Cédric Duran: Um grande evento histórico?
No romance O homem sem qualidades, que se passa em Vienna,
na véspera da Primeira Guerra Mundial, o general Stumm von Bordwehr questiona
“Como é que aqueles diretamente envolvidos no que está acontecendo podem saber,
de antemão, se aquilo será um grande evento?” Sua resposta é que “tudo que eles
podem fazer é fingir para si mesmos que será! E, se me for permitido um
paradoxo, eu diria que a história do mundo é escrita antes de acontecer; ela
sempre começa como uma espécie de fofoca”.
Na semana passada, com o retorno de Donald Trump ao poder, a fofoca se
espalhou conforme os gigantes da indústria tecnológica se reuniram na
inauguração. Assentos nas primeiras fileiras foram reservados para Mark
Zuckerberg, da Meta, Jeff Bezos, da Amazon, Sundar Pichai do Google e Elon
Musk, da Tesla, enquanto Tim Cook, da Apple, Sam Altman, da Open AI e Shou Zi
Chew do Tik Tok, sentaram-se algumas fileiras atrás.
Alguns anos atrás a grande maioria desses bilionários apoiavam
abertamente Joe Biden e os democratas. “Eles estavam todos com ele”, lembrou
Donald Trump, “cada um deles, e agora estão todos comigo”. A questão crucial
diz respeito à natureza desse realinhamento: trata-se de uma simples guinada
oportunista, dentro dos mesmos parâmetros sistêmicos? Ou estamos diante de um
momento de ruptura digno de ser chamado de grande evento histórico? Arrisquemos
essa segunda hipótese.
Donald Trump, como sabemos, aprecia homenagens e gestos extravagantes.
Quando cortesãos se reúnem em sua mansão em Mar-a-Lago, não parece uma
miniatura de Versalhes? Mas o ex-presidente não é um aspirante a Luís XIV. Seu
projeto não é centralizar a autoridade no Estado, mas sim fortalecer interesses
privados às custas das instituições públicas. Ele já busca reverter as
incipientes tentativas de intervencionismo da administração Joe Biden, revogando
seus subsídios verdes, políticas antitruste e medidas tributárias, ampliando
assim o campo de ação dos monopólios corporativos dentro e fora do país.
Dois de seus decretos executivos, assinados no dia da posse, sublinham
essa tendência. O primeiro revogou um mandato da era Biden que exigia que
“desenvolvedores de sistemas de Inteligência artificial que representassem
riscos para a segurança nacional, economia, saúde ou segurança pública dos EUA
compartilhassem os resultados dos testes de segurança com o governo americano”.
Se antes as autoridades públicas anteriormente tinham alguma influência sobre
os avanços na fronteira da Inteligência artificial, agora essa supervisão
mínima foi eliminada.
O segundo decreto anunciou a criação do Departamento de Eficiência
Governamental (DOGE), chefiado por Elon Musk. Baseado em uma reorganização
do US Digital Services – estabelecido sob Barack Obama para
integrar os sistemas de informação entre diferentes ramos do Estado –, o DOGE
terá acesso irrestrito a dados não classificados de todas as agências
governamentais.
Sua primeira missão é “reformar o processo de contratação federal e
restaurar o mérito no serviço público” garantindo que os funcionários do Estado
tenham um “compromisso com os ideais, valores e interesses americanos” e
“sirvam lealmente ao Poder Executivo’” O DOGE também irá “integrar tecnologias
modernas” a esse processo, de modo que Elon Musk e suas máquinas terão a
responsabilidade pela supervisão política dos funcionários civis federais.
Nas primeiras horas do segundo mandato de Donald Trump, portanto, os
empreendedores do setor tecnológico conseguiram blindar do escrutínio público
seus projetos mais lucrativos e, simultaneamente, ampliaram significativamente
sua influência sobre a burocracia estatal. A nova administração não está
interessada em usar o Estado federal para unificar as classes dominantes como
parte de uma estratégia hegemônica. Pelo contrário, busca emancipar a fração
mais agressiva do capital de quaisquer restrições federais significativas,
enquanto obriga o aparato administrativo a se submeter ao controle algorítmico
de Elon Musk.
