A queda do fascismo e seu “eterno retorno” na Europa
Os
eventos de julho de 1943 foram o estopim da crise que permeou o grupo que
encabeçava o governo fascista na Itália. O rei Vittorio Emanuele III vivia seu
declínio diplomático e se abraçava na confiança cega por Benito Mussolini, a
quem deu plenos poderes, em 1940, para entrar na guerra, acreditando que a
vitória do Eixo sobre os Aliados seria questão de tempo.
As
apostas erradas começariam já no mês de outubro daquele ano, quando houve o
fracasso da ofensiva militar italiana contra a Grécia. A expulsão das tropas
italianas pelo exército grego, preparado e organizado belicamente, chegou ao
norte da Albânia, e, em abril de 1941, tiveram de ser socorridas pelo exército
nazista.
As
seguidas vitórias britânicas em Taranto e na Líbia, em janeiro de 1941, e a
tomada da Etiópia, que vivia sob domínio italiano, escancaram a vulnerabilidade
e fraqueza dos italianos, que numa atitude irresponsável se uniram em junho do
mesmo ano ao exército nazista na invasão da URSS, que resultou numa das maiores
derrotas da Segunda Guerra.
Preocupado
com o futuro da monarquia e de sua linhagem, o rei se viu persuadido a retirar
seu apoio, gerando confusão e desapoio por parte da opinião pública, que não
era apoiadora da guerra, mas inimiga da inação de Vittorio diante dos fatos.
Mussolini, entretanto, era tomado por rompantes impulsivos que só viam no poder
bélico a salvação da Itália e a sua permanência no poder. Já em seu último
discurso como primeiro-ministro, Mussolini apresentava confusão e incoerência,
pois o próprio discurso apresentava erros de vocabulário e incongruências que
não eram comuns, afirmando que os Aliados ocupariam apenas a costa italiana,
A
ganância e ambição do líder fascista seriam seus motivos de queda, visto que a
entrada da Itália no Eixo como uma forte potência, coligado a Adolf Hitler,
culminou numa derrocada crise política, social e econômica interna. Em 10 de
julho daquele ano, os Aliados chegaram à Sicília, tomaram-na sem possibilidade
de defesa, mostrando a vulnerabilidade do exército fascista e a confusão que já
se apoderava dos seus líderes. Os seguidos fiascos resultaram em críticas
ferrenhas por parte da população e pela corte política. A situação de miséria
assolava a Itália; muitas famílias perdiam seus entes nos campos de batalha e
pela guerra; a incapacidade do Duce era exposta a cada
ofensiva mal-sucedida
Aproveitando
o ensejo, Vittorio Emanuele III e o Grande Conselho Fascista retiram seu apoio
e transferiram ao cargo de chefe do governo o Marechal Pietro Badoglio. No dia
24 de julho de 1943, às 17h, os membros do Grande Conselho reuniram-se no
Palazzo Venezia. Por mais que Mussolini tentasse convencer o conselho através
do levantamento de suas atribuições e contribuições, e tentasse abarcar os
indecisos através do dilema entre “paz e guerra”, não houve saída: depois de
intermináveis horas de reunião, liderado por Dino Grandi, o Grande Conselho
votou e removeu Mussolini da chefia do governo, sob apoio formal do rei, que o
prendeu no dia seguinte.
A
partir desse fato, o declínio do fascismo italiano era certo e concreto, seus
antigos adeptos e apoiadores foram se calando gradativamente, e a força que
sustentava toda a simbologia construída pela ideologia ruiu. Mesmo assim, em
novembro daquele ano, após seu resgate patrocinado pelas forças alemãs e fuga,
Benito Mussolini se pronunciou conclamando a população italiana a se rebelar
contra o rei e apoiar o novo governo instaurado por ele, ao norte da península,
a “República de Salò”.
Essa
foi a última tentativa de um já saturado Mussolini em dar um golpe e alimentar
seus devaneios de controle, apoiado por Hitler – que visava manter o domínio no
norte da Itália. A nova fase do fascismo pós Mussolini foi marcada por
instaurar um governo fantoche sob a batuta de um louco, que não tinha poderes
legais ou apoio da população, mas acreditava piamente na sua fantasia
megalomaníaca. O resultado disso foi que o golpe não se concretizou e o fim do
líder fascista foi tão deplorável quanto seus ideais.
