A crise
socioambiental e a ética da responsabilidade
Entre
secas e inundações o estado do Rio Grande do Sul é retrato dos eventos
climáticos extremos e do que está por vir; no Brasil e no mundo. Até meados de
2023 o estado enfrentava uma seca histórica fruto do resfriamento das águas do
Oceano Pacífico. Foram mais de três anos com pouquíssimos períodos de chuva e
seguidas quebras de safra agrícola. A quem prefere os dados macroeconômicos à
poesia de vida, segundo dados do Departamento de Economia e Estatística do
governo do Rio Grande do Sul, nesse período a participação do estado no PIB do
país caiu de 6,53% em 2019 para 5,90 em 2023. Anos de secura em que “…as vacas
magras e feias comeram as sete vacas gordas que tinham aparecido primeiro…//… e
as espigas mirradas engoliram as sete espigas boas” (Gênesis 41:17-57).
O
colapso do clima chegou. Haverá tempo para deter? Mitigar? Como será a
adaptação? Quem vai se adaptar? Quem vai sobreviver?
Desde
meados de 2023 o tempo virou. El niño substitui La niña e a água do Oceano
Pacífico aquece. É a chuva, é a chuva! Temporais, tromba d’água e lama
provocando um rastro de destruição e sofrimento. Começou com um ciclone
extratropical em setembro de 2023 (em minha infância cantávamos que no Brasil
não havia terremotos, nem furacões ou ciclones). Aquelas terras do sul, antes
atormentadas pela secura estavam de baixo d’água. Mais de cinquenta pessoas
morreram. Poucos meses depois, nova chuvarada afetando quase a metade dos
municípios gaúchos. Outras 30 pessoas mortas e mais 70 desaparecidas, conforme
dados da Defesa Civil.
Padrões
climáticos cada vez mais imprevisíveis. Ora seca, ora enchentes. Enchentes
devastadoras. Desabamentos, pontes e estradas destruídas, ruas alagadas, casas
inundadas, plantações arrasadas, animais afogados, móveis, documentos,
memórias… A água foi levando tudo. O mundo desabou em dilúvio. Novamente,
inúmeras vidas humanas foram perdidas, mais de uma centena, outro tanto
desaparecidas com a água que tudo levou.
Maio
de 2024, nova calamidade sem precedentes. A cidade de Porto Alegre permaneceu
alagada por mais de um mês. Chuvas incessantes alimentavam as cabeceiras dos
rios que desciam a serra arrastando tudo. As imensas terras planas ao nível do
mar permaneceram alagadas por mais de mês. O rio-lago do Guaíba se expandiu em
imenso pântano. Muros e comportas não deram conta para proteger a cidade.
Pudera, estavam sem manutenção de há mais de uma década. A tragédia do clima
não tem fronteiras e os problemas são macro, porém, há como mitigar seus
efeitos no território. Desde a década de 1970 Porto Alegre conta com um
eficiente sistema de contenção das cheias do Guaíba, são 60 quilomentros de
diques e barragens cortando a cidade de norte a sul. No auge da inundação, das
23 Casas de Bomba (Estações de Bombeamento de Água Bruta), 19 colapsaram por
falta de manutenção ou pane elétrica; bem como as 14 comportas, todas sem
manutenção adequada. Esse desmazelo do poder público municipal permitiu que a
água atravessasse os diques. Medidas simples, como troca de borracha das
comportas, não eram realizadas há anos. Segundo especialistas, medidas
preventivas teriam mitigado os efeitos da enchente em 90%.
Este
evento não pode ser visto isoladamente, mas sim como parte de um padrão
crescente de desastres naturais exacerbados pelas mudanças climáticas globais.
A intercalação de períodos de seca e chuvas incessantes é um claro reflexo das
mudanças climáticas em todo o globo. A inundação prolongada no Rio Grande do
Sul afetou especialmente as comunidades mais empobrecidas, que vivem em áreas
de risco e com infraestrutura mais precária. Mas também se voltou contra
aqueles que danam a natureza pelo descumprimento de medidas de proteção
ambiental. Por ganância, ocupam cada palmo de chão, desmatando, alterando
cursos d’água, desprezando medidas preventivas.
A
tragédia do Rio Grande do Sul deve servir como um chamado à ação. A degradação
ambiental e a crise climática não são fenômenos distantes ou abstratos; eles
estão aqui, afetando diretamente nossas comunidades. Uma hora irão avançar
sobre nossas casas, sobre nossas famílias. Será o retorno do dano que
provocamos. Como afirmou o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si, “nunca
maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (LS
53).
