Imposto
seletivo, justa compensação e democracia
Segundo
dados do IPCC, o mundo já atingiu uma média de 1,2 ºC de aumento de temperatura;
no Brasil, temos áreas bem documentadas com até 3 ºC de aquecimento médio
registrado nos últimos trinta anos, como no Piauí, e o primeiro deserto do país
foi diagnosticado oficialmente se formando na Bahia. Segundo o Banco Mundial, o
Brasil sofreu prejuízos de R$ 500 bilhões entre 1995 e 2021 apenas por
desastres climáticos – e tais números devem aumentar significativamente após a
tragédia do Rio Grande do Sul. Apenas nos últimos dez anos, entre 2013 e 2023,
94% dos municípios brasileiros testemunharam pelo menos um decreto de
emergência ou calamidade em decorrência de desastres, segundo a Confederação
Nacional dos Municípios (CNM). Esse é o retrato da realidade que já estamos
vivendo, e a lista poderia ser bem maior.
Estamos
experienciando a febre do planeta, diria Ailton Krenak, novo imortal da
Academia Brasileira de Letras. Precisamos começar a pensar de forma menos
fragmentada se quisermos vencer tamanho desafio, e o primeiro passo é encarar a
realidade, chamar as coisas pelo nome, e começar a desenhar alternativas. Mas
não é fácil encarar a realidade, como os números a seguir demonstrarão.
Segundo
dados do Dieese e da OIT, 40% dos empregos dependem diretamente de um meio
ambiente equilibrado. Essa estimativa é tímida, contudo, pois concebe ser
possível os outros 60% dos empregos permanecerem, mesmo em um ambiente poluído,
quente, sem água e sem alimentos. Não é possível. Essas são somente algumas das
variáveis que devem ser levadas em conta para as decisões de hoje, que moldarão
a realidade das próximas décadas.
Isso
é o que está em jogo no Congresso Nacional atualmente, palco de inúmeros
retrocessos democráticos e encenações de uma representatividade maltratada,
quando falamos de reforma tributária. As decisões de hoje moldarão a economia
política do país, da mesma forma que hoje colhemos os frutos da degradação
ambiental e da concentração de renda decidida nos anos 1960. Não podemos mais,
como país, repetir os danos aos meios de sustentação da vida que foram a regra
do século XX, pois o preço já é alto demais para os serviços ambientais dos
biomas brasileiros que sustentam a vida no país, e para a saúde pública também.
Essa é a outra grande variável.
As
Doenças Crônicas Não
Transmissíveis (DCNTs), como doenças
cardiovasculares, diabetes, câncer e doenças respiratórias, são responsáveis por 75% das mortes no Brasil, em sua
imensa maioria evitáveis. Todos os anos
161 mil brasileiros perdem suas vidas apenas por causa do consumo de tabaco, e
os custos econômicos causados pelo
cigarro chegam a R$ 92 bilhões por ano no país, entre tratamentos de saúde e perda da produtividade da população. O Brasil tem os cigarros mais baratos de
toda a OCDE. É preciso aumentar sua
tributação para cobrir esse prejuízo. Quem deve pagar por ele é o cidadão, ou
quem lucra com essa indústria? Hoje, a tributação do cigarro não cobre seus
custos coletivos.
Outro
elemento problemático, o consumo abusivo de álcool está associado a mais de
duzentos problemas de saúde, além de ser agravante das tragédias de
violência doméstica, dependência química e diminuição da renda, como
qualquer família com uma pessoa alcoólatra sabe de perto. Apenas em 2018, os
gastos diretos com tratamento de cânceres associados ao consumo de álcool no
Brasil foram de R$ 1,7 bilhão, e apenas em 2019 seu consumo foi responsável por
75 mil mortes. O índice de alcoolismo entre mulheres brasileiras aumentou 4,25%
a cada ano, entre 2010 e 2020, e, segundo a OCDE, o PIB brasileiro será cerca
de 1,3% menor nos próximos trinta anos por causa do consumo excessivo de
álcool, justamente quando o país terá os maiores desafios de produtividade de
nossa economia, haja vista o recuo da janela demográfica das próximas décadas.
Essa conta também não fecha, e é paga com os parcos recursos públicos que
deveriam estar sendo investidos em escolas, transporte público, saneamento,
cultura e tantos outros direitos que não são usufruídos pela população
brasileira.