·
O fascismo
contemporâneo
Observamos
que os estados animosos de um permanente retorno do fascismo tomam
conta dos ambientes políticos em todo o mundo. Mesmo após oitenta e um anos da
queda do fascismo na Itália – que não quer dizer que sua ideologia e seus
adeptos tiveram fim – políticos, inclusive no território italiano, assumem uma
tendência reacionária que constrói paralelismos com os atos de outrora. Diante
dos fatos, nos perguntamos: podemos veementemente apontar semelhanças entre
aquele e o nosso período? Para responder tal pergunta, lembremos das atuais
figuras políticas do cenário europeu que reforçam nossa hipótese inicial: um
“eterno retorno” do fascismo.
- Marine Le Pen pode encabeçar com louvor a fila de políticos
com ideais extremistas e posturas ultrarradicais. Filha de Jean–Marie Le
Pen, político declaradamente anti–imigratório e antissemita, defende uma
“desislamização” da França, e já propôs a criação de campos permanentes
para imigrantes ilegais enquanto estiverem no processo de extradição. Sua
justificativa se embasa num discurso de “invasão muçulmana” na França, que
se desenvolve numa ameaça à cultura francesa e a civilização do país. Para
além, sua defesa em reinstaurar a pena de morte no país corrobora com a
narrativa de não haver políticas de punição justa para infratores, que em
seu discurso são favorecidos com leis muito brandas e permissivas. Os
imigrantes e seus descendentes, mesmo sendo eles nascidos na França, são
vistos com desdém e marginalidade. Ao defender somente para os franceses o
acesso aos serviços de Estado, segundo o professor de Relações
Internacionais Alberto Maringoni da UFABC, Marine repete componentes
raciais que foram características do “período de ouro” do fascismo.
- Maximilian Krah faz a personalidade preferida das últimas
tendências jovens no que diz respeito à política. Popular no TikTok,
encabeça discursos motivando autenticidade, virilidade, força e confiança.
Constantemente prega um fortalecimento e centralidade do Estado em
contraposição às influências externas do Parlamento Europeu. Numa de suas
mais polêmicas declarações públicas, afirmou que dentro da SS nem todos
eram criminosos, ou seja, numa das forças paramilitares nazistas
responsáveis pelo Holocausto nem todos tinham a intenção de matar ou
cometer atrocidades. Reduzir o nefasto crime humanitário do holocausto em
meros fatos isolados provocados por alguns poucos motivou o próprio
partido a proibir suas aparições públicas na campanha ao Parlamento
Europeu. Com os outros aliados da UE, o clima não é dos melhores,
inclusive com Marie Le Pen, devido aos seus escândalos envolvendo
acusações de espionagem contra a China e recebimento de fundos suspeitos
da Rússia.
- Giorgia Meloni, sem dúvida, é uma das figuras de mais
destaque entre os polêmicos líderes europeus que flertam com os ideais
fascistas. A primeira–ministra italiana é constantemente rotulada como
fascista, desde a sua vinculação política, o partido Fratelli
d’Italia, que possui suas raízes políticas no Movimento
Sociale Italiano, surgido do que restou do fascismo de Mussolini. O
símbolo do partido remete a um fogo que arde em chamas do túmulo de
Mussolini. Num livro de 2021, intitulado I Am Giorgia, a
política frisa que não é propriamente fascista, mas se identifica como
sendo herdeira do movimento e de Mussolini, assumindo o lema controverso e
batido “Deus, Pátria e Família”, além da atuação ferrenha contra os
direitos humanos e os movimentos LGBT. O medo do rótulo de fascista até
intimida, mas não há em sua postura vergonha em assumir sua admiração pelo
totalitarismo do governo fascista de Mussolini e sua atuação.
- Viktor Orban, o húngaro que é contra a “mistura da
população” e o incentivo da migração, frisa que “o povo da Hungria não é e
nem quer se tornar mestiço”. O lema “Deus, Pátria e Família” é
continuamente lembrado, como um mantra que reforça o estado hipnótico da
parcela da população adepta. Sua agenda inclui o alinhamento dos
interesses com a burguesia, a perseguição aos imigrantes e às mulheres,
além do racismo presente em suas falas. Importante lembrar que a Hungria
viveu sob uma ditadura fascista entre 1920 até 1944, sob liderança de
Miklós Horthy. A ala reacionária apoiadora de Orban remonta a essa época
como sendo de “prosperidade e bonança”, tanto na parte econômica quanto no
desenvolvimento humano. Para completar, a disseminação de notícias e
declarações falsas tempera o ideário extremista de direita na Hungria,
encontrando nas raízes fascistas seu espelho e foco.
