sábado, 6 de julho de 2024

Os (des)caminhos do setor das comunicações no terceiro governo Lula

Por que o Brasil não avançou efetivamente no processo de democratização dos meios de comunicação nos dois primeiros mandatos presidenciais de Lula? Se aquela foi uma época de aprovação de legislações baseadas na perspectiva do direito à comunicação em outros países da América Latina, por que não tivemos aqui um processo semelhante? Essas são perguntas que podem ter diferentes respostas, mas uma questão parece ser consensual: chegamos a 2024 com um déficit democrático quando o assunto é garantia de diversidade e pluralismo no setor midiático.

Entre o fim do segundo governo Lula, em 2010, e o início do terceiro, em 2023, não faltaram exemplos do alinhamento da mídia privado-comercial brasileira ao que há de mais atrasado em termos sociais, políticos e econômicos: o funcionamento como megafone dos discursos de sustentação do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; a defesa escancarada de medidas prejudiciais ao país, como a devastadora “reforma” da previdência; a aceitação da política econômica de Paulo Guedes; e o posicionamento como porta-voz do agronegócio.

Se este cenário foi suficiente para pensar que, com a vitória de Lula em outubro de 2022, “agora seria diferente” ou “não foi, mas agora vai”, o fato é que qualquer pequena expectativa foi imediatamente frustrada. Isso porque o primeiro aceno de Lula foi justamente o de favorecimento dos historicamente privilegiados: os proprietários de radiodifusão.

Ainda em 2022 — portanto, antes da posse —, Lula decidiu pela nomeação de Juscelino Filho como ministro das Comunicações. Muito já foi dito sobre esse caso, mas vale aqui evidenciar um aspecto: nas últimas eleições, o União Brasil, partido de Juscelino Filho, teve 14 donos de mídia candidatos a governador, deputado(a) federal, deputado(a) estadual, senador (a) e suplente de senador (a) em 15 estados brasileiros.

Além de ser uma espécie de clube recreativo dos políticos proprietários de radiodifusão, o União Brasil, não custa lembrar, é uma sigla criada a partir da fusão do DEM e do PSL: o primeiro partido foi peça-chave no golpe contra a presidenta Dilma; o segundo abrigou a candidatura de Bolsonaro em 2018.

O segundo ato de confirmação da escolha de Lula em afagar os historicamente agraciados aconteceu já no início deste ano de 2024. Com a divulgação de uma foto em que o ministro das Comunicações aparecia sorridente, e com uma imagem de Cristo na cruz, ao fundo, Lula anunciou, em 15 de janeiro, a sanção da Lei 14.812/24.

Grosso modo, a lei amplia o número máximo de estações de rádio e televisão que cada entidade pode operar. Ou seja, aumenta os limites de concessões de rádio e TV por grupo econômico ou empresa. No caso das rádios, de seis para 20 (independente da modalidade de frequência). Já as emissoras de televisão, de dez para 20. Tudo diferente do que dizia um caricato ex-deputado, pior do que está pode ficar, sim.

Também na área da comunicação pública, em que Lula estabeleceu avanços inéditos nos seus primeiros mandatos, a situação é preocupante. Por exemplo, chegamos ao segundo semestre do segundo ano do atual governo e, até o momento, não há qualquer sinalização de recriação do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), cassado por Michel Temer em 2016.

Para nós, o questionamento deve ser feito nos seguintes termos: qual o temor do governo Lula em, cumprindo o que efetivamente significa comunicação pública, abrir a EBC para a participação da sociedade brasileira? O governo que sobe a rampa no dia da posse com negros, indígenas, pessoas com deficiência não consegue estabelecer um órgão colegiado, representativo do que somos enquanto população, na gestão do principal sistema público de comunicação do país? Até que ponto a autonomia da comunicação pública, que não deve ser confundida com comunicação governamental, assusta o governo?