Na
mesma direção, é igualmente inaceitável que os agrotóxicos não estejam
incluídos na lista de produtos abrangidos pelo Imposto Seletivo (IS), como já
acontece em diversos países. Em 2019, o Brasil deixou de arrecadar mais de R$
1,7 bilhão em recursos em razão dos subsídios para a compra de agrotóxicos,
segundo a Receita Federal. Esses números não podem ser ignorados. O impacto
financeiro é enorme, chegando a aproximadamente R$ 9,8 bilhões quando somados
os benefícios fiscais estaduais e do Distrito Federal. A cada dois dias uma
pessoa morre por intoxicação de agrotóxicos no Brasil, e cerca de 20% dessas
são crianças e adolescentes. Apenas em 2019 foram 542 bebês intoxicados. Para
cada dólar gasto em compra de agrotóxicos, o SUS é onerado em US$ 1,29. Estes
são números inaceitáveis, incompatíveis com uma visão mínima de civilização.
Quando
falamos em alimentos ultraprocessados, no Brasil, em média seis em cada dez
adultos, e uma em cada três crianças apresentam excesso de peso, sobretudo
entre as classes mais pobres e vulneráveis. Estima-se que 57 mil mortes
prematuras tenham ocorrido por conta do consumo de ultraprocessados, apenas em
2019, sem contar a perda de produtividade, de trabalho e renda por amputações e
cegueira de diabéticos.
Em
pesquisa conduzida pela UERJ em parceria com a USP, onde foram testados mais de
10 mil produtos ultraprocessados, 98,8% dos produtos tinham excesso de sódio,
açúcar e gorduras, além de aditivos químicos danosos à saúde. Não basta apenas
taxar refrigerantes como um exemplo de que algo está sendo feito, é preciso
taxar igualmente os demais alimentos ultraprocessados, e com esses recursos,
desonerar castanhas e produtos orgânicos embalados, por exemplo. Em outras
palavras, comida que adoece tem que ser cara, comida saudável, barata e
acessível, é simples. A alternativa é continuar ladeira abaixo e nos tornarmos
um país de doentes, como diversos países já são, e nós estamos próximos.
Seguindo
a lista, de acordo com a OMS, em 2018 doenças derivadas da poluição causaram um
prejuízo médio equiparável a 4% do PIB entre os quinze países mais poluidores
do mundo. O Brasil é o quinto maior poluidor do mundo. O equivalente, segundo o
PIB de 2023 para o Brasil, foi de R$ 43,6 bilhões em prejuízos. Apenas em 2016,
o número de óbitos por poluição do ar, segundo o Ministério da Saúde, foi de
44.228 pessoas, e em 2018, o custo com internações em razão de problemas
respiratórios relacionados à poluição ultrapassou R$ 1,3 bilhão. O Ministério
da Saúde estima que, entre 2008 e 2019, esse gasto chegou a R$ 14 bilhões.
Imagine isso investido em escolas.
Mesmo
assim, o Brasil subsidia a queima de combustíveis fósseis e a extração de
petróleo. Se a opção por mais prospecção e exploração for mesmo feita por esse
governo, e parece que será, que ao menos o legado não seja de ainda mais
poluição, vazamentos e corrupção, mas sim recursos garantidos para saúde
pública, educação e infraestrutura. Isso pode e deve ser realizado por meio dos
impostos devidos desse setor.
De
acordo com o Inesc, entre 2018 e 2022, foram concedidos R$ 246 bilhões em
subsídios à produção de óleo e gás no Brasil,
83% destes por renúncias fiscais. Desse
total, a exploração de óleo e gás recebeu
70%, ou R$ 194,4 bilhões, por meio dos chamados Regimes Especiais de Tributação. O petróleo é o maior contribuidor
para a poluição e o
aquecimento global, mundialmente, e a poluição oriunda da queima de combustíveis é a principal causa de
doenças respiratórias em áreas urbanas.
Outro
exemplo que precisa ser abordado, como se não bastassem os anteriores, são as
armas de fogo. Utilizadas em 76% dos homicídios, suicídios e acidentes no país,
segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, seu comércio legal
abastece o mercado ilegal, por óbvio, pois não existem fábricas clandestinas de
armas para a indústria do crime no Brasil. Toda arma ilegal nas mãos do crime
foi antes uma arma legal, e grande parte dos crimes não se dá com armas com
números de série raspados, mas com armas de fogo regulares misturadas com
consumo de álcool, em crimes passionais. Todos sabemos disso.
Os
índices de violência no Brasil podem ser reduzidos se for diminuído o acesso a
armas com valores tão baixos como os praticados no mercado brasileiro hoje.
Armas de fogo podem ser compradas legalmente atualmente por três salários
mínimos, e são alugadas ilegalmente por diária em periferias em todo o Brasil
para o cometimento de crimes, por R$ 100, R$ 150. Armas regulares, grande parte
destas. Em todo o país, independente de classe social, armas de fogo são os
maiores instrumentos do feminicídio, dos crimes de ódio e dos ataques aos povos
tradicionais e indígenas.
