quinta-feira, 4 de julho de 2024

França: As lições de esperança da Nova Frente Popular

Como era esperado, a extrema-direita venceu o 1º turno das eleições legislativas na França. O Reunião Nacional, de Marine Le Pen, conquistou 33% dos votos, confirmando não apenas as projeções mais recentes como também sua curva de crescimento eleitoral desde que ela foi para o 2º turno presidencial pela primeira vez, em 2017. Outra confirmação que saiu das urnas foi a derrota do atual presidente, Emanuel Macron (pela coalizão Juntos) que caiu para o terceiro lugar, com 21% dos votos. 

A grande novidade foi a Nova Frente Popular, com 28% dos votos. A união de partidos de esquerda foi capaz de reverter um quadro de defensiva do campo popular desde o péssimo governo socialista de François Hollande (2012-2017). A NFP não apenas assumiu o protagonismo da polarização contra o fascismo como foi capaz de promover uma mobilização cidadã em defesa da democracia que culminou em um comparecimento eleitoral recorde, de 65,8%, o maior do século XXI. 

E, mais importante ainda, é que a esquerda pode sim crescer e derrotar a extrema-direita no 2º turno das eleições legislativas, que ocorrerão em 7 de julho. 

São duas as principais razões para esse cenário de esperança. Primeiro, a unidade formal entre os partidos de esquerda. Esse tipo de frente potencializa o alcance eleitoral da esquerda, em contraste com a dispersão decorrente de várias candidaturas. A razão para isso é bastante clara: quando há várias candidaturas, os partidos de esquerda desperdiçam energia competindo entre si pelo eleitorado que já lhes é fiel, geralmente entre 20% e 25% dos votantes. Com uma candidatura unificada, esses 20% a 25% se tornam a base inicial, permitindo à coalizão focar em estratégias para conquistar eleitores indecisos, independentes ou de centro.

É aí que entra o segundo elemento: o programa. Com unidade, é possível apresentar uma plataforma que destaca as qualidades defendidas por cada setor da esquerda em um projeto nacional unificado. Quando há divisão, contudo, cada partido fica restrito às suas diferenças em relação aos demais partidos de esquerda, dificultando a criação de um caminho abrangente.

O programa da NFP propôs a taxação dos super ricos para financiar uma nova rede de proteção social e aumentar o salário mínimo, rompendo com o neoliberalismo dominante na política francesa desde Chirac – e cujos resultados são o principal responsável pelo crescimento da extrema-direita. A NFP também defende a paz e a solidariedade, um mundo multipolar, direitos para imigrantes, reconhecimento da crise climática, investimentos em uma transição energética justa e uma negociação global sobre o clima.

Foi esse programa consistente que impulsionou o crescimento da NFP e alçou a esquerda à posição de líder de uma frente democrática antifascista. E é justamente essa plataforma que vem sendo usada pelos macronistas e outros setores da direita como fator de resistência para declarar apoio às candidaturas de esquerda no 2º turno. 

O mais importante a se destacar é que a maioria dos assentos do parlamento francês serão decididos em um segundo turno, no dia 7 de julho. Trata-se de uma eleição majoritária distrital – ou seja, o país é dividido em 577 distritos e o candidato mais votado leva a vaga no parlamento. Ocorre que o 2º turno pode ser disputado por três ou mais candidaturas, basta que tenham alcançado pelo menos 12,5% dos votos. E é aí que as alianças ganham força, pois se um partido retira seu nome que está em terceiro em favor de um nome que está em segundo, essa aliança tende a levar a vaga. 

A RN lidera em 297 distritos, com a NFP em 159 e Macron em 70. No momento, o que temos é um total de 39 cadeiras conquistadas por Le Pen e 32 obtidas pela NFP, e apenas 2 de Macron. Em outras palavras, uma frente ampla democrática pode derrotar Le Pen e impedir que a extrema-direita tenha maioria no parlamento francês. 

A NFP já anunciou que seus candidatos em terceiro lugar abandonarão a disputa em favor dos apoiadores de Macron nos distritos em que eles tiverem mais chances de vencer. O atual presidente deu declarações vagas, defendendo a unidade de “democratas” sem declarar apoio à NFP. Já o atual primeiro-ministro, Gabriel Attal, do partido de Macron, se posicionou de modo firme em defesa de uma aliança com a esquerda. A direita tradicional provavelmente apoiará Marine Le Pen, embora seja possível que seu eleitorado, cada vez mais reduzido, não siga essa orientação, optando por nem ir votar. 

