O fim da
inflamação? Uma nova abordagem pode tratar dezenas de doenças
Quando
criança em Atlanta, Geórgia, nos Estados Unidos, Lauren Finney Harden sempre
teve alergias. Mas, depois que se mudou para Nova York para trabalhar em seu
primeiro emprego, em 2007, as inflamações “simplesmente explodiram” por todo o
corpo.
“Eu
tinha erupções insanas de corpo inteiro e problemas gastrointestinais
estranhos. Eu dava arrotos enormes, que me faziam sentir como se precisasse
vomitar, mas nada vinha a não ser ar”, diz ela.
Eventualmente,
ela foi diagnosticada com lúpus, uma doença na qual o sistema imunológico ataca
os próprios tecidos e órgãos do corpo. Ela começou tratamento com uma droga
chamada prednisona, um corticoide que absorve a inflamação.
Mas
a cura, às vezes, parecia pior do que a doença. “Eu parecia grávida de quatro
meses o tempo todo”, diz Finney Harden, “e eu tinha erupções de herpes semana
sim, semana não; meu corpo não conseguia lutar contra nada.”
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Inflamação: tratamentos tradicionais na
mira
A
experiência de Finney Harden é, infelizmente, comum em tratamentos tradicionais
para doenças autoimunes, como os com prednisona. Conhecido imunossupressor, o
medicamento funciona desativando a produção de moléculas pró-inflamatórias que
são cruciais para o corpo montar uma defesa imunológica.
Assim,
enquanto a prednisona (e drogas como essa) consegue extinguir rapidamente a
inflamação, ela deixa o corpo vulnerável a patógenos e pode causar efeitos
colaterais tóxicos.
“Simplesmente
parar a inflamação não é suficiente para voltar o tecido ao seu estado normal”,
diz Ruslan Medzhitov, professor de imunobiologia na Escola de Medicina de Yale, nos
EUA.
Esta
abordagem ignora o outro lado da moeda da inflamação: resolução. Resolver a
inflamação é um processo ativo e altamente coreografado para reconstruir
tecidos e remover as bactérias e células mortas. Quando esse processo é
interrompido, surgem doenças inflamatórias.
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A relação entre inflamação e envelhecimento
No
início dos anos 2000, pesquisadores começaram a reconhecer o papel da
inflamação em condições tão variadas como Alzheimer, câncer, diabetes e doenças
cardíacas, levando-os a reformular a inflamação como a explicação unificadora
para uma miríade de doenças, incluindo aquelas que desenvolvemos à medida que
envelhecemos.
Mesmo
o envelhecimento em si, e suas patologias associadas, é impulsionado por
inflamações persistentes.
“Até
recentemente, acreditávamos que a inflamação simplesmente parava”, diz Molly
Gilligan, residente em medicina interna na Universidade de Columbia, nos EUA,
que estuda como o sistema imunológico impacta o desenvolvimento do câncer.
Os
imunologistas pensavam que os produtos resultantes de inflamações – como as
moléculas que a desencadeiam e células mortas e tecidos – são eventualmente
metabolizados, ou dissipam-se espontaneamente por conta própria.
A
realidade é mais complicada, e reconhecer isso pode ter efeitos que mudam o
jogo sobre como tratamos uma ampla faixa de doenças.
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Por que se produz a inflamação?
A
inflamação evoluiu para servir a uma função importante: ela livra nossos corpos
de coisas que não pertencem a ele, incluindo invasores estrangeiros como
bactérias e vírus, células tumorais e corpos estranhos que causam irritações,
como farpas.
“Um
exemplo clássico de início inflamatório é a picada de abelha: o local fica
quente, vermelho, inchado e doloroso”, diz Derek Gilroy, professor de imunologia da University College London, na
Inglaterra.
Essa
resposta vem de uma série de alterações biológicas: os vasos sanguíneos se
dilatam para entregar glóbulos brancos ao local da lesão, fazendo com que os
tecidos fiquem vermelhos.
