segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Alfredo Attié: Contra a onda totalitária

O mundo dá muitas voltas e o destino reserva muitas surpresas para a humanidade. Quem imaginaria, porém, que, mal passado um século da ascensão dos fascismos na Europa, a mesma onda totalitária voltaria a bater na costa dos Continentes, agora envolvidos na ordem global.

Esses regimes foram derrotados no curso de um conflito sangrento, que exigiu a aliança de países dispostos a resistir e a resgatar os velhos princípios do liberalismo político, temperados com a força dos princípios do socialismo – ambos tão criticados, então – para afastar os males da maré totalitária e instaurar uma nova ordem internacional, sob a tutela de organismos internacionais voltados à manutenção da paz e à guarda da estabilidade de um sistema econômico que preservasse, sim, o capitalismo mas cuidasse para que mecanismos de bem estar afastassem o terreno fértil à tentação a sucumbir diante da capacidade de sedução do discurso fácil e falso dos líderes de extrema direita.

Finda, contudo, a salvaguarda do Estado de Bem-Estar, pela forte influência da ordem neoliberal, que logrou êxito em destruir todas as estruturas de proteção ao trabalho e à vida social, o discurso totalitário retomou seu curso, pondo na moda as ideias perigosas da luta social pela sobrevivência, da concorrência desenfreada, do esfacelamento da sociedade, que levou ao enriquecimento assombroso de novas oligarquias nacionais e internacionais, que desfrutam de um campo fértil para seu trabalho de destruição das bases de educação e cultura dos povos, para impor padrões de conduta belicosos, modelos de comunicação enganosos, por meio do novo reino da informação das mídias privadas, paradoxalmente chamadas de “sociais”, quando, em verdade, sua tarefa é antissocial, por essência.

Em meio a esse ambiente hostil para a sobrevivência da natureza e da humanidade, uma coisa que, a princípio, pareceria absolutamente impraticável, aconteceu. Ela diz respeito à mudança de configuração exatamente das personagens que, há aproximadamente cem anos, foram, uma, vítima da violência atroz dos totalitarismos, e, outra, boia salva-vidas do naufrágio da humanidade.

Por um lado, o Estado de Israel, de outro, os Estados Unidos da América. Uma, na época, sem identidade de Estado, representada pelo conjunto de um povo perseguido e violentado, de tal forma que, a simples memória do perpetrado pelas forças do nacional-socialismo, ainda causa profunda indignação e revolta. A outra que, mal alçada a primeira potência econômica, no final do Século XIX, usou todo o seu poderio para, ao lado do poderio da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, contrabalançar o equilíbrio das forças europeias e a supremacia asiática japonesa, resgatando a Europa do domínio nazista e possibilitando o fim do imperialismo militar na Ásia.

O Estado de Israel foi precisamente o símbolo criado, graças ao empenho da sociedade internacional, em protagonismo exatamente dos vários países aliados, responsáveis pela derrota do fascismo e do nazismo, da nova ordem internacional, em que passavam a imperar a paz, que se pôs como objetivo principal, e as declarações internacionais e regionais de direitos, como o meio de preservação de uma humanidade livre e solidária.

No curso dessa nova ordem, terminaria o colonialismo político – objetivo acrescentado aos fundamentos do pós-guerra, graças ao emprenho e à luta dos povos do Sul Global, que impuseram derrotas ao imperialismo europeu e exigiriam que se forjasse uma sociedade internacional que efetivamente respeitasse a livre determinação dos povos e sua soberania nacional e internacional.

Claro que esse mundo não se tornou perfeito, sequer conseguindo enraizar os direitos – postos em várias Declarações, que influenciaram inúmeras Constituições nacionais e tratados regionais dotados de cláusulas de respeito a democracia e direitos fundamentais – na cultura internacional, mesmo que houvesse uma esperança de plena implantação dessa ordem dos direitos enquanto ainda durava o ideal e a prática do Welfare State.

A Guerra Fria funcionou como contracorrente a essa ordem desejada de direitos, bem-estar e democracia. As potências internacionais fizeram questão de manter sua ascendência sobre suas áreas de influência, na verdade, de dominação, permitindo, incentivando e mesmo sendo protagonistas na implantação de regimes ditatoriais e de violação desses mesmos princípios, valores e ideais.