O
fascismo se reinventa conforme as demandas dos novos tempos. O sentimento de
derrota, de desilusão, de repulsa às velhas classes dirigentes, adicionado ao
sentimento antipolítico cria um terreno fértil análogo ao do início do século
passado. Isso culmina num desprezo pelas instituições democráticas, que podem
ser traduzidas nas ações de violência desmedida.
A crise
econômica solapa a burguesia local e a população mais carente, que virão presas
fáceis de políticos extremistas, que criam atalhos retóricos para convencer do
pior. Quem não concorda e se manifesta contra os ideais autoritários é atacado,
ameaçado, perseguido e insultado pelos extremistas. A “arena” da guerra na
atualidade são as redes sociais, muito utilizadas como ferramentas de
disseminação de ódio e como construtoras de narrativas.
Curiosamente
o pesadelo que acreditávamos ter sido apagado da nossa realidade assumiu outra
forma, aderiu novos trajetos e manipulou novos terrenos. Na Europa, a
preocupação com os novos blocos da extrema–direita na UE e nas chefias de governo gera um clima instável e
incômodo, envolto no medo de “eterno retorno” do totalitarismo fascista. O que
se pode fazer na contenção desse avanço?
¨
O fascismo
recauchutado. Por Jorge Paulo em 7 Margens
A
hostil ideologia fascista está de regresso, depois de algumas décadas de
adormecimento letárgico, fruto da catástrofe que as suas ideias e práticas
provocaram na Europa da primeira metade do século XX. Com a sua derrota no
final da Segunda Guerra Mundial, todos julgávamos que o seu espetro sinistro
estava definitivamente afastado. Infelizmente, estávamos enganados. Ei-lo que
volta a atormentar a velha Europa, cansada e desiludida.
Parece
que o recrudescimento dos fascismos é fruto da desilusão dos cidadãos
em relação ao rumo da Europa. Durante décadas, o Velho Continente prosperou. As
ideias social-democratas e democratas-cristãs deram-lhe um impulso humanizador,
tanto na defesa intransigente das liberdades individuais e do direito dos povos
a participar na vida política das nações, como na promoção dos direitos sociais
e do bem-estar dos seus cidadãos. A partir dos anos setenta, sobretudo, a
globalização económica, comercial e financeira, a par das violentas investidas
das correntes neoliberais vieram desmantelar o estado
social e empobrecer as populações, ao mesmo tempo que promoviam
a acumulação da riqueza nas mãos de um pequeno número de pessoas. Em
virtude disso, as gritantes desigualdades sociais e económicas são o cancro das
sociedades contemporâneas. Foi este caldo perigoso de ameaças ao bem-estar dos
cidadãos que provocou, em boa medida, o apoio a ideologias extremistas que
prometem modificar, com mão de ferro, as estruturas da sociedade.
Mas
o remédio, quando desadequado, pode matar o paciente, em vez de o curar. Os
fascismos extremistas que pululam um pouco por toda a Europa, embora prometam o
que sabem não poder nem querer cumprir, levam o Velho Continente para o beco
sem saída do ódio, do autoritarismo, da negação dos direitos básicos de cada
cidadão e da atrofia da democracia liberal que tanto nos custou a conquistar.
Com todos os seus defeitos, a democracia liberal é, até ao momento, o único
sistema que promove o respeito fundamental pela dignidade da pessoa humana,
seja ela qual for. Em sentido inverso, os fascismos são
matricialmente autoritários, reduzindo ao mínimo as liberdades individuais
e cerceando qualquer oposição política. Fudam-se na ideia de que um determinado
líder, endeusado pelo partido do sistema, tem em si a solução para todos os
problemas da nação, não podendo as suas propostas ser sujeitas à crítica dos
demais. O líder é um deus que dirige com punho cerrado os destinos da
nação. Como qualquer deus, não admite o contraditório nem a oposição às suas
políticas por mais calamitosas que possam vir a revelar-se.
