Medellín, um laboratório do urbanismo
social
Nasci em Medellín, na
Colômbia, e tenho vivido boa parte dos meus 62 anos nesta cidade. Disso, talvez
o leitor deduza: estou habituado a viver em um país em guerra. Um país tomado
por guerrilhas rurais e urbanas, por grupos paramilitares, por gangues de narcotraficantes
de enorme poderio bélico e tudo o que essa mistura explosiva costuma gerar:
medo e sangue, em razão de milhares de mortes violentas todos os anos.
A Colômbia é uma das
nações com maior iniquidade do mundo: o índice de Gini, que mede a concentração
de renda, foi, em 2023, de 0.546 (quanto mais alto, pior). Houve uma ligeira
melhora na comparação com o ano anterior, em que o país marcou 0.556 pontos. A
Colômbia registrou, no ano passado, uma taxa de mortes violentas de 25,7 por
100 mil habitantes, o que nos alçou à posição de número 12 dentre as nações com
maiores índices de violência da América Latina e Caribe. O Brasil ficou na 16ª
posição.
Medellín já foi
símbolo do pior: teve, durante vinte anos, a mais alta taxa de mortes violentas
do mundo. Em 1991, o número de homicídios chegou a 6700, uma taxa de 383 casos
por 100 mil habitantes, dezoito por dia. Foram mais de 66 mil mortes violentas em
duas décadas. O cartel liderado por Pablo Escobar ostentava o título de maior
grupo criminoso do planeta.
Medellín, hoje, não é
mais símbolo do pior, muito pelo contrário: de uns anos para cá, tem sido
reconhecida como uma cidade-exemplo mundo afora. Em 2016, ganhou o que alguns
chamam de “o Nobel das cidades”: o prêmio Lee Kuan Yew World City, em razão de
suas profundas mudanças sociais, educativas, culturais e urbanas. As metrópoles
que chegaram à final desse prêmio foram Auckland, Sydney, Toronto e Viena. Em
2013, Medellín já havia conquistado o prêmio de “cidade mais inovadora” do
mundo, em disputa, na derradeira etapa, contra Nova York e Tel Aviv.
Esses e outros prêmios
vêm nos convertendo em referência para muitas metrópoles, que nos tomam como
modelo. Insistimos, porém, que, mais do que modelos, somos um laboratório
social e urbano, pois levamos três décadas ensaiando soluções estruturais e
conjunturais para as nossas imensas pobreza e desigualdade, para as nossas
atrozes violências políticas e urbanas.
Conseguimos uma
diminuição radical em nossas taxas de homicídio nos últimos trinta anos. Como
foi possível? Graças a ambiciosos projetos público-privados-comunitários e ao
entendimento de que Medellín tinha que se converter no que é atualmente: um
exemplo de que é possível superar, de maneira coletiva, o fracasso social de
uma cidade. Mudamos de pele. Por sorte – e não sem enormes dificuldades –,
estamos mudando também de alma.
O que ocorre na
Colômbia não é o mesmo que na Europa, onde a desigualdade social se manifesta
de formas mais amenas e a violência é menor. Não se trata, aqui, de um simples
projeto de melhoramento de bairros. Trata-se de um caminho para aprimorar as
cidades e, com isso, as mazelas de nosso país. Nossa ferramenta, nesse
processo, foi e segue sendo o urbanismo social.
Quando se fala em
urbanismo social, é normal que as pessoas prestem mais atenção à primeira parte
da expressão: “urbanismo”. Afinal, é um substantivo, a essência do que se quer
dizer. A palavra “social”, um adjetivo, é tomada como mero complemento, uma qualificação.
Isso se reflete nos projetos focados em comunidades pobres: antes de qualquer
coisa, discutem-se obras físicas. O que proponho, a partir de agora, é que seja
dada a mesma força às duas palavras. É preciso entender que o social, tanto
quanto o urbanismo, é essencial na transformação das cidades.
Durante muito tempo,
em Medellín, nós dissemos que precisávamos de projetos físicos, urbanos, que
dessem resultados sociais. Com o passar do tempo, notei que estávamos
equivocados. Aquilo que realmente queríamos soava parecido com isso, mas era na
verdade uma inversão: um projeto de transformação social, educativa e cultural
que desse resultados urbanos.
O que sempre buscamos
foi ampliar a inclusão e a coesão social em nossas cidades, costumeiramente
excludentes e indiferentes. Por isso, constatamos que, no urbanismo, as obras
físicas devem sempre estar submetidas ao projeto social, e não o contrário. É preciso
pensar a sociedade em todas as suas dimensões – educativas, culturais,
ambientais, esportivas, recreativas, de saúde, econômicas, de gênero – e moldar
com base nelas um projeto urbanístico.
