terça-feira, 6 de agosto de 2024

Esquerda Lula x Esquerda Boric: as diferenças entre os presidentes de Brasil e Chile

Quarenta anos separam as idades de Gabriel Boric, 38, e Luiz Inácio Lula da Silva, 78. Esta poderia ser apenas uma curiosidade trivial sobre os presidentes chileno e brasileiro, que se encontram a partir desta segunda-feira (5/8) em Santiago — mas explica, na verdade, muitas das diferenças na postura dos dois presidentes esquerdistas, segundo entrevistados pela BBC News Brasil.

A crise eleitoral na Venezuela, onde o presidente Nicolás Maduro e a oposição disputam as versões sobre o resultado do pleito do dia 28 de julho, foi o mais recente episódio a colocar Boric e Lula em papéis diferentes.

O presidente chileno foi um dos primeiros do mundo a reagir ao anúncio do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) de que Maduro teria sido reeleito, derrotando o candidato da oposição Edmundo González. Na rede social X, Boric escreveu que os resultados anunciados eram "difíceis de acreditar".

No mesmo dia, o Chile foi um dos países cujo corpo diplomático foi expulso pela Venezuela de seu território por ter questionado os resultados do pleito. Já Lula, em sua primeira declaração sobre o assunto, minimizou a crise e afirmou que o que está acontecendo é um "processo normal", onde a Justiça poderia resolver o impasse.

A crise na Venezuela deverá ser o elefante na sala do encontro bilateral entre Boric e Lula, que viajou a convite do chileno e ficará em Santiago até terça (6/8). Os eventos buscam trazer uma agenda positiva, com a previsão de assinatura de cerca de 20 acordos ou projetos entre os dois países em áreas diversas.

O Brasil é o terceiro maior parceiro comercial do Chile e principal destino dos investimentos chilenos no mundo, enquanto o Chile é o sexto maior mercado para exportações brasileiras.

Espera-se que os presidentes tratem da situação em Caracas, ao menos em reunião privada.

Para o cientista político chileno Patricio Navia, professor na Universidade Diego Portales e na Universidade de Nova York, justamente nesse capítulo sobre a Venezuela, a questão da idade— e mais precisamente da experiência —, apareceu.

"Provavelmente, a reação de Lula [à situação na Venezuela] reflete um pouco mais de experiência política que a reação de Boric, que tomou uma reação muito mais visceral e crítica, que de certa forma o deixa fora do espaço para gerar diálogo e negociação entre o governo e a oposição na Venezuela", diz Navia.

Mas o professor lembra que, na questão da Venezuela, as diferentes posturas vão além de Boric e Lula, e têm a ver mais com o papel do Chile e do Brasil no cenário internacional. Ele destaca a grandeza da população, do território e da economia do Brasil, em contraste com o tamanho do Chile — apesar deste, em geral, ter índices sociais melhores.

"O Chile não pode ser um ator internacional. Se o presidente do Chile disser algo, ninguém vai prestar atenção. Se o presidente do Brasil fala, prestam atenção, porque é o maior país da América Latina. Então, o Brasil entende o seu papel no mundo."

Navia exemplifica essa diferença de importância citando que o presidente americano, Joe Biden, ligou para Lula, e não para Boric, para falar sobre a situação da Venezuela.

"Por isso, Lula vem ao Chile e Boric vai querer estar próximo a Lula. Para Boric, uma foto com Lula será mais valiosa para ele" do que o contrário, brinca o cientista político sobre o encontro bilateral.

·        Velha guarda e 'nova agenda'

Lula está em seu terceiro mandato, e Boric, no primeiro. Quando o chileno assumiu o poder em 2022, aos 36 anos, tornou-se o presidente mais jovem já eleito em seu país.

Entretanto, ele não poderá buscar um segundo mandato na próxima eleição porque o Chile não prevê reeleição consecutiva.

Além dos anos de vida e de experiência política, Navia destaca também as diferentes trajetórias sociais de Lula e Boric.