O
fluido também inunda o local, causando inchaço. As moléculas que desencadeiam
essas transformações vasculares precipitam a coceira, a dor e a febre
associadas à inflamação.
Os
glóbulos brancos, os socorristas do corpo, em seguida atacam e matam os
invasores. Em circunstâncias normais, esta carnificina é contida, com a
resposta inflamatória inicial diminuindo dentro de 24 a 48 horas.
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Quando a inflamação fica perigosa?
Quando
a inflamação se torna crônica, porém, as armas químicas implantadas por células
imunes da linha de frente muitas vezes danificam tecidos saudáveis, e nossos
corpos sofrem com danos colaterais.
O
custo disso inclui articulações gastas, neurônios danificados, rins
cicatrizados e muito mais. Doenças autoimunes, como artrite reumatoide e lúpus,
caracterizadas pela dor e piora da incapacidade, têm sido associadas há muito
tempo a inflamações persistentes.
Em
casos extremos, como as tempestades de citocinas associadas à sepse ou à covid-19 grave, a
inflamação pode destruir e desativar múltiplos órgãos, levando a uma falha
catastrófica do sistema e à morte.
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O que é a resolução: o papel dos SPM
Medzhitov
compara uma infecção a um cano quebrado que inundou um escritório com água.
Consertar o tubo pode impedir que a água entre, mas não restaura o escritório
ao seu estado funcional anterior.
Da
mesma forma, a inflamação tem uma fase de limpeza conhecida como resolução, e
prossegue em uma série de etapas altamente coordenadas.
Assim
como o início da inflamação, sua resolução é orquestrada por um exército de
moléculas de sinalização. Entre os mais intensamente estudados estão os
mediadores pró-resolutivos especializados (SPMs na sigla em inglês), que foram
descobertos na década de 1990 por Charles Serhan,
professor de anestesia na Escola de Medicina de Harvard.
Serhan
foi inspirado por seu mentor de pós-doutorado, Bengt Samuelsson, que descobriu
como moléculas gordurosas, chamadas lipídios, desencadeiam inflamação. Serhan
estava procurando por moléculas semelhantes quando identificou a
lipoxina. Mas, para sua surpresa, em vez de incitar inflamação, a lipoxina
parecia dificultá-la.
Nos
anos seguintes, Serhan e seus colegas identificaram SPMs adicionais. Essas
moléculas são derivadas de ácidos graxos essenciais, como os ômega-3, famosos
por serem encontrados em peixes de água fria como salmão e sardinhas. Mas são
difíceis de estudar no laboratório.
“Um
dos principais desafios é que eles têm meias-vidas curtas, então o corpo os
metaboliza muito rapidamente”, diz Gilligan. Por causa disso, os pesquisadores
que trabalham nessas moléculas muitas vezes recorrem a versões sintéticas
delas, ou miméticas, que são mais simples, estáveis e mais baratas de produzir.
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Inflamação e diabetes: foco nos SPM
Catherine Godson,
professora de medicina molecular na University College Dublin, na Irlanda, há
muito se interessa por diabetes, dado seu impacto na saúde pública global como
a causa mais comum de insuficiência renal.
Quando
soube dos SPMs, ficou entusiasmada com a ideia de incentivar a resolução para o
tratamento de diabéticos, uma “população com um risco particularmente alto de
infecção”.
Em
camundongos com doença renal diabética, cicatrizes de inflamação renal
gradualmente destroem o órgão. Sua equipe está testando o potencial terapêutico
de um mimético de lipoxina nesses e em outras cobaias animais. Eles também
analisaram o efeito do mimético no tecido humano em culturas de células de
laboratório tiradas de pacientes com aterosclerose, uma doença inflamatória da
parede dos vasos sanguíneos.
Em
ambos os casos, os fatores inflamatórios despencaram quando o mimético foi
introduzido; para os camundongos, os rins recuperaram sua função em uma
reversão impressionante da doença estabelecida.
