segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Bruno Huberma: ‘O fim do genocídio virá com o fim do colonialismo israelense’

Este texto é uma resposta a uma coluna de João Pereira Coutinho, publicada na Folha de S. Paulo, que rebateu uma crítica que escrevi, contrapondo-me à interpretação dele de que a aplicação da teoria do colonialismo por povoamento para a Palestina promoveria um novo tipo de antissemitismo. Contudo, a Folha rejeitou a publicação desta última resposta, limitando o bom debate que estava em curso.

Na tréplica de João Pereira Coutinho ao meu texto sobre o uso da teoria do colonialismo por povoamento para interpretar o Estado de Israel e a Questão Palestina, o cientista político faz um esforço para universalizar o colonialismo como toda forma de dominação política entre povos de diferentes identidades ao longo da história. Contudo, mantém a rejeição em reconhecer o colonialismo israelense na Palestina. É como se Coutinho afirmasse: “todos somos colonizadores, menos os israelenses.”

Há claramente uma dificuldade em distinguir Estado, povo e etnia: Israel, os israelenses e os judeus. A crítica anticolonial a Israel não tem nada de antissemitismo, pois não é direcionada ao povo judeu, mas ao Estado colonial israelense. Se este reivindica uma identidade religiosa para si, isso não é responsabilidade dos críticos e dos oprimidos. Afinal, defender o fim do colonialismo português, o fim do Estado colonial português, e até mesmo a expulsão dos portugueses do Brasil entre 1500 e 1822, não seria racismo antibranco, mas simplesmente anticolonialismo.

Na representação que Coutinho faz da história do colonialismo, romanos, incas e britânicos seriam igualmente colonizadores. Essa narrativa hobbesiana certamente diminui a responsabilidade europeia a respeito da barbárie que vivemos hoje. Afinal, o colonialismo revelaria uma suposta natureza violenta da humanidade, tal como identificada por Hobbes: “o homem é o lobo do homem”.

Recomendo a Coutinho a leitura de O despertar de tudo, de David Graeber e David Wengrow. O livro contradiz toda representação a respeito de uma suposta natureza humana, seja dócil, numa leitura rousseauniana, ou selvagem, tal qual Hobbes. A barbárie colonial não é um destino irrefutável da humanidade, mas um produto social constituído a partir de relações materiais específicas.

O colonialismo europeu moderno, inclusive, está inserido em uma dinâmica bastante particular: a capitalista. Não é possível reduzir o colonialismo a um fenômeno político. Tal qual fez um dos pais do liberalismo, John Locke, mas em sentido contrário, é preciso uma interpretação da economia política do colonialismo para entendê-lo. O dispositivo jurídico de “terra nullius”, tão citado por Coutinho, foi criado a partir da interpretação lockeana de que as treze colônias inglesas que formavam os EUA seriam livres, pois seriam abundantes em “terra virgem” de trabalho. A interpretação de Locke sobre a suposta selvageria dos povos nativos não seria cultural, mas econômica: como não trabalhavam a terra, não haveria propriedade privada. Portanto, a terra seria livre para ser colonizada pelos europeus brancos. Este seria o “direito natural” que fundamentaria a “guerra justa” de extermínio dos indígenas. Portanto, para Locke, a expropriação violenta da terra indígena estaria na base do contrato social da modernidade.

Além de um intelectual do liberalismo colonial europeu e do supremacismo branco, Locke investiu no tráfico de africanos escravizados, como acionista da Royal African Company, e foi um dos redatores da Constituição das Carolinas, que defendia o direito da liberdade e da propriedade privada — o que incluía a posse de africanos escravizados. O racismo colonial distinguia aqueles que podiam possuir propriedade privada, os brancos, daqueles que eram posse, os negros. O Estado, assim, atuaria para legitimar, através do uso da violência juridicamente sancionada, essa relação desigual e hierárquica feita para o enriquecimento individual.

Nesse sentido, a liberdade e a democracia são racialmente constituídas não somente para possibilitar uma dominação política, mas para construir uma diferença de classe que permita a acumulação de capital — seja através da violência flagrante nas colônias, seja pela “compulsão silenciosa” do mercado, no centro. Como escreveu Marx, o colonialismo nada mais é do que o capitalismo desnudo, sem as suas vestes.

·        O genocídio dos palestinos e o fim do colonialismo israelense

O insuspeito historiador israelense Benny Morris afirmou em uma entrevista de 2004: “Mesmo a grande democracia americana não poderia ter sido criada sem o aniquilamento dos índios. Há casos em que o objetivo final justifica atos cruéis que são cometidos no curso da história”. Tal qual Locke, Morris vê o extermínio indígena como base para a liberdade e a democracia brancas (aqui, utilizo o termo branco como categoria de superioridade racial que permite incluir os diversos grupos constituídos dessa característica, como os judeus em Israel). 

