Sonho
americano à deriva: instrumentos hegemônicos dos EUA estão cada vez mais
'escassos'
Que
o peso econômico, político e bélico norte-americano não para de cair não é
novidade. Pesquisas e estudos debruçam-se agora sobre prováveis consequências e
oportunidades para o mundo com o fim dessa liderança, que já foi quase
absoluta.
Para
esmiuçar as causas desse declínio, o podcast Mundioka, da Sputnik Brasil,
recebeu, nesta quinta-feira (4), o professor de história e política
latino-americana na Universidade de Denver e pesquisador do Instituto de
Estudos sobre os Estados Unidos no Brasil Rafael Ioris e o professor do
Instituto de Relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Roberto
Goulart Menezes.
Os
Estados Unidos ainda contam com boa parte do poderio que construíram após a
Segunda Guerra Mundial, comentaram os especialistas, mas a crise de 2008 tirou
seu posto de principal exportador mundial, cuja posição hoje é ocupada pela
China. Também vêm sofrendo concorrência acirrada com a Coreia do Sul e alguns
países do BRICS.
"A
China está começando a tomar um papel muito importante em termos de pesquisa,
tecnologia, em domínio das investigações científicas. Se tornou líder em novas
tecnologias, por exemplo, recursos energéticos, como placas solares, que é uma
coisa que surpreendeu muito aqui os norte-americanos", comentou Ioris.
As
crises "profundas" por que passam organismos internacionais como a
Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização das Nações Unidas
(ONU), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), por sua
"eficácia", também são sintomas do declínio do império norte-americano,
pontuaram os especialistas.
·
América para os americanos
O
sonho americano de vencer na América também parece ter virado pesadelo. Sistema
de saúde mercantilizado, falta de investimento em infraestrutura, polarização
da sociedade e da política: é vasta a lista de problemas enumerados pelos
entrevistados sobre a crise interna norte-americana.
Ioris
ressaltou ainda que as altas taxas de concentração de renda sempre existiram no
país, mas têm aumentado de maneira preocupante nos últimos anos:
"Nos
últimos cinco anos, a concentração de renda aumentou significativamente nos
países, uma aberração em várias áreas, comparado com outros países [...] em
termos da escolaridade, em termos do custo médio de acesso à saúde e à
educação, só que isso não tem levado à possibilidade de debate mais
construtivo, de soluções mais plausíveis, porque o que faz impacto político é a
polarização política profunda que existe aqui hoje", disse ele, que reside
no país.
Ele
mencionou ainda a recente retomada da geração de empregos, porém mal
remunerados, que produz uma massa trabalhadora incapaz de pagar as contas
impactadas pela alta da inflação.
Os
EUA continuam tendo posição hegemônica em diferentes setores, concordam os
professores, sobretudo, devido ao dólar americano, que é a moeda-chave do
sistema monetário mundial, mas vêm perdendo espaço nas áreas de ciências,
comércio e tecnologia para nações como China e integrantes do BRICS.
Vivendo
uma forte crise da sua hegemonia desde os anos 1970 e 1980, os EUA seguem
buscando bloquear a possibilidade da efetivação de um mundo multipolar, mas
suas armas estão cada vez mais escassas e pouco eficazes, de acordo com os
especialistas.
O
país norte-americano continua apelando para medidas protecionistas e sanções
que, durante décadas, foram instrumentos de poder para manter sua hegemonia,
mas que já não surtem os efeitos desejados.
·
Guerra por procuração: método falido?
Nem
mesmo a estratégia histórica de financiar guerras distantes, como fez em
dezenas de países da África, América Latina e Ásia, tem funcionado como antes
para os EUA, avaliaram os entrevistados.
Menezes
citou que estudos importantes vêm demostrando uma transição hegemônica, com a
perda gradual da posição de império dos EUA.
¨
A
Organização do Tratado do Atlântico Norte comemora seu aniversário de 75 anos
em momento de alta tensão militar na Europa. Entre os dias 9 e 11 de julho, os
líderes da aliança se reunirão em Washinton para marcar a data, com mais
perguntas do que respostas acerca do futuro da agremiação.
A
opção por debater a Rússia em plena reunião comemorativa da aliança confirma a
centralidade que a contenção de Moscou tem para as atividades da Aliança
Atlântica. Seja visando o cerco da URSS no passado, ou da Rússia atualmente, a
aliança tem como objetivo primordial conter o potencial moscovita para
viabilizar o controle norte-americano sobre a Eurásia.
