sexta-feira, 5 de julho de 2024

A queda do fascismo e seu “eterno retorno” na Europa

Os eventos de julho de 1943 foram o estopim da crise que permeou o grupo que encabeçava o governo fascista na Itália. O rei Vittorio Emanuele III vivia seu declínio diplomático e se abraçava na confiança cega por Benito Mussolini, a quem deu plenos poderes, em 1940, para entrar na guerra, acreditando que a vitória do Eixo sobre os Aliados seria questão de tempo.

As apostas erradas começariam já no mês de outubro daquele ano, quando houve o fracasso da ofensiva militar italiana contra a Grécia. A expulsão das tropas italianas pelo exército grego, preparado e organizado belicamente, chegou ao norte da Albânia, e, em abril de 1941, tiveram de ser socorridas pelo exército nazista.

As seguidas vitórias britânicas em Taranto e na Líbia, em janeiro de 1941, e a tomada da Etiópia, que vivia sob domínio italiano, escancaram a vulnerabilidade e fraqueza dos italianos, que numa atitude irresponsável se uniram em junho do mesmo ano ao exército nazista na invasão da URSS, que resultou numa das maiores derrotas da Segunda Guerra.

Preocupado com o futuro da monarquia e de sua linhagem, o rei se viu persuadido a retirar seu apoio, gerando confusão e desapoio por parte da opinião pública, que não era apoiadora da guerra, mas inimiga da inação de Vittorio diante dos fatos. Mussolini, entretanto, era tomado por rompantes impulsivos que só viam no poder bélico a salvação da Itália e a sua permanência no poder. Já em seu último discurso como primeiro-ministro, Mussolini apresentava confusão e incoerência, pois o próprio discurso apresentava erros de vocabulário e incongruências que não eram comuns, afirmando que os Aliados ocupariam apenas a costa italiana,

A ganância e ambição do líder fascista seriam seus motivos de queda, visto que a entrada da Itália no Eixo como uma forte potência, coligado a Adolf Hitler, culminou numa derrocada crise política, social e econômica interna. Em 10 de julho daquele ano, os Aliados chegaram à Sicília, tomaram-na sem possibilidade de defesa, mostrando a vulnerabilidade do exército fascista e a confusão que já se apoderava dos seus líderes.  Os seguidos fiascos resultaram em críticas ferrenhas por parte da população e pela corte política. A situação de miséria assolava a Itália; muitas famílias perdiam seus entes nos campos de batalha e pela guerra; a incapacidade do Duce era exposta a cada ofensiva mal-sucedida

Aproveitando o ensejo, Vittorio Emanuele III e o Grande Conselho Fascista retiram seu apoio e transferiram ao cargo de chefe do governo o Marechal Pietro Badoglio. No dia 24 de julho de 1943, às 17h, os membros do Grande Conselho reuniram-se no Palazzo Venezia. Por mais que Mussolini tentasse convencer o conselho através do levantamento de suas atribuições e contribuições, e tentasse abarcar os indecisos através do dilema entre “paz e guerra”, não houve saída: depois de intermináveis horas de reunião, liderado por Dino Grandi, o Grande Conselho votou e removeu Mussolini da chefia do governo, sob apoio formal do rei, que o prendeu no dia seguinte.

A partir desse fato, o declínio do fascismo italiano era certo e concreto, seus antigos adeptos e apoiadores foram se calando gradativamente, e a força que sustentava toda a simbologia construída pela ideologia ruiu. Mesmo assim, em novembro daquele ano, após seu resgate patrocinado pelas forças alemãs e fuga, Benito Mussolini se pronunciou conclamando a população italiana a se rebelar contra o rei e apoiar o novo governo instaurado por ele, ao norte da península, a “República de Salò”.

Essa foi a última tentativa de um já saturado Mussolini em dar um golpe e alimentar seus devaneios de controle, apoiado por Hitler – que visava manter o domínio no norte da Itália. A nova fase do fascismo pós Mussolini foi marcada por instaurar um governo fantoche sob a batuta de um louco, que não tinha poderes legais ou apoio da população, mas acreditava piamente na sua fantasia megalomaníaca. O resultado disso foi que o golpe não se concretizou e o fim do líder fascista foi tão deplorável quanto seus ideais.