Sempre que Medellín é
lembrada em foros urbanísticos, vangloriam-se seus avanços puramente físicos: a
arquitetura de nossos novos edifícios públicos, os parques-bibliotecas, as
Unidades de Vida Articulada (UVA), os colégios, os centros culturais, os jardins
infantis. Por trás desse urbanismo fotogênico, no entanto, corre um profundo
trabalho social, educativo, cultural, de comunicação pública e de construção de
uma nova história de cidade. É nisso que reside a verdadeira transformação de
Medellín.
Muitos projetos de
urbanismo social fracassam devido ao fato de serem projetos meramente urbanos,
onde o social é um fraco complemento, convertido em simples ferramenta
ocasional. Penso que a Habitat III (Quito, 2016), conferência das Nações Unidas
sobre o desenvolvimento urbano sustentável, se equivocou ao definir uma Nova
Agenda Urbana mundial, pois a urgência deveria ser projetar uma Nova Agenda
Social Mundial. Como seria uma cidade projetada a partir de uma perspectiva
social, que almeje a convivência e a coesão de todas as classes?
Quem quer que ande
hoje por Medellín pode fazê-lo seguindo o mapa das transformações. Sem que
tenhamos planejado isso, nos tornamos a cidade com maior turismo estrangeiro da
Colômbia e um dos principais destinos para nômades digitais. Um dos motivos
para isso é que em Medellín se pode andar por todos os cantos, incluindo os
bairros que durante anos foram impenetráveis devido aos alarmantes índices de
violência. Essa paisagem de transformações inclui o “mapa das maravilhas”:
edifícios e equipamentos públicos de alta qualidade em termos de arquitetura e
de impacto na vida cotidiana das comunidades.
Tudo o que é público
deve contribuir para a equidade social. O acesso a equipamentos e serviços
públicos de qualidade foi uma das fórmulas empregadas em Medellín: aumentou-se
a cobertura de fornecimento de água, esgoto, energia, telefonia e gás; mais ruas
foram asfaltadas; e instalou-se equipamentos educativos, culturais, esportivos
e recreativos de máxima excelência em todas as regiões da cidade. O sistema de
mobilidade pública virou um elemento de integração territorial. O sistema de
metrô, em funcionamento desde 1995 e sem o qual não teríamos boa parte das
dinâmicas sociais e culturais de Medellín, inclui duas linhas de trem, uma
transvia (VLT), seis metrocables (teleféricos urbanos) e várias linhas de
Metroplus (BRT, com integração ao metrô). Um detalhe de extraordinária
relevância: o melhor transporte público em Medellín está justamente nas zonas
de maior pobreza.
Nestes tempos em que o
urbanismo social anda na moda, acho importante frisar que essa política não se
faz por meio de um mero “retoque” em bairros pobres. Não se trata de embelezar
uma favela. Urbanismo social não é Photoshop. Seu impacto, mais do que estético,
é ético. Ele é chave para que alcancemos profundas transformações sociais em
nossas cidades.
Uma das grandes
dificuldades da gestão municipal, tanto na Colômbia quanto em outros países, é
conseguir fazer com que haja integração de todo o gabinete – ou seja, articular
as secretarias de modo que elas deixem de trabalhar somente em sua própria dimensão
setorial (de saúde, educação, cultura) e se coordenem também de forma
territorial. Em Medellín, estruturamos em 2004 os PUI, Projetos Urbanos
Integrais, uma ferramenta que busca precisamente o trabalho conjunto, com
objetivos compartilhados, de todas as instâncias municipais. Os PUI tiveram um
bom antecedente nos anos 1990: o Primed, Programa Integral de Melhoramento de
Bairros Informais de Medellín. O Primed, por sua vez, se inspirou, e muito, no
programa Favela-Bairro, implementado no Rio de Janeiro no início daquela
década, e que depois de alguns anos passou a ter apoio do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID).
Para definir em quais
bairros de Medellín deveríamos implantar os PUI, levamos em conta quatro
critérios:
•
Menor índice de desenvolvimento humano;
•
Maior índice de violência;
•
Maior densidade populacional (especialmente, maior quantidade de
crianças com menos de 6 anos);
•
Que a localidade em questão representasse algo de especial para a
cidade, por sua história, ou porque trouxesse à tona algum feito relevante.
Bairros que gerassem nas pessoas a sensação de que, “se foi possível aqui, pode
ser em qualquer outro lugar”.