Retomando, porém, o principal argumento deste artigo, os Estados que representaram, ao menos no imaginário tecido pelos meios de comunicação e de propaganda da nova ordem internacional, o símbolo do resgate dos direitos e do respeito à dignidade humana, vítima e protagonista da salvação da humanidade dos totalitarismos, eles mesmos, tornaram-se, hoje, os antípodas dessa representação.

Se não, como aceitar a imagem de uma extrema direita em Israel? Esse Estado que tanto deve ao esforço da sociedade internacional, tornar-se, no presente momento, réu em processo perante a Corte Internacional de Justiça – sustentáculo judicial da nova ordem internacional dos direitos, – pela prática de crimes contra a humanidade e de genocídio. Crimes cuja concepção se deu, exatamente, a partir da conscientização da humanidade das atrocidades cometidas pelos regimes de extrema direita, há cem anos, e de que os povos foram vítimas, notadamente o povo judeu.

Mais ainda, pois essa apuração de responsabilidade gravíssima duplica-se, no processo e na ordem de prisão contra o líder do Estado de Israel – que tem exercido o poder como primeiro-ministro há quase duas décadas, como resultado, pasme-se, de eleições que se afirmam e reafirmam como democráticas – emitida pelo Tribunal Penal Internacional.

Esse mesmo Estado de Israel que, na abertura de sua defesa perante a Corte Internacional de Justiça, afirmou que representaria valores ocidentais no Oriente Médio, com exclusividade. Cumpre a todos nós indagarmos a que valores estariam os defensores do réu se referindo.

Os antigos princípios das democracias liberais – vilipendiados pelos totalitarismos –, enriquecidos com os valores e a crítica trazidos pelo movimento socialista e pelo New Deal?Ou, como consta das acusações sérias de que se defende, os antivalores e atrocidades perpetrados por esses mesmos totalitarismos, que buscaram fazer imperar a eugenia que lhes dava sinistro fundamento, e consagrar uma prática de discriminação e violência, destruidora da humanidade e de povos considerados inferiores e de presença indesejável em seus territórios, se não no mundo?

São acusações bastante sérias e colocam o mundo de pernas para o ar. Sobretudo se observarmos a tolerância e mesmo a defesa fundamentalista e virulenta que recebem de determinadas instâncias da comunidade internacional, que deveriam exercer papel crítico e calam-se ou compactuam com a situação grave a que assistimos perplexos.

Uma extrema direita israelense parece uma contradição em termos e exige que haja uma reação contundente da sociedade internacional, a qual esse regime israelense dá as costas, com arrogância.

No entanto, eis que os Estados Unidos, a quem deveríamos, segundo a narrativa histórica predominante, a salvação do mundo da onda totalitária, assume, em relação aos povos do mundo, o mesmo discurso de extrema-direita que fundamentou a ascensão dos regimes totalitários. Discurso de superioridade, de preconceito e de ameaça de violência, de desrespeito pela ordem dos direitos de uma sociedade que se construiu contra a guerra e as atrocidades genocidas e criminosas, exatamente com fundamento nesses direitos. Isso por meio de um discurso que viola os princípios internacionais e de uma prática que visa a eliminar esses princípios e a ordem que fundamentam e justificam.

Essa mudança radical – que transformou vítimas da opressão e dominação e protagonistas da libertação em algozes da ordem internacional, mudança que pretende instaurar uma nova ordem, baseada precisamente em tudo aquilo que a ordem ainda vigente busca combater – é preciso que a sociedade internacional faça cessar.

Por meio, sim, de mecanismos e de estruturas criadas por tratados internacionais, como a própria ONU e suas agências, como os Tribunais Internacionais criados para defender e dar eficácia a direitos e deveres internacionais coerentes e não desviantes dos valores da paz, da igualdade, da liberdade e da solidariedade. Esses mecanismos precisam ser defendidos e fortalecidos.

Por meio de uma opinião pública bem informada, bem formada, afastando os malefícios que a imprensa corporativa tem efetivado, esquecendo-se de dar palavra a quem realmente está comprometido com a civilização, composta pela natureza e a humanidade, e permitindo que discursos de cunho totalitário e enganoso dela tomem conta, representando interesses que se chocam contra a ordem da democracia e dos direitos.

