sábado, 6 de julho de 2024

Sonho americano à deriva: instrumentos hegemônicos dos EUA estão cada vez mais 'escassos'

Que o peso econômico, político e bélico norte-americano não para de cair não é novidade. Pesquisas e estudos debruçam-se agora sobre prováveis consequências e oportunidades para o mundo com o fim dessa liderança, que já foi quase absoluta.

Para esmiuçar as causas desse declínio, o podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, recebeu, nesta quinta-feira (4), o professor de história e política latino-americana na Universidade de Denver e pesquisador do Instituto de Estudos sobre os Estados Unidos no Brasil Rafael Ioris e o professor do Instituto de Relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Goulart Menezes.

Os Estados Unidos ainda contam com boa parte do poderio que construíram após a Segunda Guerra Mundial, comentaram os especialistas, mas a crise de 2008 tirou seu posto de principal exportador mundial, cuja posição hoje é ocupada pela China. Também vêm sofrendo concorrência acirrada com a Coreia do Sul e alguns países do BRICS.

"A China está começando a tomar um papel muito importante em termos de pesquisa, tecnologia, em domínio das investigações científicas. Se tornou líder em novas tecnologias, por exemplo, recursos energéticos, como placas solares, que é uma coisa que surpreendeu muito aqui os norte-americanos", comentou Ioris.

As crises "profundas" por que passam organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), por sua "eficácia", também são sintomas do declínio do império norte-americano, pontuaram os especialistas.

·        América para os americanos

O sonho americano de vencer na América também parece ter virado pesadelo. Sistema de saúde mercantilizado, falta de investimento em infraestrutura, polarização da sociedade e da política: é vasta a lista de problemas enumerados pelos entrevistados sobre a crise interna norte-americana.

Ioris ressaltou ainda que as altas taxas de concentração de renda sempre existiram no país, mas têm aumentado de maneira preocupante nos últimos anos:

"Nos últimos cinco anos, a concentração de renda aumentou significativamente nos países, uma aberração em várias áreas, comparado com outros países [...] em termos da escolaridade, em termos do custo médio de acesso à saúde e à educação, só que isso não tem levado à possibilidade de debate mais construtivo, de soluções mais plausíveis, porque o que faz impacto político é a polarização política profunda que existe aqui hoje", disse ele, que reside no país.

Ele mencionou ainda a recente retomada da geração de empregos, porém mal remunerados, que produz uma massa trabalhadora incapaz de pagar as contas impactadas pela alta da inflação.

Os EUA continuam tendo posição hegemônica em diferentes setores, concordam os professores, sobretudo, devido ao dólar americano, que é a moeda-chave do sistema monetário mundial, mas vêm perdendo espaço nas áreas de ciências, comércio e tecnologia para nações como China e integrantes do BRICS.

Vivendo uma forte crise da sua hegemonia desde os anos 1970 e 1980, os EUA seguem buscando bloquear a possibilidade da efetivação de um mundo multipolar, mas suas armas estão cada vez mais escassas e pouco eficazes, de acordo com os especialistas.

O país norte-americano continua apelando para medidas protecionistas e sanções que, durante décadas, foram instrumentos de poder para manter sua hegemonia, mas que já não surtem os efeitos desejados.

·        Guerra por procuração: método falido?

Nem mesmo a estratégia histórica de financiar guerras distantes, como fez em dezenas de países da África, América Latina e Ásia, tem funcionado como antes para os EUA, avaliaram os entrevistados.

A chamada "guerra por procuração já derrubou inúmeros governos, como ocorreu no Chile, no Brasil, Nicarágua, nos anos 60 e 70, entre vários outros países.

Os analistas pontuaram que os gastos exorbitantes dos EUA em conflitos como na Ucrânia, em Gaza, entre as Coreias, Taiwan e China não têm proporcionado resultados vantajosos para os EUA e elevado consideravelmente a dívida pública do país.

"Sanções econômicas contra a Rússia não surtiram o efeito que os Estados Unidos e seus aliados pretendiam. O Brasil não impôs nenhum tipo de sanção à Rússia. O comércio da Rússia, em grande parte, se dá com a China, e se dá nas moedas locais, no yuan, o renminbi, e no rubro. Então as sanções já não têm o mesmo alcance que tiveram em outros momentos", comentou o professor da UnB.

Menezes citou que estudos importantes vêm demostrando uma transição hegemônica, com a perda gradual da posição de império dos EUA.

 

¨      OTAN completa 75 anos a serviço da hegemonia dos EUA, diz analista

A Organização do Tratado do Atlântico Norte comemora seu aniversário de 75 anos em momento de alta tensão militar na Europa. Entre os dias 9 e 11 de julho, os líderes da aliança se reunirão em Washinton para marcar a data, com mais perguntas do que respostas acerca do futuro da agremiação.