"Lula nasceu pobre, foi líder sindical, trabalhou em fábricas. Boric é de classe média alta, sempre foi a colégios privados. Boric está disposto a ser um pouco mais irresponsável porque é mais jovem e vem da burguesia, enquanto Lula entende os custos da confrontação e a necessidade de criar alianças com quem pensa diferente", diz Navia, afirmando que Boric tem "muitos problemas" em conversar com pessoas diferentes ideologicamente.

Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), endossa essa diferença nas origens, destacando que Lula ascendeu como líder sindical e Boric, como "filho" do movimento estudantil.

"O Lula não estudou formalmente nas universidades, e Boric nasce nas universidades", ressalta Lopes, destacando que o brasileiro se formou politicamente em um contexto ainda fortemente influenciado pela Guerra Fria.

"Para o Lula, o prisma econômico é muito forte. Questões relativas à infraestrutura, aos meios de produção e aos conflitos de renda pesam muito para ele, no raciocínio dele. Boric é outra coisa, ele não está tão ligado a esse conflito material — pelo lugar de fala dele, por vir do movimento estudantil, por ser de um país que já é mais rico", enumera.

O contexto histórico da trajetória de cada um também importa, lembra Talita Tanscheit, brasileira e professora da Universidade Alberto Hurtado.

"O Lula e o PT fazem parte de uma esquerda que reemerge nos processos de transição à democracia na América Latina, com o fim das ditaduras militares e a criação ou o restabelecimento dos partidos políticos de esquerda. Boric e a Frente Ampla emergem num processo de reinvenção da ação coletiva no Chile nos anos 2010", explica a cientista política.

Ela destaca a adesão dessa "nova esquerda" à chamada agenda dos novos direitos, que inclui assuntos como aborto, eutanásia, maconha e saúde mental, e ao identitarismo, um debate contemporâneo que ressalta e busca recompensar a distribuição de oportunidades determinada por gênero, raça, entre outros marcadores de diferenças sociais.

"Essa nova esquerda não é forjada no mundo sindical, então a centralidade do mundo do trabalho é menor — algo muito relevante no caso brasileiro e do Lula", afirma Tanscheit, dizendo que, no Brasil, segundo ele, essa "nova esquerda" tem como representante o PSOL.

No governo Boric, o identitarismo se reflete numa maior presença de mulheres no governo, aponta Patricio Navia.

"Lula tem uma maioria de ministros homens, algo que para Boric é impossível de entender", destaca.

Entretanto, com as derrotas em dois plebiscitos para tentar aprovar uma nova Constituição, Boric também precisou recuar em sua agenda.

"Boric chegou ao poder querendo reformar drasticamente o Chile. Mas as principais questões políticas de Boric foram simplesmente abandonadas, porque as pessoas votaram contra elas nos plebiscitos. Então ele foi muito mais moderado porque foi muito limitado no que era capaz de fazer", afirma o cientista político.

·        É a economia

Navia destaca que eventuais diferenças entre Brasil e Chile na política econômica podem ter mais a ver com as características próprias dos países do que de seus governantes.

"As economias do Brasil e do Chile são bem diferentes. O Chile é voltado para a exportação e é um país de 20 milhões de pessoas. Então a economia do Chile precisa de exportação."

"No Brasil, sempre houve uma economia doméstica significativa. Presidentes brasileiros de esquerda e de direita no Brasil têm que se preocupar com protecionismo. Já o Chile não pode implementar políticas protecionistas porque a economia simplesmente não é grande o suficiente", diz o professor.

Dito isso, Talita Tanscheit avalia que, no que diz respeito aos atuais ministros da Fazenda do Brasil e do Chile — Fernando Haddad e Mario Marcel —, a conduta dos governos Lula e Boric tem sido bem semelhante.

"Há uma proposta de estabilizar [o país] e fazer reformas para crescer", diz a cientista política, destacando a aposta no controle da inflação e nas reformas tributárias com o argumento de investir em desenvolvimento social.

E, apesar dos discursos e diferenças entre a velha e a nova guarda da esquerda latino-americana, Tanscheit destaca que, dentro do próprio governo Boric, elas não estão tão distantes assim: as figuras e ministros "mais relevantes" têm origem no governo da ex-presidente Michelle Bachelet.