O aumento da concentração de poder nas mãos de tecno-oligarcas não é, de
forma alguma, inevitável. Na China, a relação entre o setor tecnológico e o
Estado é volátil, mas o primeiro em geral é forçado a se acomodar aos objetivos
do desenvolvimento do segundo. No Ocidente, órgãos públicos, em algumas
ocasiões, também enfrentaram monopólios corporativos – quando o Congresso, o
Departamento do Tesouro e o Fed se uniram para bloquear o Libra, projeto de
cripto moeda do Facebook, em 2021.
Para o economista Benoît Cœuré, “a mãe de todas as questões é o
equilíbrio de poder entre o governo e as Big Tech [as maiores empresas de
tecnologia] na definição do futuro dos pagamentos e no controle dos dados
relacionados”. Mas Donald Trump agora está inclinando ainda mais esse
equilíbrio a favor das Big Techs. Na sequência de seus decretos executivos, ele
tomou medidas instruindo os reguladores a impulsionar investimentos em criptomoedas,
ao mesmo tempo em que impediu os bancos centrais de desenvolverem suas próprias
moedas digitais, que poderiam atuar como um contrapeso. Podemos esperar mais
políticas desse tipo no futuro: desregulação, isenções fiscais, contratos
governamentais e proteções jurídicas.
Esse projeto radical, levado a cabo pela maior potência mundial, pode
ter sérias implicações na redefinição da relação entre capital e o Estado,
classes e países, por muitos anos. Isso ameaça acelerar um processo que, em
outro lugar, descrevi como ‘tecno-feudalização’. À medida que grandes
corporações monopolizam o conhecimento e os dados, elas centralizam os meios
algorítmicos de coordenação das atividades humanas – desde as práticas de
trabalho até o uso de redes sociais e os hábitos de consumo.
Com as instituições públicas cada vez mais incapazes de organizar a
sociedade, essa tarefa passa para as Big Techs, que adquirem uma capacidade
extraordinária de influenciar o comportamento individual e coletivo. A esfera
pública se dissolve, assim, em redes online, o poder monetário se desloca para
as criptomoedas e a Inteligência Artificial coloniza o que Marx chamou de
“intelecto geral”, anunciando a progressiva apropriação do poder político por
interesses privados.
O enfraquecimento de instituições mediadoras caminha de mãos dadas com
um impulso antidemocrático, ou melhor, com um ódio à igualdade. Desde a
publicação do manifesto tecno-otimista “Ciberespaço e o Sonho Americano”, em
1994, grandes partes do Vale do Silício aderiram ao princípio randiano [de Ayn
Rand] segundo o qual criadores pioneiros não podem ser limitados por regras
coletivas. O empreendedor tem o direito de passar por cima de seres mais fracos
que ameaçam restringi-lo: trabalhadores, mulheres, minorias raciais e trans.
Daí a rápida aproximação entre os liberais californianos e a extrema
direita, com Musk e Zuckerberg agora se apresentando como guerreiros culturais
lutando para reverter a maré do “wokeness”. A governamentalidade algorítmica
consagra o direito de “inovar” sem qualquer prestação de contas ao demos.
Esse regime de acumulação emergente também substitui a lógica da
produção e consumo pela lógica da predação e dependência. Embora o apetite pelo
excedente continue tão voraz quanto em períodos anteriores do capitalismo, o
motivo do lucro das Big Techs é único. Enquanto o capital tradicionalmente
investe para reduzir custos ou atender à demanda, o capital tecno-feudal
investe para trazer diferentes áreas da atividade social para seu controle,
criando uma dinâmica de dependência que enreda indivíduos, empresas e
instituições.
Isso ocorre em parte porque os serviços oferecidos pelas Big Techs não
são mercadorias como outras. Muitas vezes, são infraestruturas críticas das
quais a sociedade depende. O gigantesco apagão da Microsoft no verão de 2024
foi um lembrete contundente de que aeroportos, hospitais, bancos e agências
governamentais, entre outros, agora dependem dessas tecnologias – permitindo
que os monopolistas cobrem aluguéis exorbitantes e gerem fluxos intermináveis de
dados monetizáveis.
O resultado final desse processo é estagnação generalizada na economia
global. Empreendimentos lucrativos em outros setores estão observando um
enfraquecimento de sua posição de mercado conforme se tornam mais dependentes
da “nuvem” e Inteligência artificial, enquanto a população como um todo está
sujeita às predações do capital rentista. A imensa necessidade de recursos dos
tecno-feudalistas também leva a uma crescente destruição ecológica, com novos
data centers de alta emissão de carbono surgindo em todo o mundo. À medida que
o crescimento desacelera, a polarização política e a desigualdade econômica se
aprofundam, com os trabalhadores disputando uma parcela cada vez menor da
riqueza.