Além de oficializar a entrada da Suécia como membro pleno da agremiação, o encontro selará o fim do longo mandato do secretário-geral Jens Stoltenberg e sua substituição pelo ex-primeiro-ministro holandês, Mark Rutte.

O aniversário da aliança também contará com a presença de países não membros da aliança, como Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul e, claro, Ucrânia. De acordo com o site da aliança, o tema central do encontro em Washigton será o conflito ucraniano e os desafios impostos pela capacidade militar russa.

A opção por debater a Rússia em plena reunião comemorativa da aliança confirma a centralidade que a contenção de Moscou tem para as atividades da Aliança Atlântica. Seja visando o cerco da URSS no passado, ou da Rússia atualmente, a aliança tem como objetivo primordial conter o potencial moscovita para viabilizar o controle norte-americano sobre a Eurásia.

"O conflito com a Ucrânia expôs que a grande estratégia da OTAN é a expansão até as fronteiras com a Rússia", disse o professor de história licenciado pela UERJ, João Cláudio Pitillo, à Sputnik Brasil. "A ideia de que a OTAN foi formada para proteger seus membros de uma nova catástrofe, como a imposta por Hitler, nunca foi convincente."

De acordo com o professor de Geopolítica da UNEMAT, Vinícius Teixeira, a formação da Aliança Atlântica em 1949 visava atingir três objetivos primordiais do Ocidente: manter a URSS fora da Europa Ocidental, controlar os rumos da Alemanha e consolidar a presença militar dos EUA no velho continente.

"O lorde inglês Ismay já teria dito que o objetivo da OTAN era 'manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães embaixo'", disse Teixeira à Sputnik Brasil. "Realmente, vemos que os objetivos eram impedir que os russos expandissem sua influência, controlar militarmente os alemães e manter os EUA na Europa permanentemente."

A atuação do capital norte-americano na reconstrução europeia foi essencial para subordinar o continente ao projeto político-militar de Washington. A fim de atingir seus objetivos de forma definitiva, os EUA tampouco se furtaram a integrar membros das Forças Armadas hitleristas nas fileiras da OTAN.

"Vemos que EUA e outros países da Europa reabilitaram rapidamente os alemães para lutarem contra os russos", disse Teixeira. "Membros do Exército hitlerista, que tinham ligações com o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, [...] foram reintegrados à OTAN, inclusive mantendo cargos de comando."

O historiador Pitillo ainda nota a contribuição de membros dos exércitos italiano e japonês na formação da OTAN, lembrando que "países do Eixo cederam seus agentes, outrora ligados ao fascismo e nazismo, para engrossar as fileiras da OTAN, explicitando o caráter belicoso da aliança".

Como os eventos atuais confirmam, a aposta dos EUA na expansão da OTAN atende às proposições de teorias geopolíticas clássicas, que sugerem o domínio da Eurásia – região chamada de "heartland" – como essencial para o exercício da hegemonia global.

"A expansão da OTAN vem a cavalo das teorias geopolíticas que apontam o domínio do Leste Europeu como fundamental para dominar a Eurásia, que seria a chave para a hegemonia mundial", explicou Teixeira. "Portanto, a expansão da OTAN adota a estratégia do domínio do heartland, visando o enfraquecimento da Rússia."

Siga o dinheiro

A formação da OTAN também atende a interesses econômicos e comerciais de Washington, garantindo mercado cativo para os armamentos de seu complexo industrial militar. Segundo os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a expansão da aliança multiplicou as oportunidades de negócios para as principais empresas do setor de defesa ocidentais.

"A estratégia dos EUA na OTAN também é industrial, focada na área de defesa. O interesse era construir uma organização que comprasse o material militar produzido nos EUA, sob o discurso de que estariam promovendo a padronização dos armamentos", disse Teixeira. "Os EUA veem a OTAN como um grande mercado de consumo para a sua própria indústria de defesa."

Discursos soberanistas de líderes como o ex-presidente dos EUA Donald Trump, que cobram dos parceiros da OTAN observância à regra que impõe o gasto de 2% do PIB em defesa, só aumentam o número de encomendas militares aos grandes conglomerados norte-americanos.

"Quando os países aumentam seus gastos com defesa, eles compram mais armas. E de qual país eles vão comprar esses armamentos? Dos EUA", explicou Teixeira. "Washington exige que novos países-membros da OTAN atinjam esses patamares de investimento não só por uma questão geopolítica, mas também econômica."

Neste sentido, a expansão da Aliança Atlântica rumo ao leste é uma ampliação do mercado consumidor de armas norte-americanas. Ao absorver membros da antiga URSS, os EUA buscam eliminar arsenais que não seguem o seu padrão de produção, atualmente denominado "padrão-OTAN".

