Os (des)caminhos do setor das comunicações no terceiro governo
Lula
Por
que o Brasil não avançou efetivamente no processo de democratização dos meios
de comunicação nos dois primeiros mandatos presidenciais de Lula? Se aquela foi
uma época de aprovação de legislações baseadas na perspectiva do direito à
comunicação em outros países da América Latina, por que não tivemos aqui um
processo semelhante? Essas são perguntas que podem ter diferentes respostas,
mas uma questão parece ser consensual: chegamos a 2024 com um déficit
democrático quando o assunto é garantia de diversidade e pluralismo no setor
midiático.
Entre
o fim do segundo governo Lula, em 2010, e o início do terceiro, em 2023, não
faltaram exemplos do alinhamento da mídia privado-comercial brasileira ao que
há de mais atrasado em termos sociais, políticos e econômicos: o funcionamento
como megafone dos discursos de sustentação do golpe contra a presidenta Dilma
Rousseff; a defesa escancarada de medidas prejudiciais ao país, como a
devastadora “reforma” da previdência; a aceitação da política econômica de
Paulo Guedes; e o posicionamento como porta-voz do agronegócio.
Se
este cenário foi suficiente para pensar que, com a vitória de Lula em outubro
de 2022, “agora seria diferente” ou “não foi, mas agora vai”, o fato é que
qualquer pequena expectativa foi imediatamente frustrada. Isso porque o
primeiro aceno de Lula foi justamente o de favorecimento dos historicamente
privilegiados: os proprietários de radiodifusão.
Ainda
em 2022 — portanto, antes da posse —, Lula decidiu pela nomeação de Juscelino
Filho como ministro das Comunicações. Muito já foi dito sobre esse caso, mas
vale aqui evidenciar um aspecto: nas últimas eleições, o União Brasil, partido
de Juscelino Filho, teve 14 donos de mídia candidatos a governador, deputado(a)
federal, deputado(a) estadual, senador (a) e suplente de senador (a) em 15
estados brasileiros.
Além
de ser uma espécie de clube recreativo dos políticos proprietários de
radiodifusão, o União Brasil, não custa lembrar, é uma sigla criada a partir da
fusão do DEM e do PSL: o primeiro partido foi peça-chave no golpe contra a
presidenta Dilma; o segundo abrigou a candidatura de Bolsonaro em 2018.
O
segundo ato de confirmação da escolha de Lula em afagar os historicamente
agraciados aconteceu já no início deste ano de 2024. Com a divulgação de uma
foto em que o ministro das Comunicações aparecia sorridente, e com uma imagem
de Cristo na cruz, ao fundo, Lula anunciou, em 15 de janeiro, a sanção da Lei
14.812/24.
Grosso
modo, a lei amplia o número máximo de estações de rádio e televisão que cada
entidade pode operar. Ou seja, aumenta os limites de concessões de rádio e TV
por grupo econômico ou empresa. No caso das rádios, de seis para 20
(independente da modalidade de frequência). Já as emissoras de televisão, de
dez para 20. Tudo diferente do que dizia um caricato ex-deputado, pior do que
está pode ficar, sim.
Também
na área da comunicação pública, em que Lula estabeleceu avanços inéditos nos
seus primeiros mandatos, a situação é preocupante. Por exemplo, chegamos ao
segundo semestre do segundo ano do atual governo e, até o momento, não há
qualquer sinalização de recriação do Conselho Curador da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC), cassado por Michel Temer em 2016.
Para
nós, o questionamento deve ser feito nos seguintes termos: qual o temor do
governo Lula em, cumprindo o que efetivamente significa comunicação pública,
abrir a EBC para a participação da sociedade brasileira? O governo que
sobe a rampa no dia da posse com negros, indígenas, pessoas com deficiência não
consegue estabelecer um órgão colegiado, representativo do que somos enquanto
população, na gestão do principal sistema público de comunicação do
país? Até que ponto a autonomia da comunicação pública, que não deve ser
confundida com comunicação governamental, assusta o governo?
Até
mesmo a criação do Comitê Editorial e de Programação, proposta por um GT
formado pelo governo no final de 2023, após pressão de organizações da
sociedade civil articuladas na Frente em Defesa da EBC, ainda não saiu do
papel.