Isso levanta diversas questões estratégicas para a esquerda. Como a luta
contra as Big Tech se relaciona com outras já existentes na disputa
anticapitalista? Como devemos pensar o internacionalismo em uma era em que o
poder tecno-feudal transcende fronteiras nacionais?
Aqui talvez valha a pena ter em mente os principais preceitos de Mao no
clássico Sobre a contradição (1937), habilmente sintetizados
por Slavoj Žižek: “A contradição principal (universal) não se sobrepõe à
contradição que deve ser tratada como dominante em uma situação particular – a
dimensão universal reside literalmente nessa contradição particular. Em cada
situação concreta, uma ‘contradição particular’ diferente é a predominante, no
sentido preciso de que, para vencer a luta pela resolução da contradição
principal, deve-se tratar uma contradição particular como a predominante, à
qual todas as outras lutas devem ser subordinadas”.
Hoje, a contradição universal continua sendo a da exploração
capitalista, que opõe o capital ao trabalho vivo. No entanto, a ofensiva
tecno-feudal representada por Donald Trump e Elon Musk pode alterar essa
situação, criando uma nova contradição principal entre as Big Techs americanas
e aqueles que elas exploram. Caso cheguemos a esse ponto, a tarefa da esquerda
mudaria drasticamente.
Tomando as guerras coloniais da China como exemplo, Mao explica que
“quando o imperialismo lança uma guerra de agressão contra um país desse tipo,
as diversas classes dentro desse país, com exceção de um pequeno número de
traidores da nação, podem temporariamente se unir em uma guerra nacional contra
o imperialismo. A contradição entre o imperialismo e o país em questão torna-se
então a contradição principal, e todas as contradições entre as várias classes
dentro do país (incluindo a contradição, que antes era a principal, entre o
regime feudal e as massas populares) passam temporariamente para segundo plano
e assumem uma posição subordinada”.
No nosso contexto, isso significaria formar uma frente anti-tecno-feudal
que vá além da esquerda, incluindo diversas forças democráticas e frações do
capital em conflito com as Big Techs. Esse movimento hipotético poderia adotar
o que poderíamos chamar de ‘política digital não alinhada’, com o objetivo de
criar um espaço econômico fora do domínio dos monopólios, onde tecnologias
alternativas pudessem ser desenvolvidas.
Isso, por sua vez, implicaria uma forma de protecionismo digital –
negando acesso às empresas de tecnologia dos EUA e desmontando sua
infraestrutura sempre que possível – além de um novo internacionalismo digital,
no qual as pessoas compartilhariam soluções tecnológicas de forma cooperativa.
É claro que uma aliança desse tipo precisaria confrontar diversas
barreiras estruturais. Por conta da complexa interpenetração de interesses
capitalistas, com investimentos ligados uns aos outros atravessando diferentes
setores e territórios, é difícil determinar que frações do capital estão mais
alinhadas com as Big Tech e quais poderiam ser pressionadas a participarem de
um movimento como esse.
Há também o fato de que as burguesias nacionais são, notoriamente,
parceiros pouco confiáveis quando se trata de projetos de desenvolvimento fora
do núcleo imperial; elas geralmente estão mais interessadas em aumentar sua
própria riqueza rentista do que em promover o tipo de mudança estrutural que
poria fim à dependência. E existe também o risco que, mesmo que tal reunião de
forças fosse possível, uma frente anti-tecno-feudal fosse vulnerável à captura
burocrática – confiando o desenvolvimento de alternativas digitais a
especialistas, em vez de envolver ativamente as massas populares.
No entanto, os bilionários da tecnologia também têm seus próprios
obstáculos a enfrentar. Seu projeto – usar uma aliança com Donald Trump para
derrubar os últimos obstáculos remanescentes ao controle algorítmico – tem uma
base social extremamente estreita, e a velocidade com que avança certamente
gerará resistência tanto da população em geral quanto das elites.
Além disso, deve lidar com a capacidade digital da China, à medida que
empresas rivais, como a DeepSeek, tentam minar a imagem de invencibilidade do
Vale do Silício. Poderia, então, o tecno-feudalismo americano revelar-se um
Leviatã frágil? O retorno de Donald Trump ao poder será lembrado como um
“grande evento”, ou isso não passará de mera fofoca?
Fonte: A Terra é
Redonda
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