas que foram cerceadas pela
ditadura. Com o processo de redemocratização e finalmente o estabelecimento de
uma nova Constituição em 1988, essas liberdades individuais e políticas foram
consagradas no texto constitucional e dessa maneira asseguradas juridicamente.
Quando isso acontece, os partidos e movimentos sociais vinculados à esquerda
passam a ter outra bandeira, a bandeira da igualdade social. Porque esses
partidos e movimentos sabem que não adianta ter liberdades asseguradas no texto
constitucional sem que elas possam ser realmente efetivadas. Ou seja, as
liberdades formais estabelecidas no texto, se não têm condições materiais para
se estabelecer, ficam somente na letra do texto.
Esses partidos e
movimentos começaram a defender a bandeira do combate à fome e da igualdade
social. Quando esses partidos, eu estou falando claramente aqui do PT que assume
o governo federal por três mandatos consecutivos, procura implementar então
essas políticas sociais mais vinculadas ao estabelecimento de uma maior justiça
social. Isto é, a bandeira das liberdades individuais e políticas, uma vez
assegurada no texto constitucional, fica um pouco deixada de lado.
Quando tem essas
liberdades individuais e políticas asseguradas no texto constitucional,
garantidas pelo ordenamento jurídico, os governos associados à esquerda
procuram implementar políticas sociais, para que essas liberdades não sejam
apenas formais, mas que possam de fato se materializar com as condições
materiais que são necessárias. A oposição a esses governos de esquerda, em
particular aquilo que vai surgindo, essa nova direita, que chamamos de extrema-direita
ou direita radical, percebe que essa bandeira da liberdade ficou meio de lado.
De forma que eles aproveitam e tomam essa bandeira tentando argumentar e
mostrar que essas políticas públicas, que procuram estabelecer uma maior
justiça social, colocam em risco as liberdades – eles sempre retomam esse
debate ideológico do período após a Segunda guerra. É nesse sentido que esses
apoiadores da ditadura civil-militar hoje se tornam porta-vozes da liberdade,
claro que distorcendo o sentido de liberdade e não entendo que essa liberdade
formal, para que possa se concretizar, necessita das condições materiais
necessárias.
Assim, ela arroga
ser defensora da liberdade porque essas políticas públicas que têm como
objetivo estabelecer maior igualdade, para que se realizem, atentam contra as
liberdades. Com isso, opõe liberdade e igualdade, ou seja, não se pode, em nome
da igualdade social, abrir mão de determinadas liberdades. Então, eles se
tornam porta-vozes da defesa da liberdade.
·
Que
tipo de distorção semântica faz com que em uma mesma frase caiba a defesa pela
liberdade e o repúdio ao aborto, à pluralidade de gênero, a legalização das
drogas, etc.?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – A distorção semântica é aquela que já tentei apontar
anteriormente. A extrema-direita toma uma concepção claramente identificada na
tradição liberal, mas distorce seu sentido. E distorce o sentido tentando
retirar tudo aquilo que os autores liberais colocavam como limites à liberdade
e passam a defender a necessidade de uma liberdade absoluta, sem limites. É
claro que essa liberdade absoluta e sem limite é utilizada de maneira
ideológica para alcançar o objetivo claro desses porta-vozes da
extrema-direita, que é o estabelecimento de regimes autoritários. Eles querem
defender liberdades individuais de ir e vir, de expressão sem qualquer tipo de
limite no sentido que se possa expressar a opinião individual mesmo que isso
vai ferir a dignidade humana ou mesmo que isso atente contra a dignidade de
determinados grupos ou incite o ódio ou a violência, a liberdade de portar
armas etc. Eles defendem essa liberdade como se não tivesse limites e, ao mesmo
tempo, acabam repudiando determinadas liberdades que associam àquilo que é
contrário aos chamados “bons-costumes”.