Os
fascismos defendem a ideia da desigualdade fundamental entre as
pessoas: o líder é superior aos demais e essa superioridade é indiscutível, os
membros da comunidade LGBT+ são seres inferiores e doentes que urge tratar ou
eliminar, determinadas etnias ou “raças” são subalternas em relação à etnia
dominante, o macho, enquanto esteio da vida familiar e social, é superior à
mulher… Uma tal visão assimétrica das relações sociais pretende remover as
conquistas que as últimas décadas vieram oferecer às sociedades abertas. De uma
penada, pretendem recuperar ideais patriarcais atualmente em declínio e
instaurar uma profunda divisão de poderes fundada no sexo, na “raça”, na
ideologia partilhada, etc.
O
terceiro eixo que constitui o ideário fascista é
o nacionalismo extremo. Não se trata do natural amor à terra onde se
nasceu, mas da afirmação da superioridade incontestável da própria nação por
comparação com as demais, produzindo, assim, relações tensas e beligerantes nas
relações internacionais com vista a uma eventual conquista de novos territórios
no mapa do mundo. O expansionismo fascista foi o rastilho para o
deflagrar da Segunda Guerra Mundial, com todas as consequências calamitosas
incluindo a própria destruição das sociedades europeias.
Os
fascismos constituem, portanto,
ideologias agressivas e violentas. Fomentam
o ódio entre as pessoas em vez do amor e da compreensão mútua. Ao
erigirem o outro — seja ele estrangeiro, imigrante, judeu, cigano ou qualquer
um que se diferencie da massa indistinta — como inimigo, estimulam fraturas no
tecido social e provocam injustiças inaceitáveis.
Se
há ideologia contrária ao ideário cristão é exatamente o fascismo, pelo seu
desprezo pela dignidade inalienável de todas as pessoas, qualquer que
seja a sua origem e a sua pertença, bem como pela promoção permanente do ódio e
do desprezo pelo outro.
O
princípio fundamental do cristianismo é o princípio do amor. E não se
trata apenas do amor circunscrito a um determinado grupo ou fação. É o amor
universal e sem limites. Todos os seres humanos, pelo facto de terem sido
queridos por Deus, são sua imagem e semelhança, sendo, portanto, todos iguais
em dignidade e direitos. Todos somos irmãos. Não há, entre os homens,
diferenças que lhes imponham limites ao convívio pacífico com os demais. Somos
chamados a construir uma grande fraternidade de pessoas que se amam e se
respeitam. Que relação existe entre esta visão da vida e das relações humanas e
a demonização dos imigrantes, dos grupos racializadas, dos estrangeiros, dos
membros da comunidade LGBT+? É, por isso, surpreendente que pessoas que advogam
a sua pertença ao cristianismo possam assumir conceções fascistas ou afins. Foi
surpreendente no passado. É surpreendente no presente.
Porém,
muitos do que defendem ideologias neofascistas recorrem a uma certa imagem do
“cristianismo” — retrógrada, ultraconservadora, legalista, opressora — para
fazer valer os seus pontos de vista. E o problema é que alguma hierarquia
religiosa se deixa deslumbrar pelo seu discurso encantatório, sobretudo no que
se refere à suposta defesa dos “valores da família” (o que quer que isso possa
ser), à oposição intransigente ao aborto e à eutanásia, à ostracização dos
membros da comunidade LGBT+, etc. Tal como no passado, uma certa hierarquia
sonha ainda com a repristinação da cristandade medieval, como se essa sociedade
tivesse alguma vez cumprido o ideal da vida autenticamente cristã.
Vejo
com muita preocupação o crescente apoio da população portuguesa ao Chega.
Aberta ou encapotadamente, o Chega é um partido de filiação fascista. Todo o
seu discurso o sugere. Apela aos nossos medos mais primários e defende
sociedades autoritárias fundadas em valores ultrapassados e decadentes. Ao
contrário do que diz o Chega, o imigrante não é o culpado da situação a que
chegou o país, bem pelo contrário. Como o não é o cigano. É com políticas de
inclusão ativa que se resolvem os problemas sociais, não é com apelos ao ódio e
à expulsão do outro.
A democracia é
um tesouro em vasos de barro. Com todos os defeitos que tem, é o único sistema
que nos permite introduzir alterações sempre que lutarmos por elas e fizermos
valer, no respeito pela liberdade dos outros, os nossos pontos de vista. Nada
disto nos é permitido nas ditaduras. Porém, é também um sistema frágil, uma
flor que precisa de ser regada todos os dias. Os problemas da democracia não se
resolvem com a sua supressão, mas com o seu aprofundamento. Mais democracia é a
solução para as crises das sociedades democráticas, não menos.
Fonte:
Por Railson Barboza, no Le Monde
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