Gilroy
observa, no entanto, que a história sobre SPMs está incompleta. “Enquanto as
lipoxinas estão presentes em níveis no corpo que indicam que são importantes na
resolução, outros SPMs, como resolvinas, exigem mais avaliação”, diz.
Os
cientistas especulam que uma maneira de as lipoxinas e outras moléculas
pró-resolutivas funcionarem é interagindo com células imunes chamadas
macrófagos.
Por
serem tão abundantes durante a inflamação, os macrófagos têm sido
tradicionalmente considerados como células pró-inflamatórias, diz Gerhard Krönke, imunologista e reumatologista da Universidade de
Erlangen-Nürnberg, na Alemanha. “Mas uma mudança de paradigma na última década
sugere que os macrófagos são atores fundamentais na resolução da inflamação.”
Gilroy
concorda, chamando macrófagos de “células-chave na justaposição de inflamação e
resolução: Pode ir para um lado se estivermos saudáveis e de outra maneira se
não estivermos”.
·
Como funcionam os macrófagos no processo
antiinflamatório
Inicialmente,
quando o perigo representado pelos invasores está no auge, os macrófagos
atraídos para a área são inflamatórios, secretando citocinas pró-inflamatórias
e ampliando a produção de agentes antimicrobianos.
Mas
esse equilíbrio muda à medida que a maré do confronto gira. Depois que o número
de vírus diminui, os detritos deixados para trás (restos virais, células imunes
mortas e outros resíduos) devem ser coletados e limpos antes que desencadeiem
outro ciclo de inflamação. É quando os macrófagos trocam de marcha.
Atraídos
por sinais de “coma-me” expressos na superfície das células moribundas,
macrófagos prontamente engolfam e limpam as células mortas do ambiente. Mas não
se trata apenas de limpar os destroços, esse processo também vira um
interruptor genético, reprogramando macrófagos para restaurar o equilíbrio do
sistema e curar os tecidos.
“Os
macrófagos começam a produzir fatores que dizem ao tecido local: não recrutem
mais células inflamatórias aqui, ou, vamos proliferar e começar a reparar o
lugar”, diz Kodi Ravichandran, imunologista da Universidade de
Washington, em St. Louis, nos Estados Unidos, cuja pesquisa se concentra em
como as células mortas são retiradas do corpo.
Agora,
o consenso que está sendo construído entre especialistas é que muitas das
doenças atribuídas à inflamação, tanto crônicas quanto agudas, podem ser
rastreadas a uma falha na resolução. Muitas vezes isso se traduz em uma falha
em limpar células mortas.
“Se
você derrubar receptores nos macrófagos de camundongos que reconhecem células
mortas, por exemplo, eles se tornam incapazes de comer essas células,
resultando em uma doença semelhante ao lúpus”, com sintomas como artrite e
erupção cutânea, diz Krönke.
Um
mecanismo semelhante funciona em pessoas mais velhas, diz Gilroy. À medida que
envelhecemos, o corpo perde uma proteína que reconhece células moribundas; isso
bloqueia a capacidade dos macrófagos de encontrar e comer detritos.
Trancados
em um estado pró-inflamatório, esses macrófagos continuam a produzir moléculas
que amplificam a resposta inflamatória no início.
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Resposta antiinflamatória à covid-19
Talvez
a covid-19 tenha sido mais
severa em populações mais velhas “porque elas perderam alguns dos caminhos
pró-resolutivos com a idade”, sugere Luke O'Neill, imunologista do
Trinity College Dublin, na Irlanda.
Ele
observa que a covid-19 também tem sido problemática para pessoas com mutações
genéticas que impactam a função imunológica, resultando em respostas
inflamatórias hiperativas ou sub-ativas pró-resolutivas.
Seu
grupo de pesquisa e outros demonstraram que os macrófagos preparados para a
ação inflamatória desempenham um papel significativo em casos críticos de
covid-19, e estão atualmente testando estratégias pró-resolutivas para combater
esse efeito.