"É um governo da nova esquerda dirigida pela velha esquerda chilena", resume.

¨      'Começou uma nova era' na relação entre 'Brasil e Chile', diz Lula

Em sua visita oficial a Santiago, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou o laço histórico e profundo entre o Brasil e o Chile.

Em um pronunciamento proferido nesta segunda-feira (5), na capital chilena, Lula destacou a importância da amizade bilateral, ressaltando que a relação entre os dois países transcende interesses e se fundamenta em uma parceria sólida e abrangente.

Lula recordou que, durante seus mandatos anteriores, visitou o Chile em sete ocasiões e que, desde seu retorno ao cargo, recebeu o presidente chileno Gabriel Boric duas vezes em Brasília.

O discurso de Lula sublinhou a importância da integração regional, mencionando acordos recentes, como o de isenção de roaming e o reconhecimento mútuo de carteiras de habilitação. Ele também enfatizou a necessidade de cooperação para enfrentar desafios comuns, como desastres naturais e crime organizado.

Venezuela e mais

No pronunciamento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu transparência no processo eleitoral da Venezuela.

"Expus [durante a conversa com o Boric] as iniciativas que tenho empreendido com os presidentes Gustavo Petro (Colômbia) e Lopez Obrador (México) em relação a processo político na Venezuela. O respeito pela tolerância, o respeito pela soberania popular é o que nos move a defender a transparência dos resultados. O compromisso com a paz é que nos leva a conclamar as partes aos diálogos e promover o entendimento entre governo e oposição", afirmou Lula.

O presidente brasileiro manifestou apoio à proposta chilena de um mecanismo regional de resposta a desastres e anunciou a assinatura de um tratado de extradição.

A relação econômica entre Brasil e Chile foi destacada com o avanço na facilitação do comércio e a criação de novas oportunidades no setor de turismo. Lula mencionou o plano de trabalho que visa promover o Chile como um destino popular para turistas brasileiros e a ambição de conectar a América do Sul através de grandes rotas viárias, das quais duas incluem o território chileno.

O presidente brasileiro também ressaltou a importância de colaboração nas áreas de bioeconomia e proteção ambiental, elogiando o compromisso do Chile com a sustentabilidade e a defesa dos biomas da Amazônia e da Antártida.

Lula reafirmou o apoio à candidatura de Valparaíso como sede do secretariado do Tratado do Alto Mar e à eleição de Letícia Carvalho para a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos.

O discurso incluiu um convite para que o presidente Boric participasse da Cúpula do G20 no Rio de Janeiro e a disposição do Chile de integrar a Aliança Global de Combate à Fome e à Pobreza.

Lula também falou sobre a necessidade de unir esforços para garantir direitos trabalhistas e defender a democracia, convidando Boric para a reunião de líderes democráticos em Nova York.

Ao visitar o Salão Democracia e Memória em Santiago e ouvir a gravação do discurso de Salvador Allende, Lula lamentou o apoio do Brasil à ditadura chilena no passado, reforçando o compromisso com a democracia e a justiça social.

"Como disse Pablo Neruda, nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança, mas não há lutas nem esperanças solitárias [...] Começou uma nova era entre a relação Chile e Brasil", concluiu Lula, destacando a visão compartilhada de um mundo mais justo e solidário entre Brasil e Chile.

¨      No Chile, Lula defende divulgação de atas eleitorais na Venezuela; Boric não se pronuncia

O presidente Lula reiterou nesta segunda-feira (5) o chamado do Brasil para a divulgação das atas eleitorais na Venezuela, e pediu respeito à soberania popular, durante visita de Estado ao Chile, país que é forte crítico da vitória de Nicolás Maduro.  

"Também expus as iniciativas que tenho empreendido com os presidentes Gustavo Petro e López Obrador em relação ao processo político venezuelano. O respeito pela soberania popular é o que nos move a defender a transparência dos resultados. O compromisso com a paz é o que nos leva a conclamar as partes ao diálogo e promover o entendimento entre governo e oposição", disse o presidente Lula em declaração à imprensa ao lado do homólogo chileno, Gabriel Boric. 