Morris continua: “Este lugar [a Palestina] seria mais tranquilo com menos sofrimento se o problema tivesse sido resolvido de uma vez por todas […]. Se [o fundador de Israel, David] Ben-Gurion tivesse realizado uma grande expulsão e limpado toda a Terra de Israel, até o rio Jordão.”

Morris está longe de ser um extremista e aqui defende, abertamente, uma “Israel livre do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]”. Historiador da documentação israelense da Nakba, ele se tornou um defensor do processo de limpeza étnica conduzido por Israel em 1948, que resultou na expulsão de 800 mil palestinos e na destruição de 500 vilarejos. Processo que Donald Trump almeja continuar com a expulsão de todos os palestinos da Faixa de Gaza e a ocupação dos EUA. O extermínio completo por Ben-Gurion teria assegurado definitivamente, tal qual os EUA, a maioria demográfica judaica que Israel tem lutado para consolidar desde 1948 através do genocídio contínuo do povo palestino.

Em uma entrevista também de 2004, concedida do seu bunker sitiado por tropas israelenses durante a Segunda Intifada (2000-2006), o palestino Yasser Arafat refletia sobre a força da resistência palestina e como Israel “não conseguiu nos eliminar”. Ele termina a sua declaração com uma comparação: “Nós não somos índios vermelhos”. Coutinho viu, erroneamente, na afirmação de Arafat um reconhecimento de que Israel não seria um Estado colonial. Contudo, o líder palestino quer dizer o oposto. Segundo Arafat, o colonialismo israelense não conseguiu eliminar os seus nativos, os palestinos, diferente dos estadunidenses, que teriam exterminado os “índios vermelhos”. A resistência palestina teria impedido que o seu destino fosse o mesmo do povo massachussett, exterminado com a chegada dos puritanos. Mas, para Coutinho, o fracasso israelense em executar a eliminação completa seria prova de que Israel não é um Estado colonial.

Arafat, contudo, também estava errado. Os povos indígenas dos EUA continuam resistindo, inclusive em solidariedade com os palestinos. A resistência nativa, entretanto, sabe que não irá expulsar os brancos da Turtle Island, o nome da América do Norte para alguns povos indígenas. Mas almeja descolonizar o Estado que continua os oprimindo e negando a sua liberdade em pequenas reservas indígenas. A liberdade dos defensores de Trump — e de Joe Biden — continua a ser constituída, tal qual na época de Locke, a partir da permanente colonização que limita a liberdade dos indígenas. Os povos nativos são desproporcionalmente empobrecidos, encarcerados e mortos em relação ao restante dos estadunidenses.

Coutinho, que discorda da minha interpretação tanto sobre colonialismo como sobre natividade, ficará feliz em descobrir que um sujeito pode deixar de ser colono sem um deslocamento geográfico além-mar. Tal qual a indigeneidade, a colonialidade também é uma identidade relacional. Colono-indígena é um binômio que existe de forma dialética. É preciso extinguir um para o outro deixar de existir. O colonizador almeja eliminar os nativos para ele mesmo deixar de ser um colono; para o colonialismo se naturalizar. Daí advém a percepção errônea de que os indígenas nos EUA ou no Brasil desapareceram. A reafirmação da identidade indígena impede esse apagamento e mantém a contestação às relações desiguais e hierárquicas criadas pelo colonialismo, mesmo sob a democracia liberal.

Contudo, para esse processo cessar, não é necessário o inverso, a eliminação física do colono. Da mesma forma que a relação colonial transformou os puritanos brancos em colonos e os massachussetts em indígenas, assim como os judeus israelenses em colonizadores e os palestinos em colonizados, é essa relação constituída pelo colonialismo que deve ser destruída para ocorrer a descolonização. Desse modo, os judeus israelenses, assim como os brancos puritanos, deixarão de ser colonos. E os povos indígenas, inclusive os palestinos, serão livres.

¨      Palestinos temem que Cisjordânia vire segunda Gaza

Diante do campo de refugiados de Jenin, alguns moradores dessa cidade da Cisjordânia observam, a distância segura, ambulâncias palestinas e veículos militares israelenses entrando e saindo. Outros moradores se retiram, de rosto cansado, carregando suas poucas posses.

Ala'a Aboushi, que vive perto da entrada do campo, distribui copinhos de papel com café árabe aos jornalistas que assistem à cena. "Eles terminaram lá em Gaza, e agora vieram aqui à Cisjordânia para se vingar da gente", comenta. "Nós, civis, não sentimos nenhuma segurança aqui."

