Direito à
cidade: genealogia de uma ideia radical
Henri
Lefebvre foi um filósofo e sociólogo urbano que viveu intensamente o “breve
século XX”: tinha dezesseis anos quando rebentou a Revolução Russa e morreu aos
noventa, dois anos após a queda do Muro de Berlim e alguns meses antes do
colapso da União Soviética. A sua longa vida abrangeu quase todo o século XX e
não é por acaso que testemunhou os momentos e as questões mais decisivas desse
período. Lefebvre inaugurou um tipo de filosofia, seguindo os passos de Karl
Marx e Friedrich Engels, capaz de se desenvolver simultaneamente no plano
teórico e no plano prático. É possível identificar a caraterística fundamental
da sua filosofia na interpretação dos dois filósofos alemães, que se
caracteriza pelo apelo constante à união da “teoria” filosófica com a “práxis”
política. É sobretudo esta perspectiva que permite ao autor compreender as
transformações da sociedade fordista, desde a questão espacial, rural e urbana,
passando pela vida cotidiana, até uma teoria geral da política capaz de abarcar
toda a análise da modernidade capitalista.
• O significado sócio-político do
“direito à cidade” de Lefebvre
Antes
de mais, é em Espaço e Política. O Direito à Cidade II, onde Lefebvre esclarece
o sentido da famosa fórmula do “direito à cidade”. Quatro anos após a
publicação do volume O direito à cidade, em 1968, Lefebvre clarifica os temas
que tinha começado a abordar. Lefebvre estava convencido de que o crescimento
ilimitado da cidade conduz a um declínio da qualidade da arquitetura e do
urbanismo. As pessoas são forçadas a viver cada vez mais longe, especialmente
os trabalhadores, empurrados cada vez mais para longe dos centros urbanos. Esta
expansão das cidades tem sido motivada sobretudo por diferenças de classe,
culturais, raciais e de gênero. A urbanização da sociedade coincide com o
agravamento da vida urbana e é a pensar nos habitantes das periferias, considerando
a sua segregação e isolamento, que o autor se refere ao conceito de “direito à
cidade”. É, portanto, possível notar como o “direito à cidade” se situa em
continuidade com a herança marxiana. Lefebvre mantém-se coerente com o seu
objetivo de colocar as categorias de Marx à prova da análise urbana, para
renovar e atualizar o próprio marxismo. A intuição original do autor reside na
problematização do sujeito social do “proletariado” (claramente ligado à
situação da classe operária do século XIX), olhando para todos os trabalhadores
e habitantes das periferias que vivem concretamente a segregação social dos
grandes edifícios projetados com base no modelo funcionalista na reorganização
da periferia na segunda metade do século XX. Assim, ao refletir sobre o
“direito à cidade” num contexto urbano produzido pelas políticas espaciais do
capitalismo fordista, acaba por incluir, na sua teoria da emancipação, todos os
sujeitos sociais que vivem numa condição precária à margem do mercado e do
consumo: em particular, à luz do que se passava na altura na periferia
parisiense de Nanterre, congestionada pela habitação precária dos trabalhadores
imigrantes. Lefebvre renova as categorias marxistas, mas numa perspectiva
diferente. De fato, o autor, ao redefinir o conceito de “classe operária”,
retoma os estudos de Engels sobre o proletariado inglês do século XIX. Engels,
mais do que Marx, põe em evidência a convergência mútua entre, por um lado, a
análise socioeconômica da grande indústria e, por outro, as consequências
espaciais na vida cotidiana do trabalhador que vive na cidade. Lefebvre retoma
assim uma ideia de Engels que foi largamente ignorada pelo marxismo,
nomeadamente a importância das contradições de classe que se desenvolvem na
dimensão espacial. Resumindo, Lefebvre, embora não despreze a dureza que os
conflitos sociais por vezes assumem, sublinha sobretudo nas suas obras a ideia
de uma construção comum e coletiva da cidade pelos oprimidos, ou seja, “a
cidade como obra de arte”, espacializando a subjetividade política marxista e
contextualizando-a nas fissuras da sociedade de consumo de tipo fordista. O que
é para Lefebvre a “classe operária”, o “proletariado”? É, fundamentalmente, a
evolução coerente, no século XX, desse sujeito social que Engels (com Marx) tinha
em vista. A título de exemplo: se Engels tinha diante de si o protagonista
operário do filme de Mario Monicelli, Os Companheiros, ou os romances de
Charles Dickens e Jack London, Lefebvre aprofunda as contradições vividas por
Ludovico Massa (Gian Maria Volontè) no filme de Elio Petri, A Classe Operária
Vai ao Paraíso.