Dessa
vez o povo do Rio Grande do Sul foi o mais atingido, sofrendo com a perda de
suas casas, bens e, em muitos casos, de suas vidas. Antes ou depois da tragédia
do sul, no litoral norte do estado de São Paulo, com a tromba d’água em São
Sebastião e a destruição de centenas de casas e incontáveis mortes, no sul da
Bahia, na serra fluminense, em Petrópolis, com os rios amazônicos secando, na
dantes maior área alagável do mundo, o Pantanal, agora ardendo em chamas. A
despeito de as áreas alagadas nas cidades do sul do país haverem diminuído, o
povo segue sofrendo em abrigos improvisados, com frio, falta de saneamento
básico e o aumento de doenças transmitidas pela água. Com a perda de tudo em
suas casas, desemprego e falta de moradia, terão que recomeçar. Consequências
diretas dessa catástrofe evidenciam a vulnerabilidade dos menos favorecidos.
Como afirmou o Papa Francisco: “os mais pobres são os que mais sofrem as piores
consequências de todas as agressões ambientais” (LS 48).
• O fracasso das políticas neoliberais
e o Estado Mínimo
O
neoliberalismo, com sua ênfase na desregulamentação, privatização e redução do
papel do Estado, tem se mostrado inadequado para enfrentar a complexidade dos
desafios climáticos atuais. O conceito de Estado Mínimo (para os pobres), da
mesma forma que desregulamenta as proteções sociais e ambientais, protege as
destruições e explorações, é, portanto, Estado Máximo (para os ricos). Essa
forma de Estado, preconizada pelo neoliberalismo como dogma, prioriza a
eficiência econômica e a acumulação privada sobre a proteção ambiental e
social, contribuindo para a vulnerabilidade das populações mais pobres e para a
degradação dos recursos naturais.
Porto
Alegre, assim como muitas outras cidades brasileiras, é exemplo estampado da
ineficácia dessa ideologia. Nos últimos quinze anos houve um desmonte
deliberado de todos os meios para uma gestão eficaz do bem comum; da
privatização ou extinção de departamentos especializados no cuidado com a
cidade ao sucateamento de seus meios de trabalho, demissão ou aposentadoria de
quadros técnicos especializados e desprezo a qualquer possibilidade de ingresso
de novos técnicos ou na formação de novas gerações. A falta de infraestrutura
adequada e políticas públicas eficientes, que poderiam mitigar os impactos das
mudanças climáticas, foram escancarados aos olhos de todo o país. A ausência de
um planejamento urbano resiliente e a precariedade dos serviços públicos vistos
em Porto Alegre, antes cidade referência em políticas públicas, são reflexos
diretos de um modelo de gestão que desvaloriza o papel do Estado como
garantidor do bem comum, submetendo o aparato estatal aos interesses das
grandes corporações privadas. Desde 2019 o governo do Rio Grande do Sul alterou
quase 500 pontos do Código Ambiental do estado; alterações que hoje se voltam
até mesmo contra os interesses daqueles que as promoveram, como o agronegócio,
que, em nome de uma ganância imediata, agora amarga enormes prejuízos.
O
professor da Unicamp, Luiz Marques, com o livro Capitalismo e Colapso Ambiental
destaca a crise ambiental global como um problema sistêmico do capitalismo. A
lógica da acumulação e crescimento infinito do capitalismo é incompatível com a
vida em um planeta finito, conclui. Há limites ecológicos para ganâncias sem
fim. Outro livro Colapso, de Jared Diamond, faz uma análise ao longo da
experiência histórica de diversos povos e demonstra vários momentos em que
sociedades escolheram o fracasso, exatamente pela incompatibilidade de seus
modelos econômicos e o entorno que as cercava. A crise ecológica é também a
crise de civilização, particularmente do capitalismo. São crises indissociáveis
porque a busca incessante por crescimento econômico e lucro, características do
capitalismo, leva à exploração excessiva de recursos naturais e à degradação
ambiental. Esse sistema intrinsecamente predatório está conduzindo a vida
humana ao colapso, assim como está provocando um profundo desarranjo – e
extermínio – de outras formas de vida no planeta.