Ainda no domingo, após a votações, a NFP ocupou as ruas das principais cidades do país em uma mobilização. Será uma semana será de intenso trabalho para convencer tanto as lideranças macronistas, incluindo o próprio presidente, quanto seu eleitorado, de que é necessário derrotar Le Pen agora para impedir sua vitória nas eleições presidenciais de 2027, nas quais ela lidera em todas as pesquisas.

Caso a esquerda consiga impedir a RN de obter maioria parlamentar, a NFP terá o direito de indicar o novo primeiro-ministro e colocar parte do seu programa em prática. É, sem dúvida, o cenário menos provável hoje e será extremamente desafiador. Independente do resultado, a unidade e a mobilização geradas já tornam a NFP vitoriosa e criam a esperança para uma vitória em 2027, que pode contribuir com um ciclo global de superação do neoliberalismo e derrota definitiva da extrema-direita no mundo.

 

¨       Quais os possíveis cenários para a França pós-eleição?

No primeiro turno das eleições parlamentares antecipadas na França, o partido de ultradireita Reuniâo Nacional (RN) recebeu a maioria dos votos. A distribuição final das cadeiras na câmara baixa do Parlamento francês, a Assembleia Nacional, será decidida no segundo turno das eleições, que ocorrerá em 7 de julho.

O que isso significa para a capacidade de governar em Paris? Eis as perguntas e respostas mais importantes.

·        Qual primeiro-ministro o presidente Macron nomeará após a eleição?

A Constituição da Quinta República, adotada em 1958, não impõe nenhuma restrição constitucional ao presidente para selecionar e nomear o primeiro-ministro. Entretanto, ele deve levar em conta a maioria no Parlamento.

Se falta apoio parlamentar ao primeiro-ministro, a Assembleia Nacional votará contra ele. O governo teria então que apresentar sua renúncia ao presidente.

Se a RN obtiver a maioria dos assentos na Assembleia Nacional, o presidente Emmanuel Macron terá que oferecer ao líder do partido, Jordan Bardella, o cargo de primeiro-ministro.

"Ele não tem alternativa", diz o especialista em França Hans Stark, da Universidade Sorbonne, em Paris. "Macron está muito enfraquecido. Ele não tem muito espaço de manobra."

No entanto, Bardella, de 28 anos, faz da maioria absoluta dos assentos parlamentares uma condição para assumir a responsabilidade pelo governo. Caso contrário, ele não seria capaz de implementar seu programa político.

Com a nomeação de Bardella como primeiro-ministro, a França entraria na quarta "coabitação" de sua história.

·        Como funciona a "coabitação"?

Quando o presidente e o primeiro-ministro vêm de campos políticos diferentes, o poder executivo na França é dividido. O presidente e o primeiro-ministro devem, então, trabalhar juntos para o bem do país em uma chamada "coabitação".

A primeira "coabitação" foi formada em 1986, após um período tempestuoso, sob o comando do presidente socialista François Mitterrand. Depois de perder as eleições parlamentares, Mitterrand nomeou o gaullista Jacques Chirac como primeiro-ministro em 1986 e seu colega de partido Edouard Balladur em 1993.

De 1997 a 2002, o primeiro-ministro socialista Lionel Jospin governou sob a presidência do conservador Chirac.

A divisão do poder entre dois campos políticos diferentes gera mais atritos. Os processos de tomada de decisão geralmente se tornam mais complicados e lentos.

O sucesso de um governo de coabitação depende fundamentalmente de quão bem o primeiro-ministro e o presidente podem trabalhar juntos. A Constituição da Quinta República de 1958, que ainda está em vigor hoje, não prevê explicitamente a "coabitação".

·        Qual é a margem de manobra que o governo tem em uma "coabitação"?

Em uma "coabitação", as funções do presidente da república são temporariamente transferidas para o primeiro-ministro. Seria então o novo primeiro-ministro, e não Macron, que definiria as linhas gerais da política.