·        O fascismo contemporâneo

Observamos que os estados animosos de um permanente retorno do fascismo tomam conta dos ambientes políticos em todo o mundo. Mesmo após oitenta e um anos da queda do fascismo na Itália – que não quer dizer que sua ideologia e seus adeptos tiveram fim – políticos, inclusive no território italiano, assumem uma tendência reacionária que constrói paralelismos com os atos de outrora. Diante dos fatos, nos perguntamos: podemos veementemente apontar semelhanças entre aquele e o nosso período? Para responder tal pergunta, lembremos das atuais figuras políticas do cenário europeu que reforçam nossa hipótese inicial: um “eterno retorno” do fascismo.

  • Marine Le Pen pode encabeçar com louvor a fila de políticos com ideais extremistas e posturas ultrarradicais. Filha de Jean–Marie Le Pen, político declaradamente anti–imigratório e antissemita, defende uma “desislamização” da França, e já propôs a criação de campos permanentes para imigrantes ilegais enquanto estiverem no processo de extradição. Sua justificativa se embasa num discurso de “invasão muçulmana” na França, que se desenvolve numa ameaça à cultura francesa e a civilização do país. Para além, sua defesa em reinstaurar a pena de morte no país corrobora com a narrativa de não haver políticas de punição justa para infratores, que em seu discurso são favorecidos com leis muito brandas e permissivas. Os imigrantes e seus descendentes, mesmo sendo eles nascidos na França, são vistos com desdém e marginalidade. Ao defender somente para os franceses o acesso aos serviços de Estado, segundo o professor de Relações Internacionais Alberto Maringoni da UFABC, Marine repete componentes raciais que foram características do “período de ouro” do fascismo. 
  • Maximilian Krah faz a personalidade preferida das últimas tendências jovens no que diz respeito à política. Popular no TikTok, encabeça discursos motivando autenticidade, virilidade, força e confiança. Constantemente prega um fortalecimento e centralidade do Estado em contraposição às influências externas do Parlamento Europeu. Numa de suas mais polêmicas declarações públicas, afirmou que dentro da SS nem todos eram criminosos, ou seja, numa das forças paramilitares nazistas responsáveis pelo Holocausto nem todos tinham a intenção de matar ou cometer atrocidades. Reduzir o nefasto crime humanitário do holocausto em meros fatos isolados provocados por alguns poucos motivou o próprio partido a proibir suas aparições públicas na campanha ao Parlamento Europeu. Com os outros aliados da UE, o clima não é dos melhores, inclusive com Marie Le Pen, devido aos seus escândalos envolvendo acusações de espionagem contra a China e recebimento de fundos suspeitos da Rússia. 
  • Giorgia Meloni, sem dúvida, é uma das figuras de mais destaque entre os polêmicos líderes europeus que flertam com os ideais fascistas. A primeira–ministra italiana é constantemente rotulada como fascista, desde a sua vinculação política, o partido Fratelli d’Italia, que possui suas raízes políticas no Movimento Sociale Italiano, surgido do que restou do fascismo de Mussolini. O símbolo do partido remete a um fogo que arde em chamas do túmulo de Mussolini. Num livro de 2021, intitulado I Am Giorgia, a política frisa que não é propriamente fascista, mas se identifica como sendo herdeira do movimento e de Mussolini, assumindo o lema controverso e batido “Deus, Pátria e Família”, além da atuação ferrenha contra os direitos humanos e os movimentos LGBT. O medo do rótulo de fascista até intimida, mas não há em sua postura vergonha em assumir sua admiração pelo totalitarismo do governo fascista de Mussolini e sua atuação.
  • Viktor Orban, o húngaro que é contra a “mistura da população” e o incentivo da migração, frisa que “o povo da Hungria não é e nem quer se tornar mestiço”. O lema “Deus, Pátria e Família” é continuamente lembrado, como um mantra que reforça o estado hipnótico da parcela da população adepta. Sua agenda inclui o alinhamento dos interesses com a burguesia, a perseguição aos imigrantes e às mulheres, além do racismo presente em suas falas. Importante lembrar que a Hungria viveu sob uma ditadura fascista entre 1920 até 1944, sob liderança de Miklós Horthy. A ala reacionária apoiadora de Orban remonta a essa época como sendo de “prosperidade e bonança”, tanto na parte econômica quanto no desenvolvimento humano. Para completar, a disseminação de notícias e declarações falsas tempera o ideário extremista de direita na Hungria, encontrando nas raízes fascistas seu espelho e foco.