Desde
a Revolução Industrial até os dias atuais, a expansão capitalista tem
estabelecido um padrão de exploração e destruição que provoca danos ambientais
progressivos. Danos como a emissão de gases do efeito estufa e o aquecimento
global são exacerbados pelo modelo de produção capitalista, resultando em
efeitos devastadores no clima e na inação das políticas públicas e
governamentais dominadas por interesses econômicos das classes dominantes. O
Rio Grande do Sul não é caso isolado; nem o Brasil. A continuar esse sistema,
tudo que resultará às populações do planeta, sobretudo aos pobres, será dor e
sofrimento. “Estamos a caminho do desastre”, alerta o secretário-geral da ONU,
Antônio Guterres, na apresentação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) em 2022:
“Isso
não é ficção ou exagero. É o que a ciência nos diz que resultará de nossas
atuais políticas energéticas. Estamos no caminho para o aquecimento global de
mais que o dobro do limite de 1,5 grau Celsius que foi acordado em Paris 2015”.
Se
quisermos garantir um futuro habitável. Se nossa geração não pretender ficar
marcada como aqueles que, de tão egoístas, roubam o ar, a água e o futuro de
suas crias, precisamos mudar urgentemente a nossa forma de ser e de estar no
planeta. É preciso repensar a economia e a sociedade, a agricultura industrial
e a forma de extração dos recursos naturais, as fontes de energia e suas formas
de uso. Cidades permeáveis, com absorção da água da chuva, naturalização dos
rios e cursos d’água, arborizadas, com parques e jardins, são um bom caminho.
Outro é a redução da necessidade de grandes deslocamentos, abrindo empregos
próximos à moradia das pessoas. E não só. Há que gerar energia de forma
distribuída e não poluente. Não mais megacidades sugadores de energia e
poluidoras; e sim cidades sustentáveis, com produção próxima do consumo, com
economia solidária e de vizinhança, economia circular com aproveitamento total
das matérias-primas e reincorporação dessas ao processo de fabricação de novos
produtos. Consumo consciente, comércio justo, generosidade intelectual.
Investimentos públicos adequados, sob um Estado não mínimo nem máximo, mas
necessário à redução de desigualdades e à construção da equidade, que ampare
sua população e proteja o meio ambiente. Justiça climática é também justiça
social, tributária, educacional, cultural. É preciso mudar o padrão
civilizatório. Ou fazemos isso já, ou assistiremos a barbárie e o colapso.
É o
fogo, é o fogo!
Floresta
em chamas,
Fagulhas
dançam no vento,
Bichos
correm, pânico no ar.
Tudo
arde,
Patas,
focinhos,
Pelagem
incandescente,
Tudo
arde,
Tronco
vira tocha.
Queimada
na floresta.
Pantanal
a virar pasto.
O
Solimões secou
Na
Amazônia.
Fogo
no cerrado,
Na
Canastra, Mantiqueira
Mata
Atlântica.
Queimada
na floresta.
Tudo
é pasto
Seco.
Rio
transformado em deserto de areia.
Fuligem
na cidade,
Fumaça
apaga o sol.
Asma,
bronquite,
Pulmões
cheios de fumaça.
Queimada
na floresta.
Não
é natural.
Há
causas e efeitos.
A
biodiversidade está em perigo. As matas e os animais das matas. Os oceanos e
rios e os seres das águas, salgadas, doces ou salobras. Os montes, os solos. Os
ares. As gentes. Nós. Tudo está em perigo.
Eu
não consigo respirar!
Eu
não consigo respirar!
• A herança
Essa
é a herança que pretendemos legar para nossos filhos e netos? Para as gerações
que não conheceremos? Para os seres da nossa espécie e para os demais seres.
Que espécie somos nós ao provocar a destruição de habitats e o aceleramento da
extinção de outras espécies?!? Desmatamento, mineração, economia predatória.
Predamos até a nós mesmos, exploramos o semelhante sem dó. Onde está a
compaixão? E o amor ao próximo? Mamon levou. E agora só se cultua o deus
Dinheiro.
Tudo
vira meio de compra e venda. Água é bem sagrado, comum, jamais poder-se-ia
admitir transformar água em fonte de lucro. Jamais!!! Depois da água o que
virá? A venda do ar? Esse sistema não nos serve. É psicopata, egoísta e
ganancioso. A segui-lo, tudo que teremos é água fétida a invadir nossas casas,
ou vida no deserto e morte sob a secura, ou outros cataclismos. Queiramos, mas
queiramos de verdade, a transição para fontes renováveis e sustentáveis de
energia. E que venha acompanhada de vida boa, justa e alegre para todo mundo.
Somos todos filhos de Deus. Deus não desampara os seus. O homem e seus sistemas
de opressão e dominação, com sua cegueira por dinheiro e poder, esse, desampara
seus irmãos. Mais que isso, nessa etapa da história do mundo, desampara filhos,
netos e bisnetos. Isso não é natural. Isso não é de Deus. Nenhuma espécie
condena a própria espécie.