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Resposta antiinflamatória ao câncer
O
processo do câncer também é afetado quando a inflamação não se resolve. A sopa
de toxinas, fatores de crescimento e outros subprodutos inflamatórios que
acompanham a inflamação estimulam o crescimento e a propagação do câncer.
Muitos
tratamentos convencionais acabam agravando o problema, de acordo com Dipak Panigrahy, professor assistente de patologia no Beth Israel Deaconess
Medical Center, em Boston, nos EUA.
“Quimioterapia
e radiação são como marretas”, diz Panigrahy. “Eles podem matar o tumor, mas os
detritos que eles criam estimulam a inflamação, que alimenta as células
tumorais circulantes que sobrevivem ao tratamento.”
Uma
década atrás, Panigrahy já estava intrigado sobre esse enigma quando conheceu
Serhan em uma conferência sobre lipídios em Cancún, no México. “Eu tinha
acabado de apresentar minha pesquisa sobre a morte celular no câncer e como não
há como limpar os destroços resultantes quando ouvi a conversa de Serhan sobre
como ele descobriu esses lipídios que eliminaram os detritos”, diz ele.
Os
dois pesquisadores trabalham em Boston e têm compartilhado uma estreita
colaboração desde então.
Em
experimentos de prova de conceito realizados em camundongos, o grupo de
Panigrahy foi capaz de evitar que os tumores se repitam após a cirurgia,
dosando os animais com mimética de resolvina, um dos mediadores pró-resolutivos
descobertos no laboratório de Serhan. Os ensaios clínicos de fase um para
câncer de pâncreas, cérebro e cólon começarão este ano, diz Panigrahy.
Covid
longa e inflamação
Embora
ainda haja muito trabalho para decodificar seus segredos, “a Covid longa
provavelmente resulta de uma falha catastrófica de resposta e resolução imune
apropriada”, sugere Gilroy.
Meg
St. Esprit faz parte de uma grande parcela de sobreviventes da covid-19 que
continua a sofrer sintomas meses após o vírus ter passado. Ela e sua família
contraíram a doença em novembro de 2020, e durante sete dias ela – que é mãe de
quatro filhos em Pittsburgh, Pensilvânia – sofreu com febre alta e fortes dores
de cabeça.
Fadiga
debilitante, vertigem e névoa cerebral logo se seguiram. Mas enquanto seu
marido e filhos se recuperavam, os sintomas de St. Esprit permaneciam, e novos
surgiram.
Durante
a luta contra a covid-19, ela desenvolveu coágulos sanguíneos e miocardite,
consequências perigosas da inflamação. É também como se todo o corpo dela
tivesse enlouquecido. “Diferentes partes dele inflamam regularmente agora”, diz
ela. “Minhas articulações do polegar incham, e ficam o dobro do tamanho normal,
meu joelho dilata como uma toranja, e eu tive urticária mais vezes do que eu
posso contar.”
As
drogas para ajustar o processo inflamatório natural também seriam, portanto,
uma ferramenta poderosa em nosso arsenal contra a covid longa. Mesmo agora, a
caçada está em andamento. O'Neill e colegas, por exemplo, testam moléculas em
ensaios clínicos que pressionam macrófagos a serem pró-resolutivos.
Os
SPM são a solução para a inflamação?
Os
SPMs estão sendo testados extensivamente em modelos animais de doenças como
câncer e sepse, e mais modestamente em pequenos estudos de pacientes com eczema
e doença periodontal.
Mas
Gilroy adverte que a resposta pode ser mais sutil do que antiinflamatórios vs.
pró-resolutivos, e que drogas direcionadas a ambas as abordagens podem ser
necessárias.
“É
como dirigir um carro a toda velocidade”, diz ele. “Para parar, você tira o pé
do acelerador, o que seria como amortecer o início da inflamação. E então você
aplica os freios, ou em outras palavras, promove sua resolução.”
Fonte:
National Geographic Brasil
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