Opinião pública formada e informada que também decorre, como deve, do controle ou fiscalização das mídias antissociais, que, por causa dos interesses privados de seus donos e de seus financiadores, tomaram o caminho puro e simples de pregar e financiar a opressão, a exploração, a dominação e a destruição humana e do meio ambiente.

Uma união dos países que ainda preservam e defendem a democracia, por meio da atenção a direitos e deveres e consecução de políticas públicas coerentes com as declarações internacionais e suas Constituições seria imprescindível.

A América Latina poderia dar o exemplo dessa união em torno dos valores que derrotaram os totalitarismos, de sua defesa intransigente diante das ameaças atuais. Países como o México, a Colômbia, o Chile, o Uruguai, o Brasil, hoje sob a regência de coalizões democráticas podem e devem assumir essa liderança na defesa do resgate da democracia e de seu aprimoramento. Países esses, assim como os povos americanos, que são herdeiros do pioneirismo interamericano na busca de estruturas de integração e de valorização dos direitos à autonomia e à integridade territorial, como preparados em documentos forjados na época de suas independências, sobretudo nas Cartas do Panamá, e, sem dúvida, na declaração de direitos antecedente e influente na declaração universal.

Os povos hoje oprimidos por esses Estados – que aqui referi, como exemplos extremos da desordem que hoje ameaça o mundo – que pretendem negar sua própria história, podem olhar para essa nova aliança internacional pela paz, pela democracia, pelos direitos humanos e da natureza, pela igualdade, pela liberdade, pela solidariedade, com esperança e desejo de se juntar a ela, em movimento de nova resistência, para sua libertação e de toda a humanidade da tempestade totalitária.

Todos os povos do mundo, enfim, novos aliados não mais como apenas países, mas como sujeitos da história da humanidade. Unidos por um ideal que possa representar seu direito de viver e compartilhar bens materiais e imateriais, na busca da felicidade.

Por essa tempestade conseguiremos passar e dela sobreviveremos, se soubermos empregar de modo inteligente a ativo nossa capacidade de vida em comum e de compartilhar os melhores caracteres e gênios de nossa existência.

 

¨      Fraternidade Perdida. Por Beatrice Guerrara

Ainda gritavam, sob a poeira, os homens e mulheres encontrados nos últimos dias em duas valas comuns na Líbia. Não mais com a vozes, mas com seus corpos maltratados sem vida, que mostravam ferimentos de arma de fogo. Dezenove corpos foram descobertos em Jakharrah, cerca de 400 km ao sul de Benghazi, e outros 30 (mas poderiam ser até 70) foram encontrados no deserto de al-Kufra, no sudeste do país.

Isso foi relatado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), que expressou “choque e preocupação” pela descoberta das duas valas comuns na Líbia. Essa não é a primeira vez que reemergem no país corpos de migrantes, pessoas desaparecidas que permanecerão sem nome, sem uma mãe ou um filho para velá-las com dignidade. São homens e mulheres que, supostamente, acabaram sendo vítimas de traficantes de pessoas, enquanto buscavam uma vida melhor, tendo sido forçados a fugir da pobreza e da opressão.

A descoberta das valas comuns “é a enésima confirmação da situação desumana que existe na Líbia, em detrimento de tantos irmãos e irmãs migrantes”, afirma o padre Mattia Ferrari, capelão da ONG Mediterranea Saving Humans, falando às mídias do Vaticano. “Na Líbia existem aqueles que o Papa define de ‘campos de concentração’ e o que as Nações Unidas chamam de ‘horrores’, e essa é mais uma história de atrocidades totalmente inaceitáveis que ferem a nossa consciência humana e cristã”. De fato, lembra o sacerdote, a Líbia não é simplesmente um país de passagem, mas “um país pelo qual os migrantes são obrigados a passar, devido ao fechamento dos canais legais de acesso” e “para o qual são mandados de volta, devido às rejeições sistemáticas que a Itália e a União Europeia financiam”.