Esse
texto é radical, assumo. Ser radical é ir à raiz dos problemas, é ter coragem
para sair da superfície e da zona de conforto (e interesse). É imperativo que
repensemos nossas prioridades e estratégias. O Papa Francisco, em sua
incansável defesa pela Casa Comum, nos lembra da interconexão entre todas as
criaturas e da necessidade de uma conversão ecológica. Para enfrentar os
desafios das mudanças climáticas, a humanidade precisa de políticas públicas
que integrem justiça social, sustentabilidade e solidariedade. É simples. Não
é? Por qual razão não praticamos e executamos? Para defender a Casa Comum é
preciso fortalecer as instituições públicas, promover a participação cidadã e
implementar estratégias de adaptação e mitigação, sobretudo em relação ao que
se projeta sobre os mais vulneráveis. Quem se habilita? Quem vem junto a erguer
e defender a Casa que deveria ser de todos?
Com
esse artigo procurei abordar as mudanças climáticas e políticas públicas à luz
dos ensinamentos do Papa Francisco, enfatizando a necessidade de uma abordagem
integrada e solidária para enfrentar os desafios globais. A tragédia de Porto
Alegre, e tantas outras que assistimos diariamente pela televisão (mas que um
dia enfrentaremos na carne, não nos autoenganemos) é um triste lembrete da
urgência com que devemos agir. As mudanças climáticas exigem de nós uma nova
visão de progresso, que vá além dos paradigmas do consumismo e do
neoliberalismo, e reconheça a centralidade do bem comum. Como nos exorta o Papa
Francisco, que nossas ações sejam guiadas pela compaixão, justiça e respeito
pela criação. Só assim poderemos construir um futuro sustentável e digno para
todas as gerações.
• O cavalo Caramelo
Naquele
canto do sul do Brasil o céu parecia ter desabado sobre a terra. Os dias
tornaram-se um sopro úmido e gélido. As chuvas, impiedosas, desceram em
torrentes, transformando campos férteis em zona alagada. E, assim, o ano de
2023 se dissolveu em 2024, não como um novo ciclo de esperança, mas como uma
sequência inexorável de tragédias.
Num
canto daquele canto do sul do Brasil havia um refúgio de simplicidade. Nele
viviam mãe e filho. A vida era moldada pelo compasso da natureza e pelo
trabalho árduo. A mãe, com suas mãos calejadas de tantas colheitas, observava o
céu cinzento com uma premonição silenciosa. Seu filho, rapaz de sonhos grandes
e pés findos no chão, tentava proteger a pequena horta que alimentava os dois.
Mas o céu não teve clemência. Chuvas ferozes e incessantes transformaram a vida
de mãe e filho.
Rápidas
e vorazes, as águas avançavam como um monstro desperto. Ruas viraram rios
violentos. Casas, pequenas ilhas de desespero. Tudo era varrido pela
correnteza, e o que não era levado restava coberto de lama e tristeza. Passado
o dilúvio, água por todos os lados. De partes sólidas, só os telhados. Foi
então que surgiu Caramelo, o cavalo. Pelagem dourada e temperamento dócil,
resistia sozinho. Seus olhos expressavam um misto de medo e esperança. Imóvel,
permaneceu por dias com as quatro patas sobre o telhado de uma casa alagada.
Provavelmente
arrastado pela força das águas, Caramelo subiu ao telhado da casa e ali ficou.
Como um farol de resistência, sintetizava fragilidade e força a desafiar as
águas e o destino. A gente daquele canto, já exausta e desolada, encontrara
naquele animal uma fonte de esperança e união.
Foram
organizados grupos de resgate e pessoas de todo o país acompanharam, comovidas,
o drama daquele ser altivo e indefeso. Se viam nele. Após dias de incerteza e
tensão, finalmente conseguiram salvar o cavalo. As mudanças climáticas, antes
uma abstração distante, agora eram uma realidade tangível, sentida pela força e
a fragilidade de um animal. Caramelo, símbolo de esperança.
O
sol voltaria a brilhar (sempre volta), e a terra, dadivosa (sempre dadivosa),
voltaria a dar seus frutos. Naquele canto marcado por sucessivas tragédias, a
resistência se fez verbo, e a esperança, colheita. Mãe e filho, com suas mãos
firmes e corações renovados, replantariam a horta. A terra, como velha amiga,
responderia com generosidade.
Fonte:
Por Célio Turino, em Outras Palavras
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