Até mesmo a criação do Comitê Editorial e de Programação, proposta por um GT formado pelo governo no final de 2023, após pressão de organizações da sociedade civil articuladas na Frente em Defesa da EBC, ainda não saiu do papel.

No que diz respeito ao acesso à internet, dados de pesquisas como a TIC Domicílios demonstram que há, ano após ano, um crescimento do percentual da população com conectividade digital. Por outro lado, apenas 22% das brasileiras e brasileiros têm condições satisfatórias de conectividade, de acordo com o estudo “Conectividade Significativa: propostas para medição e o retrato da população no Brasil”.

Deste modo, a universalização do acesso à internet, que deve significar não apenas a conexão em si, mas uma série de dimensões, como a acessibilidade financeira, o acesso a equipamentos, a qualidade da conexão e os ambientes de uso, dentre outras, segue como um objetivo distante no Brasil. E distante até mesmo de outras iniciativas ensaiadas em gestões anteriores do PT, a exemplo dos Planos Nacionais de Banda Larga.

Para além da ausência de qualquer política pública robusta e estruturada de conectividade digital significativa, acordos entre a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), o Tribunal de Contas da União (TCU) e operadoras privadas colocam em risco o destino de recursos financeiros de bens reversíveis que deveriam ser investidos em redes destinadas à inclusão digital. Um contexto que, como escreveu a advogada Flávia Lefèvre, faz a universalização do acesso à internet “virar fumaça”.

Pior: o que temos visto é o avanço de redes privadas de satélites na Amazônia, algo que é facilitado, inclusive, pelo grau de insatisfação da população com o acesso à internet. Um levantamento da BBC Brasil revelou que a Starlink, empresa do bilionário Elon Musk, tem antenas instaladas em 90% dos municípios da Amazônia Legal, sendo a líder entre os provedores de banda larga fixa por satélite da região. Diversas comunidades, escolas, centros culturais e comunitários localizados em áreas rurais e territórios tradicionais fazem uso da internet a partir da estrutura do bilionário, que é conhecidamente promotor de discursos de ódio.

O primeiro ano do terceiro mandato Lula foi também marcado por mais um adiamento do processo de regulação do ambiente digital. Ainda que o governo pareça ter alguma disposição para pautar este tema, a exemplo da carta lida pelo secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), João Brant, em um evento da Organização das Nações Unidas, o Congresso se demonstra aliado do lobby das big techs. A principal matéria sobre o tema, o chamado PL das Fake News, segue sem aprovação. E ao que tudo indica, o Grupo de Trabalho criado por Arthur Lira (PP-AL) para elaborar uma nova legislação para regulação das plataformas digitais irá desperdiçar os quatro anos de acúmulo sobre o tema.

Não podemos ignorar, neste balanço, uma atuação controversa do Governo Federal nesta matéria. Por um lado, posicionamentos firmes do Executivo, sobretudo do ex-ministro Flávio Dino, contra a conivência das plataformas digitais com os discursos de ódio e manifestações antidemocráticas no contexto dos ataques com intentos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Por outro, pouco se viu de priorização do Governo nos debates e votações relacionadas ao PL 2630.

O quadro é ainda mais crítico quando observamos que até mesmo a defesa de tecnologias digitais que agravam lógicas racistas, a exemplo do reconhecimento facial, tem espaço privilegiado num governo que defende a democracia. Se não é isso, o que justifica o uso do reconhecimento facial nas unidades prisionais de âmbito federal ter sido uma das medidas anunciadas pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, após a fuga de encarcerados do presídio de Mossoró no início deste ano? São inúmeros os estudos, feitos no Brasil e em outros países, que confirmam como esse tipo de tecnologia serve apenas ao policiamento preditivo e à vigilância de corpos e territórios racializados.

·        E as rádios comunitárias e mídias independentes?