Os regimes de
extrema-direita se anunciam como liberais na economia, no sentido da defesa das
liberdades individuais, mas, ao mesmo tempo conservadores nos usos e nos
costumes. Então, tudo o que atenta contra esses usos e costumes de uma
sociedade cristã mais tradicional, como o caso do aborto, da pluralidade de
gênero e da legalização das drogas, acabam sendo atacadas. Porque, para eles,
não seriam liberdades, mas libertinagens, atentados contra os valores que eles
desejam conservar. É nesse sentido que distorção semântica funciona, que acaba
gerando frases completamente contraditórias, onde ao mesmo tempo se defende
liberdades individuais e repudia o aborto ou a legalização das drogas.
·
Até
que ponto o liberalismo e o neoliberalismo transformaram a noção de liberdade
em uma coisa anódina e esteio do extremismo político contemporâneo?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – Inicialmente é preciso observar que não existe um
liberalismo. Do meu ponto de vista, o liberalismo, assim como outras doutrinas
políticas como o comunismo, o socialismo e o republicanismo sempre devem ser
ditos no plural: liberalismos. O que quer dizer é que existem várias vertentes
dentro do pensamento liberal. Para ficar apenas no exemplo da nossa
contemporaneidade, o liberalismo libertário de autores como Robert Nozick
opõe-se ao liberalismo igualitário de autores como John Rawls. Embora Nozick e
Rawls sejam autores liberais, os seus programas político e econômico são muito
distintos. É importante ter essa dimensão de que existem várias vertentes
dentro da tradição liberal.
O que se
convencionou a chamar de neoliberalismo é esse movimento de alguns autores
depois da Segunda Guerra, que procuram radicalizar o neoliberalismo, em
particular no seu aspecto econômico. Nós podemos dizer que, mais do que o
liberalismo, o neoliberalismo acaba não transformando propriamente a noção de
liberdade, mas acaba acentuando essa ideia das liberdades individuais. O que
acontece é justamente o fato de uma extrema-direita que se apropria dessa
condição de radicalização das liberdades individuais, distorce seu sentido e
passa a defender um tipo de liberdade que não está nem na tradição liberal e
nem nos defensores do neoliberalismo. É uma apropriação indevida que a
extrema-direita faz do conceito de liberdade.
·
Deseja
acrescentar algo?
Alberto Ribeiro
Gonçalves de Barros – É preciso observar que a oposição entre a liberdade
negativa, em geral associada à tradição liberal, e liberdade positiva, em geral
associada aos regimes socialistas, foi gerada dentro de um contexto da Guerra
fria. Portanto, serviu de maneira ideológica para a defesa das chamadas
democracias ocidentais, contra os regimes socialistas do Leste Europeu. É
possível pensar a liberdade de outra maneira sem recorrer a esses conceitos de
liberdade positiva ou negativa e sem me aprender apenas à tradição liberal ou à
tradição socialista.
Nas últimas décadas
por exemplo, vários historiadores do pensamento político e teóricos políticos
têm tratado de uma outra concepção de liberdade, que está presente em outra
tradição política, que não a liberal ou a socialista. Esse conceito de
liberdade não seria definido pela ausência de interferência, como na tradição
liberal, nem seria definido pela autodeterminação da tradição socialista. Esse
outro conceito de liberdade, que estaria presente na tradição republicana, se
definiria pela ausência de dominação.
O conceito de
liberdade republicano teria uma riqueza maior na medida que não basta apenas
ter uma ausência de interferência para ser livre, pode não ter a interferência,
mas ela pode ter a possibilidade de existir. Basta alguém estar sujeito ou
vulnerável a esta possibilidade para que este não seja mais livre. Então,
precisa de um conceito mais robusto de liberdade. Da mesma maneira, a
autodeterminação necessita que haja essa ausência de dominação. Então, temos
essa outra forma de pensar o conceito de liberdade que talvez seja mais rica do
que esta dicotomia, esta oposição entre liberdade negativa e liberdade
positiva.
Fonte: Entrevista
com Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros,
para IHU
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