"O
conflito com a Ucrânia expôs que a grande estratégia da OTAN é a expansão até
as fronteiras com a Rússia", disse o professor de história licenciado pela
UERJ, João Cláudio Pitillo, à Sputnik Brasil. "A ideia de que a OTAN foi
formada para proteger seus membros de uma nova catástrofe, como a imposta por
Hitler, nunca foi convincente."
De
acordo com o professor de Geopolítica da UNEMAT, Vinícius Teixeira, a formação
da Aliança Atlântica em 1949 visava atingir três objetivos primordiais do
Ocidente: manter a URSS fora da Europa Ocidental, controlar os rumos da
Alemanha e consolidar a presença militar dos EUA no velho continente.
"O
lorde inglês Ismay já teria dito que o objetivo da OTAN era 'manter os russos
fora, os americanos dentro e os alemães embaixo'", disse Teixeira à
Sputnik Brasil. "Realmente, vemos que os objetivos eram impedir que os
russos expandissem sua influência, controlar militarmente os alemães e manter
os EUA na Europa permanentemente."
A
atuação do capital norte-americano na reconstrução europeia foi essencial para
subordinar o continente ao projeto político-militar de Washington. A fim de
atingir seus objetivos de forma definitiva, os EUA tampouco se furtaram a
integrar membros das Forças Armadas hitleristas nas fileiras da OTAN.
"Vemos
que EUA e outros países da Europa reabilitaram rapidamente os alemães para
lutarem contra os russos", disse Teixeira. "Membros do Exército
hitlerista, que tinham ligações com o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial,
[...] foram reintegrados à OTAN, inclusive mantendo cargos de comando."
O
historiador Pitillo ainda nota a contribuição de membros dos exércitos italiano
e japonês na formação da OTAN, lembrando que "países do Eixo cederam seus
agentes, outrora ligados ao fascismo e nazismo, para engrossar as fileiras da
OTAN, explicitando o caráter belicoso da aliança".
Como
os eventos atuais confirmam, a aposta dos EUA na expansão da OTAN atende às
proposições de teorias geopolíticas clássicas, que sugerem o domínio da Eurásia
– região chamada de "heartland" – como essencial para o exercício da
hegemonia global.
"A
expansão da OTAN vem a cavalo das teorias geopolíticas que apontam o domínio do
Leste Europeu como fundamental para dominar a Eurásia, que seria a chave para a
hegemonia mundial", explicou Teixeira. "Portanto, a expansão da OTAN
adota a estratégia do domínio do heartland, visando o enfraquecimento da
Rússia."
Siga
o dinheiro
A
formação da OTAN também atende a interesses econômicos e comerciais de
Washington, garantindo mercado cativo para os armamentos de seu complexo
industrial militar. Segundo os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a
expansão da aliança multiplicou as oportunidades de negócios para as principais
empresas do setor de defesa ocidentais.
"A
estratégia dos EUA na OTAN também é industrial, focada na área de defesa. O
interesse era construir uma organização que comprasse o material militar
produzido nos EUA, sob o discurso de que estariam promovendo a padronização dos
armamentos", disse Teixeira. "Os EUA veem a OTAN como um grande
mercado de consumo para a sua própria indústria de defesa."
Discursos
soberanistas de líderes como o ex-presidente dos EUA Donald Trump, que cobram
dos parceiros da OTAN observância à regra que impõe o gasto de 2% do PIB em
defesa, só aumentam o número de encomendas militares aos grandes conglomerados
norte-americanos.
"Quando
os países aumentam seus gastos com defesa, eles compram mais armas. E de qual
país eles vão comprar esses armamentos? Dos EUA", explicou Teixeira.
"Washington exige que novos países-membros da OTAN atinjam esses patamares
de investimento não só por uma questão geopolítica, mas também econômica."
Neste
sentido, a expansão da Aliança Atlântica rumo ao leste é uma ampliação do
mercado consumidor de armas norte-americanas. Ao absorver membros da antiga
URSS, os EUA buscam eliminar arsenais que não seguem o seu padrão de produção,
atualmente denominado "padrão-OTAN".
"A
expansão da OTAN é, na verdade, um novo mercado que se abre. Esses países, que
utilizavam armamentos da época da União Soviética, precisam comprar amas novas
para integrar suas forças ao 'padrão-OTAN'", disse Teixeira. "O
discurso de padronização vem na ânsia de vender o padrão dos EUA para a
Europa."
A
expansão para o leste ainda garante à OTAN a absorção de "todo o parque
industrial, científico, tecnológico, dos países socialistas, que o Ocidente
propagandeava como atrasados", disse João Cláudio. "No fundo, eles
sabiam o quanto esses ativos eram valiosos."