Em termos de política doméstica em particular, o governo tem um amplo espaço de manobra em uma "coabitação". Em termos de política externa e de segurança, ele compartilha o poder com o presidente da república, que é responsável pelas relações internacionais.

Pouco antes do primeiro turno da votação, Marine Le Pen explicou como a RN prevê a divisão de poder. "Comandante-em-chefe das Forças Armadas é um título honroso para o presidente (da república), já que o primeiro-ministro detém as rédeas".

Questões de política doméstica e econômica também podem levar a disputas de poder entre o presidente e o primeiro-ministro, conforme demonstrado pela primeira "coabitação", durante o governo de Mitterrand.

Em 14 de julho de 1986, feriado nacional da França, o presidente repudiou publicamente seu primeiro-ministro. Mitterrand anunciou que não assinaria os decretos do governo de Chirac sobre a reprivatização de um total de 65 bancos, seguradoras e empresas industriais nacionalizadas.

E sem a assinatura do presidente, nenhum decreto do governo pode entrar em vigor. Entretanto, essa recusa só pode atrasar os planos do governo, não impedi-los.

·        Como Macron e Bardella trabalhariam juntos?

O presidente Macron rejeita pelo menos algumas partes do programa da RN. A RN possivelmente tentaria, analisa Hans Stark, "encurralar Macron até que ele finalmente renuncie".

Entretanto, um bloqueio total do trabalho de um governo da RN também seria impensável. Macron e Bardella provavelmente se esforçariam para conviver.

Se o presidente rejeita os planos de seu novo governo, ele tem que justificar isso. É bem possível que Macron recorra mais frequentemente ao Conselho Constitucional para que as leis sejam verificadas quanto à compatibilidade constitucional antes de serem promulgadas. Alguns projetos de um governo da RN já poderiam ser barrados por esse obstáculo.

·        O que acontecerá se a RN obtiver uma maioria relativa?

O especialista Hans Stark supõe que Bardella cumprirá seu anúncio e que a RN abrirá mão de assumir o governo se o partido se tornar a força mais forte, mas ficar muito aquém da maioria absoluta.

Se nenhum outro campo for capaz de formar uma maioria, o governo do país ficará bloqueado. Nesse caso, o presidente não pode ordenar uma nova dissolução do Parlamento. A Constituição prevê um período de espera de um ano.

No Parlamento dissolvido por Macron no início de junho, os partidos do campo presidencial tinham apenas uma maioria relativa. O governo, portanto, invocou repetidamente o Artigo 49.3 da Constituição francesa nos casos de leis importantes.

O recurso permite que o governo aprove uma lei sem uma votação na Assembleia Nacional. A menos que uma moção de censura seja apresentada e aprovada em 24 horas.

Entretanto, esse artigo constitucional é altamente controverso na França. É improvável que um novo governo de coabitação queira governar com a ajuda do Artigo 49.3 desde o início do período legislativo.

·        Qual seria a solução para um impasse na Assembleia Nacional?

Até o momento, os partidos não divulgaram propostas sobre como reagiriam a uma Assembleia Nacional sem maioria. Marine Le Pen, da RN, é conhecida por acreditar que, nesse caso, chegou a hora de realizar eleições presidenciais antecipadas.

Entretanto, Macron não poderia ser forçado a renunciar. Não há um cenário claro para uma "república bloqueada" na França. Muito dependeria da dinâmica política após a eleição.

Em princípio, a nomeação de um governo não partidário de especialistas também seria concebível. Entretanto, não há nenhum modelo histórico para isso na Quinta República.

·        O presidente pode desbloquear a "república bloqueada"?

O presidente Emmanuel Macron poderia ativar o Artigo 16 da Constituição francesa. Isso dá ao presidente poderes extraordinários em situações de crise para garantir a continuidade do Estado.

O presidente poderia então aprovar leis e promulgar decretos sem a aprovação do Parlamento. Entretanto, Hans Stark, especialista em França, não acredita que o Artigo 16 seja uma opção real para Macron.

"Não vejo como ele pode manter isso por três anos – até a próxima eleição presidencial. Isso significaria basicamente que estaríamos em um modo de crise permanente."

 

Fonte: Carta Capital/Deutsche Welle

 

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