O fascismo se reinventa conforme as demandas dos novos tempos. O sentimento de derrota, de desilusão, de repulsa às velhas classes dirigentes, adicionado ao sentimento antipolítico cria um terreno fértil análogo ao do início do século passado. Isso culmina num desprezo pelas instituições democráticas, que podem ser traduzidas nas ações de violência desmedida.

A crise econômica solapa a burguesia local e a população mais carente, que virão presas fáceis de políticos extremistas, que criam atalhos retóricos para convencer do pior. Quem não concorda e se manifesta contra os ideais autoritários é atacado, ameaçado, perseguido e insultado pelos extremistas. A “arena” da guerra na atualidade são as redes sociais, muito utilizadas como ferramentas de disseminação de ódio e como construtoras de narrativas.

Curiosamente o pesadelo que acreditávamos ter sido apagado da nossa realidade assumiu outra forma, aderiu novos trajetos e manipulou novos terrenos. Na Europa, a preocupação com os novos blocos da extrema–direita na UE e nas chefias de governo gera um clima instável e incômodo, envolto no medo de “eterno retorno” do totalitarismo fascista. O que se pode fazer na contenção desse avanço?

 

¨      O fascismo recauchutado. Por Jorge Paulo em 7 Margens

A hostil ideologia fascista está de regresso, depois de algumas décadas de adormecimento letárgico, fruto da catástrofe que as suas ideias e práticas provocaram na Europa da primeira metade do século XX. Com a sua derrota no final da Segunda Guerra Mundial, todos julgávamos que o seu espetro sinistro estava definitivamente afastado. Infelizmente, estávamos enganados. Ei-lo que volta a atormentar a velha Europa, cansada e desiludida.

Parece que o recrudescimento dos fascismos é fruto da desilusão dos cidadãos em relação ao rumo da Europa. Durante décadas, o Velho Continente prosperou. As ideias social-democratas e democratas-cristãs deram-lhe um impulso humanizador, tanto na defesa intransigente das liberdades individuais e do direito dos povos a participar na vida política das nações, como na promoção dos direitos sociais e do bem-estar dos seus cidadãos. A partir dos anos setenta, sobretudo, a globalização económica, comercial e financeira, a par das violentas investidas das correntes neoliberais vieram desmantelar o estado social e empobrecer as populações, ao mesmo tempo que promoviam a acumulação da riqueza nas mãos de um pequeno número de pessoas. Em virtude disso, as gritantes desigualdades sociais e económicas são o cancro das sociedades contemporâneas. Foi este caldo perigoso de ameaças ao bem-estar dos cidadãos que provocou, em boa medida, o apoio a ideologias extremistas que prometem modificar, com mão de ferro, as estruturas da sociedade.

Mas o remédio, quando desadequado, pode matar o paciente, em vez de o curar. Os fascismos extremistas que pululam um pouco por toda a Europa, embora prometam o que sabem não poder nem querer cumprir, levam o Velho Continente para o beco sem saída do ódio, do autoritarismo, da negação dos direitos básicos de cada cidadão e da atrofia da democracia liberal que tanto nos custou a conquistar. Com todos os seus defeitos, a democracia liberal é, até ao momento, o único sistema que promove o respeito fundamental pela dignidade da pessoa humana, seja ela qual for. Em sentido inverso, os fascismos são matricialmente autoritários, reduzindo ao mínimo as liberdades individuais e cerceando qualquer oposição política. Fudam-se na ideia de que um determinado líder, endeusado pelo partido do sistema, tem em si a solução para todos os problemas da nação, não podendo as suas propostas ser sujeitas à crítica dos demais. O líder é um deus que dirige com punho cerrado os destinos da nação. Como qualquer deus, não admite o contraditório nem a oposição às suas políticas por mais calamitosas que possam vir a revelar-se.