·
Resistência europeia
Os
custos impostos pela OTAN a soberania e indústrias de defesa europeias são
alvos recorrentes de críticas por líderes locais. Caso emblemático foi a
decisão do presidente francês, Charles de Gaulle, de reduzir o escopo da
participação de Paris na aliança, em 1966.
"A
França está determinada a recuperar em todo o seu território o pleno exercício
da sua soberania, atualmente diminuída pela presença permanente de elementos
militares aliados ou pela utilização que é feita do seu espaço aéreo; a cessar
sua participação nos comandos integrados; e a não colocar mais as suas forças à
disposição da OTAN", escreveu de Gaulle ao então presidente
norte-americano Lyndon Johnson.
Apesar
de não ter retirado a França da aliança, de Gaulle retomou o poder decisório
sobre o arsenal nuclear do país e manteve a competitividade de sua indústria
armamentista, com consequências positivas de longo prazo para Paris.
"A
França [sob de Gaulle] retira a sua estratégia nuclear do escopo da OTAN e cria
um aparato à parte, que mantém o controle sobre sua política de
dissuasão", disse Teixeira. "Essa foi uma forma da França defender a
sua economia local de defesa, garantindo a construção de um aparato militar
autóctone."
De
fato, até os dias de hoje, a França se destaca pela pujança do seu setor
nuclear e por ser uma grande produtora de armamentos. De acordo com o mais
recente relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de
Estocolmo (SIPRI, na sigla em inglês), a França se tornou o segundo maior
exportador de armas do mundo, inclusive realizando vendas estratégicas para o
Brasil.
·
Futuro incerto
Vozes
dissidentes tendem a ganhar força dentro da OTAN, conforme o conflito ucraniano
gera crise econômica de grandes proporções no continente europeu. A resposta da
aliança às necessidades de Kiev se mostrou instável, gerando questionamentos
sobre a confiabilidade do bloco para esforços de guerra de longo prazo.
"O
desejo da OTAN de destruir a Rússia (o que não foi possível e parece que não
será), está trazendo para a União Europeia um gasto absurdo, colocando a região
da zona do euro tecnicamente em recessão", avaliou Pitillo. "Os
interesses militares da OTAN, encabeçados pelos EUA, não condizem com os
interesses políticos da União Europeia."
Para
ele, "os EUA utilizam a OTAN para manter sua posição como potência
hegemônica do planeta, ao mesmo tempo que obrigam a União Europeia a pagar por
isso". A imposição norte-americana gera descontentamento não só entre a
população europeia, mas também entre segmentos da elite do velho continente.
"A
União Europeia está pagando mais caro na energia, nos alimentos e nos bens de
serviço. Tudo isso para bancar o desejo dos EUA e da Aliança Atlântica de
anexar a Ucrânia e transformá-la em uma base de ataque contra a Rússia",
disse Pitillo. "E a ação vigilante da Rússia desbaratou todo esse plano,
até com certa facilidade."
Ainda
que "o presidente americano considere a guerra na Ucrânia um grande
negócio, a França e a Alemanha não podem dizer o mesmo, Portugal e Espanha não
podem dizer o mesmo. A Itália não pode dizer o mesmo. A Hungria não pode dizer
o mesmo."
"Os
Estados Unidos estão arrastando a Europa para uma grande contradição política e
social, porque estão colocando em dúvida a democracia europeia e fazendo com
que os movimentos de contestação da direita, inclusive movimentos fascistas,
denunciem essa crise", argumentou Pitillo. "O pensamento liberal
europeu está sendo destruído nas trincheiras da Ucrânia."
Pesquisa
realizada pelo think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, na
sigla em inglês) aponta que a maioria dos europeus prefere uma saída negociada
para o conflito ucraniano. Mais de um terço dos franceses acreditam que a
Ucrânia deve iniciar negociações com a Rússia, enquanto a maioria dos italianos
já é contra a manutenção do envio de armas para Kiev. Além disso, a absoluta
maioria da população em todos os países europeus estudados se opõe ao envio de
tropas para a Ucrânia.
"Se
o cenário permanecer esse, de avanço contínuo das forças russas, a OTAN sairá
da guerra da Ucrânia desacreditada, humilhada e questionada [...]. A crise
econômica na zona do euro traz uma séria fragilidade na retaguarda. O futuro da
OTAN é sombrio e a adesão a esse bloco vai ser severamente questionado pelas
próximas gerações", concluiu o analista.
Fonte:
Sputnik Brasil
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