No
que diz respeito ao acesso à internet, dados de pesquisas como a TIC Domicílios
demonstram que há, ano após ano, um crescimento do percentual da população com
conectividade digital. Por outro lado, apenas 22% das brasileiras e brasileiros
têm condições satisfatórias de conectividade, de acordo com o estudo “Conectividade Significativa: propostas para medição e o retrato
da população no Brasil”.
Deste
modo, a universalização do acesso à internet, que deve significar não apenas a
conexão em si, mas uma série de dimensões, como a acessibilidade financeira, o
acesso a equipamentos, a qualidade da conexão e os ambientes de uso, dentre
outras, segue como um objetivo distante no Brasil. E distante até mesmo de
outras iniciativas ensaiadas em gestões anteriores do PT, a exemplo dos Planos
Nacionais de Banda Larga.
Para
além da ausência de qualquer política pública robusta e estruturada de
conectividade digital significativa, acordos entre a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), o
Tribunal de Contas da União (TCU) e operadoras privadas colocam em risco o destino de recursos financeiros de bens
reversíveis que deveriam ser investidos em redes destinadas à inclusão digital.
Um contexto que, como escreveu a advogada Flávia Lefèvre, faz a universalização
do acesso à internet “virar fumaça”.
Pior:
o que temos visto é o avanço de redes privadas de satélites na Amazônia, algo
que é facilitado, inclusive, pelo grau de insatisfação da população com o
acesso à internet. Um levantamento da BBC Brasil revelou
que a Starlink, empresa do bilionário Elon Musk, tem antenas instaladas em 90%
dos municípios da Amazônia Legal, sendo a líder entre os provedores de banda
larga fixa por satélite da região. Diversas comunidades, escolas, centros
culturais e comunitários localizados em áreas rurais e territórios tradicionais
fazem uso da internet a partir da estrutura do bilionário, que é conhecidamente
promotor de discursos de ódio.
O
primeiro ano do terceiro mandato Lula foi também marcado por mais um adiamento
do processo de regulação do ambiente digital. Ainda que o governo pareça ter
alguma disposição para pautar este tema, a exemplo da carta lida pelo secretário de Políticas Digitais da Secretaria
de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), João Brant, em um evento da Organização das
Nações Unidas, o Congresso se demonstra aliado do lobby das big techs.
A principal matéria sobre o tema, o chamado PL das Fake News, segue sem
aprovação. E ao que tudo indica, o Grupo de Trabalho criado por Arthur Lira
(PP-AL) para elaborar uma nova legislação para regulação das plataformas
digitais irá desperdiçar os quatro anos de acúmulo sobre o tema.
Não
podemos ignorar, neste balanço, uma atuação controversa do Governo Federal
nesta matéria. Por um lado, posicionamentos firmes do Executivo, sobretudo do
ex-ministro Flávio Dino, contra a conivência das plataformas digitais com os
discursos de ódio e manifestações antidemocráticas no contexto dos ataques com intentos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Por outro, pouco se viu de priorização do Governo nos debates
e votações relacionadas ao PL 2630.
O
quadro é ainda mais crítico quando observamos que até mesmo a defesa de
tecnologias digitais que agravam lógicas racistas, a exemplo do reconhecimento facial, tem
espaço privilegiado num governo que defende a democracia. Se não é isso, o que
justifica o uso do reconhecimento facial nas unidades prisionais de âmbito
federal ter sido uma das medidas anunciadas
pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, após a fuga de encarcerados do
presídio de Mossoró no início deste ano? São inúmeros os estudos, feitos no
Brasil e em outros países, que confirmam como esse tipo de tecnologia serve
apenas ao policiamento preditivo e à vigilância de corpos e territórios
racializados.
·
E as rádios
comunitárias e mídias independentes?