• O que significa “direito à cidade”?
Em
segundo lugar, é fundamental sublinhar o significado de “direito”. Como escreve
Lefebvre, não é um direito no sentido jurídico do termo, mas é constantemente
referido, para definir a situação concreta da sociedade. O filósofo francês não
pretende acrescentar um novo direito à longa lista de novos “direitos humanos”,
mas indicar um caminho de luta, de conflito social, concreto e performativo. O
“direito à cidade” é, de fato, uma exigência social e política. Sem uma crítica
radical do sistema capitalista, não há lugar para a sua autêntica realização.
Não se trata, portanto, de uma questão jurídica, mas de uma questão
político-filosófica. Com o conceito de “direito à cidade”, Lefebvre imagina uma
teoria política da emancipação no contexto espacial, cuja força motriz se
choca, no entanto, com a vontade predatória das lógicas econômico-políticas do
capitalismo. A cidade é assim interpretada como o palco onde se exprimem os
conflitos sociais entre os detentores da riqueza e do poder e as classes
subalternas. O espaço da cidade é o palco de uma disputa entre aqueles que
podem ser visíveis e ter voz e aqueles que devem permanecer invisíveis e
incapazes de falar. O reconhecimento sócio-político é determinado na
democratização e emancipação do espaço vivido pelos grupos subalternos. E o
estatuto do político, na sua dimensão espacial, é necessariamente atravessado
pela desunião, pelo desacordo entre os que são excluídos e os que excluem: o
urbano é, pois, para Lefebvre, o lugar por excelência “de expressão dos conflitos”.
É por isso que penso que se pode falar de uma concepção conflitualista do
“direito à cidade”. Este conflito diz respeito ao espaço urbano e à sua
organização. A questão radical sobre a qual Lefebvre reflete é: quem decide
sobre o planejamento do espaço, quem decide como os seres humanos devem viver e
habitar? Em outras palavras, decidir “sobre a cidade” é decidir “sobre a
política”. Por isso, é possível ler Lefebvre como um filósofo e sociólogo do
conflito e, em particular, do conflito que ocorre na dimensão espacial da vida
urbana. O “direito à cidade” realiza-se essencialmente através da ação política
que vise uma verdadeira democracia, incluindo na gestão e organização do
espaço. É a inversão da cidade como “mercadoria” dos excluídos, dos oprimidos,
e a reconstrução dialética de uma nova vida em comum, como “obra de arte” dos
que a habitam. A definição do conceito de “direito à cidade” permanece,
portanto, um campo aberto para o acontecimento político. Lefebvre não encerra
um significado num sistema de pensamento, mas oferece ao leitor algumas pistas
para formular uma teoria que parte sempre da ação e do que acontece na
sociedade. A cidade para Lefebvre não é apenas o lugar e o produto da
valorização capitalista, mas também uma oportunidade concreta para a
regeneração do espaço social através da participação ativa dos habitantes que a
habitam e a atravessam. A cidade é assim o lugar da possibilidade de
reapropriação do espaço e do tempo conforme as necessidades e desejos daqueles
que a habitam, especialmente os mais vulneráveis. Nesta perspectiva, a cidade
torna-se uma obra de arte e os habitantes são os verdadeiros artistas da
construção do espaço social; isto é, o “valor de uso do espaço social”, onde os
habitantes podem enveredar por um caminho de emancipação e de libertação da
precariedade e da pobreza. Uma verdadeira “revolução urbana” ocorrerá quando o
espaço social for a obra, o desenho, o projeto daqueles que o habitam e o
atravessam; quando houver a possibilidade de uma produção livre, partilhada,
plural, democrática do espaço e não mais subordinada a interesses e benefícios
particulares.
• Conclusões
Transformar
o nosso próprio espaço de vida, tornando-o útil às necessidades de todos, é a
verdadeira forma de praticar esse ideal utópico-prático a que Lefebvre chamou
“direito à cidade”. A cidade como “produto”, como “mercadoria”, é assim
invertida em favor de uma cidade entendida como uma autêntica obra, ao serviço
daqueles que a habitam: o direito à cidade legitima a recusa de ser excluído da
realidade urbana, é uma ação coletiva contra a discriminação e a segregação
urbana e social. Aqui, o espaço é entendido como um cadinho de diferenças, de
troca de saberes, é o prelúdio de uma espiral emancipatória de transformação da
vida quotidiana dos seres humanos. O “direito à cidade” é, portanto, o direito
à participação e ao usufruto dos bens e serviços coletivos contra a lógica
proprietária e privatizante do capitalismo.
Fonte:
Por Francesco Biagi, em Outras Palavras
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