Duas iniciativas do Executivo foram recebidas com entusiasmo pelo movimento de rádios comunitárias: o lançamento do Plano Nacional de Outorgas (PNO) para rádios comunitárias; e a abertura de cadastro para patrocínio na modalidade de “apoio cultural” pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República em 2024. No entanto, as propostas não tocaram em questões cruciais para quem atua no movimento. O Governo Federal ainda não alterou a legislação do setor para permitir a possibilidade de divulgação de produtos, preços e promoções pelas emissoras, algo que dificulta o interesse dos comerciantes locais em anunciar nessas rádios.

Além disso, o movimento das comunitárias quer a alteração do Decreto 2615/1998 para que seja prevista a ampliação do limite de alcance delas, atualmente restrito a um raio de um quilômetro, algo que não leva em consideração as especificidades das comunidades nas diferentes regiões. Outra pauta importante para o movimento é a atual reserva de uma frequência para o serviço de radiodifusão comunitária por localidade, o que também é visto, por militantes da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço Brasil), por exemplo, como uma dificuldade.

Com as mídias democráticas e independentes não foi diferente. A ausência de uma política de fomento voltada a essas mídias tem sido apontada como um dos gargalos do atual governo Lula no campo da comunicação. Depois de quatro anos de um governo que perseguiu ativistas de direitos humanos, profissionais de comunicação e grupos de mídia, que financiou sites blogs de extrema-direita para dar vazão à desordem informacional, a sociedade aguardava que o governo Lula elaborasse uma política de Estado para fortalecer as iniciativas comunicacionais populares. Esse apoio, inclusive, poderia ser uma estratégia para enfrentar a proliferação da desinformação e combater os desertos de notícias.

As diversas organizações que atuam no setor ainda aguardam posicionamento do governo frente à demanda por editais, fundos públicos e outras formas de financiamento. Ainda assim, as mídias independentes vislumbram acenos da Secom e dos ministérios da Igualdade Racial e da Cultura para que suas demandas sejam contempladas por editais de fomento neste ano.

·        Pensar e agir para o futuro

Em um ano em que as eleições municipais batem à porta, é preciso reacender a chama do debate imprescindível sobre a regulação das mídias. Quando vislumbramos uma sociedade atravessada pelo avanço da extrema-direita, que tem utilizado diversas mídias como aliadas para a propagação da desordem informativa com mais força em períodos eleitorais, é que nos deparamos com importantes pautas como a da regulação das plataformas digitais, debate ainda espinhoso para o Governo Federal, que tem sido tratado de forma amadora pelo Congresso Nacional nos últimos anos.

Enquanto isso, os movimentos de luta pelo direito à comunicação seguem nas trincheiras, pressionando e, ao mesmo tempo, contribuindo ou apoiando as iniciativas do governo que estão na pauta de reivindicações das entidades. Entre elas, a criação da Estratégia Brasileira de Educação Midiática (EBEM), documento que reúne iniciativas desenvolvidas pelo Governo Federal para a promoção da educação para as mídias da população, sob a coordenação da Secom. O documento foi construído a partir de consulta pública que recebeu mais de 400 contribuições, sendo lançado durante a 1ª Semana Brasileira de Educação Midiática, realizada em outubro do ano passado, pela Secom, em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e cooperação da UNESCO Brasil. O Intervozes esteve presente no evento.

Vale destacar, ainda, a atuação Grupo de Trabalho (GT) responsável pela elaboração do Guia para Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes (Portaria SECOM/PR nº 13, de 5 de dezembro de 2023), que se reuniu, em Brasília, no dia 25 de junho último, também sob coordenação da Secom, com a participação de especialistas para debater recomendações e orientações para o uso adequado de telas, de acordo com as diversas faixas etárias. O GT é formado por representantes dos ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública, dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, da Educação, Casa Civil e Secretaria de Comunicação Social, como também de representantes da academia e de entidades que se destacam na incidência acerca do tema.

 

Fonte: Por Ana Veloso, Patrícia Paixão de O. Leite e Paulo Victor Melo, no Le Monde

 

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