Os fascismos defendem a ideia da desigualdade fundamental entre as pessoas: o líder é superior aos demais e essa superioridade é indiscutível, os membros da comunidade LGBT+ são seres inferiores e doentes que urge tratar ou eliminar, determinadas etnias ou “raças” são subalternas em relação à etnia dominante, o macho, enquanto esteio da vida familiar e social, é superior à mulher… Uma tal visão assimétrica das relações sociais pretende remover as conquistas que as últimas décadas vieram oferecer às sociedades abertas. De uma penada, pretendem recuperar ideais patriarcais atualmente em declínio e instaurar uma profunda divisão de poderes fundada no sexo, na “raça”, na ideologia partilhada, etc.

O terceiro eixo que constitui o ideário fascista é o nacionalismo extremo. Não se trata do natural amor à terra onde se nasceu, mas da afirmação da superioridade incontestável da própria nação por comparação com as demais, produzindo, assim, relações tensas e beligerantes nas relações internacionais com vista a uma eventual conquista de novos territórios no mapa do mundo. O expansionismo fascista foi o rastilho para o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, com todas as consequências calamitosas incluindo a própria destruição das sociedades europeias.

Os fascismos constituem, portanto, ideologias agressivas e violentas. Fomentam o ódio entre as pessoas em vez do amor e da compreensão mútua. Ao erigirem o outro — seja ele estrangeiro, imigrante, judeu, cigano ou qualquer um que se diferencie da massa indistinta — como inimigo, estimulam fraturas no tecido social e provocam injustiças inaceitáveis.

Se há ideologia contrária ao ideário cristão é exatamente o fascismo, pelo seu desprezo pela dignidade inalienável de todas as pessoas, qualquer que seja a sua origem e a sua pertença, bem como pela promoção permanente do ódio e do desprezo pelo outro.

O princípio fundamental do cristianismo é o princípio do amor. E não se trata apenas do amor circunscrito a um determinado grupo ou fação. É o amor universal e sem limites. Todos os seres humanos, pelo facto de terem sido queridos por Deus, são sua imagem e semelhança, sendo, portanto, todos iguais em dignidade e direitos. Todos somos irmãos. Não há, entre os homens, diferenças que lhes imponham limites ao convívio pacífico com os demais. Somos chamados a construir uma grande fraternidade de pessoas que se amam e se respeitam. Que relação existe entre esta visão da vida e das relações humanas e a demonização dos imigrantes, dos grupos racializadas, dos estrangeiros, dos membros da comunidade LGBT+? É, por isso, surpreendente que pessoas que advogam a sua pertença ao cristianismo possam assumir conceções fascistas ou afins. Foi surpreendente no passado. É surpreendente no presente.

Porém, muitos do que defendem ideologias neofascistas recorrem a uma certa imagem do “cristianismo” — retrógrada, ultraconservadora, legalista, opressora — para fazer valer os seus pontos de vista. E o problema é que alguma hierarquia religiosa se deixa deslumbrar pelo seu discurso encantatório, sobretudo no que se refere à suposta defesa dos “valores da família” (o que quer que isso possa ser), à oposição intransigente ao aborto e à eutanásia, à ostracização dos membros da comunidade LGBT+, etc. Tal como no passado, uma certa hierarquia sonha ainda com a repristinação da cristandade medieval, como se essa sociedade tivesse alguma vez cumprido o ideal da vida autenticamente cristã.

Vejo com muita preocupação o crescente apoio da população portuguesa ao Chega. Aberta ou encapotadamente, o Chega é um partido de filiação fascista. Todo o seu discurso o sugere. Apela aos nossos medos mais primários e defende sociedades autoritárias fundadas em valores ultrapassados e decadentes. Ao contrário do que diz o Chega, o imigrante não é o culpado da situação a que chegou o país, bem pelo contrário. Como o não é o cigano. É com políticas de inclusão ativa que se resolvem os problemas sociais, não é com apelos ao ódio e à expulsão do outro.

A democracia é um tesouro em vasos de barro. Com todos os defeitos que tem, é o único sistema que nos permite introduzir alterações sempre que lutarmos por elas e fizermos valer, no respeito pela liberdade dos outros, os nossos pontos de vista. Nada disto nos é permitido nas ditaduras. Porém, é também um sistema frágil, uma flor que precisa de ser regada todos os dias. Os problemas da democracia não se resolvem com a sua supressão, mas com o seu aprofundamento. Mais democracia é a solução para as crises das sociedades democráticas, não menos.

 

 

Fonte: Por Railson Barboza, no Le Monde

 

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