"A expansão da OTAN é, na verdade, um novo mercado que se abre. Esses países, que utilizavam armamentos da época da União Soviética, precisam comprar amas novas para integrar suas forças ao 'padrão-OTAN'", disse Teixeira. "O discurso de padronização vem na ânsia de vender o padrão dos EUA para a Europa."

A expansão para o leste ainda garante à OTAN a absorção de "todo o parque industrial, científico, tecnológico, dos países socialistas, que o Ocidente propagandeava como atrasados", disse João Cláudio. "No fundo, eles sabiam o quanto esses ativos eram valiosos."

·        Resistência europeia

Os custos impostos pela OTAN a soberania e indústrias de defesa europeias são alvos recorrentes de críticas por líderes locais. Caso emblemático foi a decisão do presidente francês, Charles de Gaulle, de reduzir o escopo da participação de Paris na aliança, em 1966.

"A França está determinada a recuperar em todo o seu território o pleno exercício da sua soberania, atualmente diminuída pela presença permanente de elementos militares aliados ou pela utilização que é feita do seu espaço aéreo; a cessar sua participação nos comandos integrados; e a não colocar mais as suas forças à disposição da OTAN", escreveu de Gaulle ao então presidente norte-americano Lyndon Johnson.

Apesar de não ter retirado a França da aliança, de Gaulle retomou o poder decisório sobre o arsenal nuclear do país e manteve a competitividade de sua indústria armamentista, com consequências positivas de longo prazo para Paris.

"A França [sob de Gaulle] retira a sua estratégia nuclear do escopo da OTAN e cria um aparato à parte, que mantém o controle sobre sua política de dissuasão", disse Teixeira. "Essa foi uma forma da França defender a sua economia local de defesa, garantindo a construção de um aparato militar autóctone."

De fato, até os dias de hoje, a França se destaca pela pujança do seu setor nuclear e por ser uma grande produtora de armamentos. De acordo com o mais recente relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês), a França se tornou o segundo maior exportador de armas do mundo, inclusive realizando vendas estratégicas para o Brasil.

·        Futuro incerto

Vozes dissidentes tendem a ganhar força dentro da OTAN, conforme o conflito ucraniano gera crise econômica de grandes proporções no continente europeu. A resposta da aliança às necessidades de Kiev se mostrou instável, gerando questionamentos sobre a confiabilidade do bloco para esforços de guerra de longo prazo.

"O desejo da OTAN de destruir a Rússia (o que não foi possível e parece que não será), está trazendo para a União Europeia um gasto absurdo, colocando a região da zona do euro tecnicamente em recessão", avaliou Pitillo. "Os interesses militares da OTAN, encabeçados pelos EUA, não condizem com os interesses políticos da União Europeia."

Para ele, "os EUA utilizam a OTAN para manter sua posição como potência hegemônica do planeta, ao mesmo tempo que obrigam a União Europeia a pagar por isso". A imposição norte-americana gera descontentamento não só entre a população europeia, mas também entre segmentos da elite do velho continente.

"A União Europeia está pagando mais caro na energia, nos alimentos e nos bens de serviço. Tudo isso para bancar o desejo dos EUA e da Aliança Atlântica de anexar a Ucrânia e transformá-la em uma base de ataque contra a Rússia", disse Pitillo. "E a ação vigilante da Rússia desbaratou todo esse plano, até com certa facilidade."

Ainda que "o presidente americano considere a guerra na Ucrânia um grande negócio, a França e a Alemanha não podem dizer o mesmo, Portugal e Espanha não podem dizer o mesmo. A Itália não pode dizer o mesmo. A Hungria não pode dizer o mesmo."

"Os Estados Unidos estão arrastando a Europa para uma grande contradição política e social, porque estão colocando em dúvida a democracia europeia e fazendo com que os movimentos de contestação da direita, inclusive movimentos fascistas, denunciem essa crise", argumentou Pitillo. "O pensamento liberal europeu está sendo destruído nas trincheiras da Ucrânia."

Pesquisa realizada pelo think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, na sigla em inglês) aponta que a maioria dos europeus prefere uma saída negociada para o conflito ucraniano. Mais de um terço dos franceses acreditam que a Ucrânia deve iniciar negociações com a Rússia, enquanto a maioria dos italianos já é contra a manutenção do envio de armas para Kiev. Além disso, a absoluta maioria da população em todos os países europeus estudados se opõe ao envio de tropas para a Ucrânia.

"Se o cenário permanecer esse, de avanço contínuo das forças russas, a OTAN sairá da guerra da Ucrânia desacreditada, humilhada e questionada [...]. A crise econômica na zona do euro traz uma séria fragilidade na retaguarda. O futuro da OTAN é sombrio e a adesão a esse bloco vai ser severamente questionado pelas próximas gerações", concluiu o analista.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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