Atualmente o número de pessoas que conseguem entrar no território europeu por meio de canais legais é muito reduzido. Desde dezembro de 2023, após a assinatura do protocolo entre o Ministério do Interior italiano, o Ministério das Relações Exteriores e Cooperação Internacional, o ACNUR, a Arci e a Comunidade de Santo Egídio, 592 pessoas chegaram à Itália. As últimas chegaram ontem, terça-feira, 11 de fevereiro, em um voo de Trípoli. São 139 refugiados, dos quais 69 menores de idade, alguns dos quais nascidos na Líbia, onde viveram por muito tempo com suas famílias em condições extremamente difíceis. Afinal, há anos várias organizações internacionais vêm relatando as inúmeras violações dos direitos humanos sofridas pelos migrantes na Líbia: práticas de trabalho forçado, sequestros, extorsões, recrutamento forçado nas milícias, até a arriscada travessia do Mar Mediterrâneo, tentada em barcos improvisados. E o que aguarda aqueles que são rejeitados e enviados de volta à Líbia é igualmente assustador: centros de detenção onde a tortura, o estupro, a falta de comida e de assistência médica, a reclusão em celas superlotadas e condições higiênicas alarmantes estão na ordem do dia.

Mattia Ferrari está familiarizado com a vida desses migrantes, que encontra quando escapam por pouco da morte atuando no Mare Jonio, o navio de socorro da Mediterranea Saving Humans. Também em terra, padre Mattia continua com seu empenho em favor dos sobreviventes, como os da organização Refugees in Libya. “Essas pessoas”, afirma, ”relatam uma violência inacreditável e um sofrimento além dos limites, além da imaginação. Cada pessoa carrega dentro de si uma história, um rosto, uma esperança, que é traída por esse sistema de violência indescritível que acontece de fato com a nossa cumplicidade ou, às vezes, simplesmente com a cumplicidade da nossa indiferença”.

Parecem, de fato, ainda fracas as vozes que se levantam do mundo político para tomar medidas que possam realmente mudar a situação. Um caso emblemático é a história do general líbio Nijeem Osama Almasri, acusado de crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional, o mesmo tribunal que confirmou na segunda-feira, 10 de fevereiro, que havia aberto um processo sobre “o não cumprimento pela Itália de um pedido de cooperação para a prisão e entrega” do general líbio, que foi detido em solo italiano, mas depois repatriado em 21 de janeiro passado. “O que foi feito”, observa o padre Mattia, “exacerbou uma ferida enorme e, portanto, há necessidade de reconciliação, reconciliação com as pessoas migrantes e com aqueles que são vítimas de Almasri”. O convite do sacerdote é, portanto, para se deixar questionar por toda essa dor e depois “abrir nossos corações, porque essas pessoas estão levantando um grito da fraternidade e nos pedem para serem reconhecidas em sua dignidade de irmãos e irmãs”. De fato, ainda há esperança de reverter o curso: “Se nos pegarmos pela mão”, continua, “com a sociedade civil, com as próprias pessoas migrantes, então poderemos construir um novo mundo”, “outro sistema para finalmente dar corpo à fraternidade”. Por causa do que está acontecendo “na Líbia, na Tunísia e em tantas partes do mundo”, a “fraternidade humana” está sendo destruída, afirma Mattia, e “se não a reconstruirmos, não teremos alternativa à barbárie, ao avanço das guerras, das violências, da catástrofe ambiental. Não há outra alternativa a não ser nos redescobrirmos como irmãos e irmãs”.

Seu zelo em viver concretamente o que prega levou o padre a receber ameaças e até mesmo a ser colocado sob proteção, principalmente, ele nos explica, por ter denunciado “o sistema da máfia líbia”, onde “os chefões da máfia líbica lucram com o tráfico de seres humanos, com a repulsão de migrantes, como a ONU também denunciou”. Para as instituições, para a política, para a sociedade, o capelão da Mediterranea Saving Humans pede “para pegar os migrantes pela mão, para ouvi-los, para encontrá-los e depois caminhar juntos. Todos nós”. Ele desempenha seu ministério com paixão como homem e como sacerdote, acompanhado por muitos ativistas, pessoas muitas vezes diferentes dele: “Neles, vejo o amor de Jesus, a paixão de Jesus. Alguns acreditam nele, outros não, mas todos são o samaritano da parábola, vivendo aquele amor visceral que caracteriza o coração de Jesus”.

 

Fonte: A Terra é Redonda/L’Observatore Romano

 

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