A característica
principal dos PUI é a simultaneidade das intervenções: vários grandes projetos
urbanos e sociais são conduzidos ao mesmo tempo. Os PUI, além disso, permitem
que o poder público tenha um diagnóstico preciso dos bairros e de seus
problemas. Com isso, o programa se converte em uma ferramenta para conhecer,
reconhecer, valorizar e potencializar o que já existe na cidade. Os projetos
não são desenhados em um escritório de engenheiros e arquitetos – são pensados
por profissionais de todas as áreas, com participação constante da comunidade.
Os PUI não buscam
melhor a qualidade de vida em um bairro apenas, mas num conjunto de bairros –
as “comunas”, como dizemos na Colômbia. Entre seus objetivos está promover a
conexão urbana e social dessas áreas com o restante da cidade, e vice-versa.
Coesão urbana e social deveria ser um critério, sempre, no urbanismo social.
Trata-se de integrar, de conectar, e não de intervir em um bairro para mantê-lo
como um gueto social e cultural. Não podemos pensar a cidade de forma
desarticulada.
Nos Projetos Urbanos
Integrais de Medellín, foi fundamental a construção de edifícios públicos de
alta qualidade arquitetônica. Eles se tornaram símbolo dos processos de
transformação da cidade; uma nova referência de dignidade. São prédios que
resultaram de concursos nacionais e internacionais, assim como das oficinas de
projetos da EDU, a Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín. Centenas de
profissionais de arquitetura e engenharia têm sido formados pela EDU, e seu
trabalho se faz perceber na geografia não apenas de Medellín, mas também de
outras cidades pelo mundo.
Vinte anos atrás, os
edifícios mais importantes de Medellín pertenciam à iniciativa privada ou a
organizações religiosas, especialmente a católica. Que hoje sejam as
edificações públicas as mais visadas é uma das conquistas da cidade. E é
especialmente relevante que esses edifícios estejam localizados em bairros onde
era impensável que houvesse investimentos dessa natureza.
A maioria desses novos
edifícios públicos – que hoje são os nossos cartões-postais – é formada por
centros educativos e culturais. Entre eles estão dez biblioteca-parques, 21
UVAs, a Casa da Música, o Centro de Desenvolvimento Cultural de Moravia, a Biblioteca
de EPM (Empresas Públicas de Medellín), 34 jardins infantis do programa Buen
Comienzo, vinte colégios públicos de alta qualidade, o Rota N (edifício-base de
nossos desenvolvimentos tecnológicos), o Centro da Quarta Revolução Industrial
(no lugar onde durante 120 anos funcionou uma prisão para mulheres), o Museu de
Arte Moderna (que é privado, mas tem sua sede principal em um prédio público
que foi durante anos parte da siderúrgica da cidade), o Mova – Centro de
Inovação para Professores, o Museu Casa da Memória, a Plaza Mayor (centro de
convenções), parques arborizados e muito mais.
Todas essas
edificações são parte da busca por inclusão social; dão à cultura e à educação
um papel preponderante na transformação de nossa sociedade. Não são meteoritos
de concreto caídos do céu: são fruto de um longo processo de participação
popular, de acordos, de valorização das identidades territoriais e de
“concertações” entre muitas áreas do governo municipal, sem contar alianças com
empresas, fundações privadas e centenas de organizações comunitárias.
O trabalho conjunto em
favor da cidade foi a chave principal da transformação de Medellín. Por isso o
que ocorreu aqui chama tanto a atenção de outras metrópoles. E por isso temos
insistido para que não olhem só o que temos feito, mas também, e especialmente,
como temos feito; tudo o que há por trás de cada uma dessas obras, tudo o que
conforma nossos projetos.
Nossa arquitetura
simbólica, recheada de significado social, tem inspirado projetos que hoje são
muito relevantes em outras cidades, com os Compaz (Centros Comunitários da
Paz), de Recife, as Usinas da Paz, de Belém, os Nido (Núcleos de Innovación y
Desarrollo de Oportunidades), na Argentina, e as Utopías (Unidades de
Transformación y Organización para la Inclusión y la Armonía Social), de
Iztapalapa, na Cidade do México.
Temos ainda muito o
que fazer na América Latina, uma das regiões com maior iniquidade e violência
do mundo. Um urbanismo social que não se limite ao estético e se empenhe em
transformações éticas – pois, como sociedade, não podemos mais tolerar uma vida
tão desigual – é ferramenta indispensável para alcançarmos maior dignidade para
todos os que habitam a maior das invenções humanas: as cidades.
Fonte: Por Jorge
Melguizo, na revista Piauí
Nenhum comentário:
Postar um comentário