De
195 países, o Brasil é o país que mais mata com armas de fogo, segundo o
Journal of American Medical Association. Dois terços destes são homicídios, um
quarto são suicídios, e o restante, acidentes fatais, muitos envolvendo
crianças. Os custos totais com a violência, grandemente agravada pelo uso
indiscriminado de armas de fogo, segundo o BID, são de aproximadamente 3,78% do
PIB brasileiro. Em números corrigidos de 2023, estamos falando de prejuízos da
ordem de R$ 41,2 bilhões, apenas no ano passado. Imagine isso investido em
cultura, em esportes, ou em programas especiais para crianças. Esse é o
exercício que precisamos fazer como país.
Tais
números, difíceis de processar e difíceis de acreditar, são nossa realidade.
Somados todos esses, na sua maioria números defasados, diga-se de passagem,
concluímos que estamos trilhando hoje um caminho muito errado como país. As
escolhas políticas passadas, responsáveis por nossa realidade atual, se
traduzem, hoje, na perda de vidas de 380,5 mil brasileiros a cada ano. Estamos
falando de 20% do total de falecimentos em nosso país que são evitáveis, que
poderiam em sua imensa maioria ser evitados, e que são efeito direto ou
indireto da economia política decidida décadas atrás, quando o Brasil vivia um
período de exceção. Isso é o equivalente a abrirmos mão de toda a população de
cidades como Bauru, Vitória da Conquista, Rio Branco, Olinda, Uberaba ou Blumenau,
todos os anos, em vidas perdidas por doenças não transmissíveis, causadas por
poluição e má alimentação, e por violência. Isso jamais pode ser uma escolha
consciente.
Para
além desses números, que em si falam já imensamente sobre a crise civilizatória
em que nos encontramos, há ainda que se falar dos números da economia no
Brasil. O impacto econômico em termos de custos diretos com tratamentos de
saúde e perdas acumuladas de produtividade da população em decorrência dos
efeitos adversos das indústrias citadas, também generosamente corrigidos abaixo
de seus valores atualizados, se somados todos os números aqui apresentados, são
da ordem R$ 176 bilhões por ano, mais do triplo destinado ao PAC (54 bilhões,
em 2024).
Justiça
tributária não é matéria de esquerda, não é matéria de direita. É a consagração
da finalidade primeira do Estado de direito e da Constituição Federal
brasileira, e não é uma inovação do nosso país, que apenas segue princípios
consagrados, testados e aprovados por diversos países onde a democracia é
consolidada há mais tempo. Na Suécia, Finlândia, Dinamarca, Portugal e França
estão consagrados impostos sobre a emissão de gases do efeito estufa, que
forçaram a inovação tecnológica e a eficiência energética de suas indústrias.
Na França, Portugal, Reino Unido e Alemanha – maior potência mundial da
indústria automobilística –, o imposto seletivo sobre veículos motorizados é
também uma realidade que impactou imediatamente a qualidade do ar das cidades. Nos
Estados Unidos, referência ideológica de uma parte expressiva da direita
brasileira, o Superfund foi criado com receitas de impostos sobre petróleo,
produtos químicos perigosos e substâncias que causam danos à camada de ozônio,
e é utilizado para despoluir áreas contaminadas.
Por
essas e outras razões defendemos a aplicação do Imposto Seletivo de maneira
ampla e coerente como chave para a transição rumo a uma nova economia política
que posicione o Brasil no século XXI. É imprescindível, por isso, retirar
isenções e subsídios de produtos ultraprocessados, agrotóxicos, derivados de
petróleo e armas, e incluí-los no Imposto Seletivo junto a todos os setores por
este já abrangidos, de modo a desestimular as indústrias da doença, da poluição
e da cultura da violência, se quisermos de fato viver em uma democracia justa e
com o mínimo de qualidade de vida. O Imposto Seletivo não é “imposto do
pecado”, é tão somente a justa e mínima compensação pelos danos causados à
população brasileira e o meio ambiente por aquelas indústrias que lucram com as
atividades que causam tais prejuízos.
O
Brasil poderá dar os primeiros passos para modernizar sua economia política,
tornando-a condizente com o século XXI, onde o Estado de direito zele pela
proteção da sociedade, e onde os três pilares de sustentação da vida sejam
efetivamente respeitados: a qualidade ambiental, a saúde pública e o trabalho
digno. O resgate da democracia, tão violentamente atacada no ano passado, está
diretamente vinculado à necessidade de novas escolhas que apontem na direção da
mudança e do futuro. Essa é a missão histórica dessa legislatura do Congresso
Nacional e desse governo, e é, também, o direito dessa e das próximas gerações.
Na Constituição Federal, artigo 145, lê-se em seu parágrafo 3º: “O Sistema
Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da
transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio
ambiente”. Se esses princípios, consagrados nessa legislatura, serão
ordenadores do futuro do país ou letra morta, será decisão desse Congresso
Nacional.
Fonte:
Por Marcos Woortmann, no Le Monde
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