Em 21 de janeiro de 2025, logo após a entrada em vigor do cessar-fogo temporário e do acordo de libertação de reféns, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, anunciou uma "operação militar significativa e em grande escala" contra os militantes palestinos de Jenin – dos quais o campo de refugiados é considerado um reduto.

Desde então, a ofensiva militar tem se expandido gradativamente para outras localidades da área, como Tulkarem, outra cidade de porte maior do noroeste da Cisjordânia, que abriga dois acampamentos (o segundo se chama Nur Shams), construídos após a criação do Estado de Israel, em 1948, para abrigar palestinos desalojados.

Há tempos o território palestino na margem oeste do rio Jordão tem sido alvo de operações "antiterrorismo" das Forças de Defesa Israelenses (IDF), mas sua intensidade e âmbito aumentaram desde o ataque terrorista do grupo Hamas no sul de Israel, em 7 de outubro de 2023.

<><> Possível mudança de curso de Tel Aviv para a Cisjordânia

A última operação das IDF incluiu ofensivas aéreas e incursões por terra, com a destruição de infraestrutura e residências, expulsões em massa, mortes e prisões. Ela coincidiu com a posse presidencial de Donald Trump nos Estados Unidos – o qual anunciou que em breve se pronunciará sobre os planos israelenses de anexar a Cisjordânia. A população teme que o território ocupado vá se transformar na segunda Faixa de Gaza.

"As IDF estão operando fortemente no campo de refugiados de Jenin para coibir os terroristas e destruir a infraestrutura do terror, como vimos aqui hoje", comentou o ministro da Defesa Israel Katz em 29 de janeiro, sinalizando uma possível mudança de curso. "O campo de Jenin não voltará a ser o que era. Depois de completada a operação, as tropas da IDF permanecerão lá para assegurar que o terrorismo não volte."

Segundo a Organização das Nações Unidas, mais de 40 mil refugiados palestinos foram retirados à força de seus acampamentos. Em Tulkarem, pelo menos nove foram mortos, entre os quais uma grávida de 23 anos e seu bebê não nascido.

Umm Mohammed, residente nesse campo, conta que já viu muitas incursões israelenses, mas a tendência é um aumento da violência: "Cada vez é mais forte do que a anterior. A gente toda estava chorando de medo e terror." Os disparos eram a esmo e por toda parte e, passados alguns dias, o exército ordenou que ela, seus filhos e netos abandonassem sua casa.

Desde então, a família vive em duas dependências de um clube esportivo local que se ofereceu para acolher os desabrigados. Doações privadas de roupas e cobertores estão empilhadas na entrada. Na televisão veem-se imagens ao vivo de casa: a cidade, os campos de refugiados Tulkarem e Nur Shams. As crianças tentam seguir online pelo menos em parte o currículo escolar, já que a maioria das escolas da ONU está fechada.

<><> "Tem alguém armado aqui?"

O filho de Umm, Ahmed, rejeita a ideia de que Israel estivesse visando só os militantes: "Quando estou na minha casa, eu devia me sentir seguro. Você vem, como soldado ocupador, e me expulsa. Com que direito? Tem alguém armado aqui?" Ele acrescenta que não teve permissão de deixar o campo em sua cadeira de rodas elétrica, e agora depende da ajuda alheia.

Até mesmo sair do acampamento foi difícil para a família, devido às estradas severamente danificadas. As IDF detonaram simultaneamente quase 20 prédios da zona leste, alegando que abrigavam postos de vigilância, laboratórios de explosivos e outras infraestruturas terroristas. Para muitos, essa destruição equivale à devastação de Gaza após a guerra.

A ofensiva mais recente foi ainda acompanhada por fechamentos e horas de espera nos postos de controle militares por toda a Cisjordânia, obstruindo seriamente as vidas de mais de 3 milhões de habitantes. As Forças Armadas de Israel confirmam que "de acordo com as instruções do escalão político" decidiu-se "mudar de protocolo" e "expandir as inspeções aos checkpoints estabelecidos nas estradas da Judeia e Samaria" – termo com que em Israel se designa a Cisjordânia.

De volta a Tulkarem, onde diversas estradas foram também interditadas pelas IDF, Umm Mohammed conta que assiste diariamente às notícias na esperança de ter permissão para voltar à casa. Ela se preocupa também com o destino dos vários gatos e periquitos da família, que ficaram para trás. Com a vizinhança vazia, não há ninguém para tomar conta deles, e ninguém sabe quanto tempo a situação vai durar.

 

Fonte: Blog da Boitempo/DW Brasil 

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