Duas
iniciativas do Executivo foram recebidas com entusiasmo pelo movimento de
rádios comunitárias: o lançamento do Plano Nacional de Outorgas (PNO) para
rádios comunitárias; e a abertura de cadastro para patrocínio na modalidade de
“apoio cultural” pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República em 2024. No entanto, as propostas não tocaram em questões cruciais
para quem atua no movimento. O Governo Federal ainda não alterou a legislação
do setor para permitir a possibilidade de divulgação de produtos, preços e
promoções pelas emissoras, algo que dificulta o interesse dos comerciantes
locais em anunciar nessas rádios.
Além
disso, o movimento das comunitárias quer a alteração do Decreto 2615/1998 para
que seja prevista a ampliação do limite de alcance delas, atualmente restrito a
um raio de um quilômetro, algo que não leva em consideração as especificidades
das comunidades nas diferentes regiões. Outra pauta importante para o movimento
é a atual reserva de uma frequência para o serviço de radiodifusão comunitária
por localidade, o que também é visto, por militantes da Associação Brasileira
de Rádios Comunitárias (Abraço Brasil), por exemplo, como uma dificuldade.
Com
as mídias democráticas e independentes não foi diferente. A ausência de uma
política de fomento voltada a essas mídias tem sido apontada como um dos
gargalos do atual governo Lula no campo da comunicação. Depois de quatro anos
de um governo que perseguiu ativistas de direitos humanos, profissionais de
comunicação e grupos de mídia, que financiou sites e blogs de
extrema-direita para dar vazão à desordem informacional, a sociedade aguardava
que o governo Lula elaborasse uma política de Estado para fortalecer as
iniciativas comunicacionais populares. Esse apoio, inclusive, poderia ser uma
estratégia para enfrentar a proliferação da desinformação e combater os
desertos de notícias.
As
diversas organizações que atuam no setor ainda aguardam posicionamento do
governo frente à demanda por editais, fundos públicos e outras formas de
financiamento. Ainda assim, as mídias independentes vislumbram acenos da Secom
e dos ministérios da Igualdade Racial e da Cultura para que suas demandas sejam
contempladas por editais de fomento neste ano.
·
Pensar e agir para o
futuro
Em
um ano em que as eleições municipais batem
à porta, é preciso reacender a chama do debate imprescindível sobre a regulação
das mídias. Quando vislumbramos uma sociedade atravessada pelo avanço da
extrema-direita, que tem utilizado diversas mídias como aliadas para a
propagação da desordem informativa com mais força em períodos eleitorais, é que
nos deparamos com importantes pautas como a da regulação das plataformas
digitais, debate ainda espinhoso para o Governo Federal, que tem sido tratado
de forma amadora pelo Congresso Nacional nos últimos anos.
Enquanto
isso, os movimentos de luta pelo direito à comunicação seguem nas trincheiras,
pressionando e, ao mesmo tempo, contribuindo ou apoiando as iniciativas do
governo que estão na pauta de reivindicações das entidades. Entre elas, a
criação da Estratégia Brasileira de Educação Midiática (EBEM), documento que
reúne iniciativas desenvolvidas pelo Governo Federal para a promoção da
educação para as mídias da população, sob a coordenação da Secom. O documento
foi construído a partir de consulta pública que recebeu mais de 400
contribuições, sendo lançado durante a 1ª Semana Brasileira de Educação Midiática, realizada em outubro do ano passado, pela Secom, em parceria
com o Ministério da Educação (MEC) e cooperação da UNESCO Brasil. O Intervozes
esteve presente no evento.
Vale
destacar, ainda, a atuação Grupo de Trabalho (GT) responsável pela elaboração do Guia para
Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes
(Portaria SECOM/PR nº 13, de 5 de dezembro de 2023), que se reuniu, em Brasília, no dia 25 de junho último, também
sob coordenação da Secom, com a participação de especialistas para debater
recomendações e orientações para o uso adequado de telas, de acordo com as
diversas faixas etárias. O GT é formado por representantes dos ministérios da
Saúde, da Justiça e Segurança Pública, dos Direitos Humanos e da Cidadania, do
Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, da Educação,
Casa Civil e Secretaria de Comunicação Social, como também de representantes da
academia e de entidades que se destacam na incidência acerca do tema.
Fonte:
Por Ana Veloso, Patrícia Paixão de O. Leite e Paulo Victor Melo, no Le Monde
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