Da sua parte, o mandatário chileno evitou comentar as eleições venezuelanas: "Essa visita é sobre a relação entre Chile e Brasil. Sei que poderá haver perguntas sobre outros temas, em particular em relação à Venezuela. Vou me referir a isso amanhã à tarde". 

Os presidentes de Brasil, México e Colômbia pediram na última quinta-feira que a Venezuela divulgue a apuração detalhada dos votos, em meio a uma disputa sobre o resultado da eleição presidencial, algo que tem causado protestos no país.

O conselho eleitoral da Venezuela proclamou Maduro como vencedor da eleição de 28 de julho, com 51% dos votos, mas a oposição liderada pelo candidato Edmundo Gonzalez não reconheceu os resultados e o autoproclamou presidente. 

Em resposta às críticas sobre o processo eleitoral, a Venezuela expulsou diplomatas de uma série de países da região, incluindo o Chile. 

A eleição presidencial na Venezuela foi realizada em 28 de julho, e o Conselho Nacional Eleitoral declarou Nicolás Maduro como vencedor. No dia seguinte, protestos ocorreram no país por aqueles que discordavam dos resultados da eleição; confrontos violentos entre forças de segurança e manifestantes ocorreram em Caracas e outras cidades, resultando na detenção de mais de 2.000 pessoas. Washington, sem esperar pelos resultados da contagem dos votos e posterior auditoria, pediu à comunidade internacional que reconhecesse o líder da oposição Edmundo Gonzalez como o vencedor da eleição presidencial na Venezuela. Legisladores dos EUA e da UE, responsáveis por relações internacionais, ameaçaram na última sexta-feira responsabilizar Maduro se ele não renunciar voluntariamente como chefe de Estado após a eleição, classificando os resultados como fabricados.

¨      Boric reage à expulsão do corpo diplomático chileno da Venezuela

O presidente do Chile, Gabriel Boric, reagiu à decisão do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de expulsar do país o corpo diplomático chileno e de outras seis nações. Em postagem no X, antigo Twitter, na noite desta segunda-feira (29), Boric declarou: "o governo da Venezuela anuncia a expulsão de nossa missão diplomática de seu país com uma série de argumentos inverossímeis e demonstrando uma profunda intolerância à divergência, essencial em uma democracia. O nosso no Chile é um governo de aliança entre a esquerda e a centro-esquerda, e defendemos firmemente os valores democráticos e o respeito irrestrito aos direitos humanos. Fazemos isso por convicção e por aprendizado de nossa própria história nacional".

"Neste caso, não fizemos mais do que sustentar o que acreditamos ser correto: que os resultados da eleição sejam transparentes e verificáveis por observadores não comprometidos com o governo atual mediante a publicação integral das atas. Até o momento em que escrevo estas linhas, isso não aconteceu. É justamente o respeito à soberania do povo venezuelano, e os efeitos que a diáspora forçada de parte importante desse povo provocou, que nos leva a exigir transparência. Nem subordinações, nem cálculos. Princípios. Pelo bem dos venezuelanos comuns, de toda a América Latina, e além das brigas de adjetivos, esperamos que a vontade do povo venezuelano seja respeitada, cumprindo com os padrões básicos da democracia", completou.

<><> Saiba mais: o governo do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, expulsou todo o corpo diplomático das embaixadas de Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai. Representantes dos sete países exigiram divulgação das atas eleitorais pelo Ministério Público venezuelano, uma cobrança que aconteceu de forma hostil, não diplomática, segundo o governo de Nicolás Maduro, reeleito presidente. 

O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) afirmou nesta segunda-feira (29) que o presidente venezuelano conseguiu se reeleger, com 51,2% dos votos, para um novo mandato, de seis anos (2025-2031). O opositor Edmundo González teve 44%, mas seus aliados disseram que 70% dos eleitores votaram nele.

Se o atual presidente terminar o seu novo mandato, ele terá ficado por 17 anos na Presidência da Venezuela. O número é superior ao tempo em que seu antecessor Hugo Chávez ficou no poder (14 anos).

 

Fonte: BBC News Brasil/Brasil 247

 

Nenhum comentário: