O remédio
inovador contra malária que começou a ser distribuído para crianças na Amazônia
Um
remédio feito com base no conceito da ciência aberta, livre de patentes, sem
fins lucrativos e pronto para virar genérico se tornou a primeira opção para
tratar crianças com malária no Brasil.
O
fármaco, que começou a ser distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no mês
de junho em toda a região amazônica, é resultado de mais de duas décadas de
pesquisas e muitos debates, que foram liderados pela ONG Iniciativa
Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) e pelo
Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz
(Farmanguinhos-FioCruz).
Além
da distribuição gratuita no Brasil, os responsáveis pela inovação se
comprometeram a compartilhar a "receita" do fármaco com qualquer
entidade que tenha interesse em produzi-lo para outras partes do mundo — uma
empresa da Índia, inclusive, já passou por esse processo de transferência de
tecnologia e fabrica o remédio para países asiáticos onde a malária também é um
problema.
Vale
lembrar que essa doença é causada pelo protozoário Plasmodium, transmitido pela
picada de mosquitos Anopheles, popularmente conhecido no Brasil como carapanã,
muriçoca ou mosquito-prego.
Os
principais sintomas da infecção vão de febre alta, calafrios, tremores,
sudorese e dor de cabeça a convulsões, alteração da consciência e hemorragias.
As crianças são um dos grupos mais atingidos pela moléstia.
Entre
as vantagens da nova terapia, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil citam
o tempo reduzido de tratamento, as doses padronizadas, feitas especificamente
para o público infantil, e o menor risco de desenvolvimento de uma resistência
do agente causador da malária ao esquema terapêutico (entenda mais a seguir).
• Uma grande preocupação na virada do
século
O
médico André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas
(INI-Fiocruz), explica que, em meados da década de 1950, a cloroquina era o
principal tratamento disponível contra a malária.
"Ela
era uma medicação muito potente e eficiente, que permanecia na corrente
sanguínea por três a quatro semanas e protegia as pessoas de uma nova infecção
com esse protozoário", caracteriza ele.
Mas
já nos anos 1960 os especialistas começaram a notar em várias partes do mundo
que algumas espécies de Plasmodium desenvolveram uma resistência à medicação.
Com isso, esse produto deixou de ser usado como primeira linha terapêutica, já
que sua efetividade baixou.
Nesse
meio tempo, outros fármacos (como os quininos) entraram em cena — mas os
patógenos por trás da malária logo também encontraram maneiras de
"driblar" a ação desses medicamentos.
"Na
década de 1990, houve uma retomada do uso dos derivados de artemisinina, uma
classe farmacêutica que havia sido descoberta em meados dos anos 1960 e
70", lembra Siqueira.
Aliás,
a descoberta da artemisinina rendeu o Prêmio Nobel de Medicina de 2015 para a
farmacologista chinesa Tu Youyou.
"A
artemisinina é muito potente, mas ela tem uma meia-vida muito curta, o que
exige ampliar o tratamento para mais dias", pontua o infectologista.
"E
isso dificulta a adesão ao tratamento, pois a maioria das áreas atingidas pela
malária têm um baixo nível educacional, problemas socioeconômicos e sistemas de
saúde frágeis", complementa ele.
Todo
esse cenário fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) soasse o alarme
no começo dos anos 2000: havia uma necessidade urgente de desenvolver novas
soluções para lidar com a malária e a crescente resistência dos protozoários
aos tratamentos disponíveis.
Foi
nesse contexto que o projeto para desenvolver uma nova medicação teve início.
"Partindo
da orientação da OMS, a ideia era usar dois fármacos diferentes, cada um com um
mecanismo de ação sobre o parasita, para evitar o surgimento de cepas
resistentes", conta o farmacêutico Jorge Mendonça, diretor do
Farmanguinhos.
"Ao
mesmo tempo, pensamos em fazer um estudo para diminuir a concentração de cada
um desses fármacos, para reduzir possíveis eventos adversos, como
vômitos", complementa ele.
Com
base nesses trabalhos, os pesquisadores chegaram à fórmula do artesunato +
mefloquina, também conhecido pela sigla ASMQ, o tratamento que chegou há pouco
às crianças dos Estados amazônicos.
O
artesunato deriva da artemisinina que, por sua vez, é uma substância encontrada
na planta Artemisia annua, que cresce no Sudeste Asiático e é tradicionalmente
utilizada na medicina de China e Índia.
Já
a mefloquina é uma versão sintética dos quininos, um elemento da planta quina
ou cinchona, típica da América do Sul.
Ou
seja: o ASMQ traz princípios ativos que já eram conhecidos e utilizados pelos
médicos. No entanto, ele combina as moléculas de maneira a garantir a
recuperação do paciente com o menor número de doses possível para facilitar o
tratamento e evitar a resistência do protozoário no futuro.
O
novo remédio tem uma versão para adultos (que traz 100 miligramas do artesunato
e 200 mg da mefloquina) e outra criada especificamente para o público infantil
(artesunato 25 mg e mefloquina 50 mg).
Os
testes clínicos mostraram que as doses são seguras e eficazes, além de estarem
adaptadas às condições tropicais (não perdem o princípio ativo por causa do
calor, por exemplo). A versão pediátrica está liberada para uso em crianças
acima dos 6 meses de vida.
"O
tratamento consiste em um comprimido diário, durante três dias, sem necessidade
de ajustar a dose segundo o peso do paciente", diz o médico Sergio
Sosa-Estani, diretor da DNDi na América Latina.
Para
crianças muito pequenas, que ainda não conseguem deglutir adequadamente, há a
possibilidade de amassar o comprimido e diluí-lo com um pouco de água.
"Os
pacientes já se sentem melhor no primeiro dia de tratamento", destaca
Mendonça. Na opinião do especialista, o ASMQ representa "o maior avanço no
tratamento da malária dos últimos 15 anos".
Segundo
os pesquisadores, as duas moléculas que compõem o fármaco atuam em diferentes
fases da replicação do protozoário dentro das células humanas. Com isso, a
doença deixa de progredir e, por consequência, a pessoa sente um alívio nos
sintomas.
Ainda
de acordo com os responsáveis pela inovação, todos esses atributos são vitais
no contexto em que a maioria dos casos de malária são detectados.
Em
primeiro lugar, um tratamento curto, de apenas três dias, garante que o
paciente complete o esquema terapêutico preconizado — algo essencial para
eliminar os parasitas e evitar o desenvolvimento de resistência.
Segundo,
a padronização das doses também facilita a vida dos médicos e cria protocolos
mais fáceis de seguir.
E,
terceiro, ele supre uma demanda urgente e não atendida há décadas — como você
entende a seguir.
• Mais negligenciados entre os já
negligenciados
Dados
compilados pelo Ministério da Saúde mostram que cerca de 130 mil casos e 62
mortes por malária foram registrados no país em 2022 — e 99% das infecções se
concentram na região amazônica.
Entre
2013 e 2022, mais de 1,5 milhão de brasileiros tiveram a doença. Desses, 29%
(ou quase um terço) tinham até 12 anos.
Mais
recentemente, em janeiro de 2023, o Governo Federal declarou uma situação de
emergência de saúde pública em território Yanomami.
E,
junto com o desmatamento, a mineração ilegal e a desnutrição, a malária também
foi um dos fatores que motivou essa decisão. A doença segue até hoje como uma
das grandes causas de hospitalizações e óbitos entre membros desse povo
indígena.
Como
se os dados sobre os impactos dessa doença no público infantil já não fossem
suficientemente relevantes, algumas pesquisas revelam como essa população mais
jovem é "ignorada" no desenvolvimento e na disponibilidade de
tratamentos para muitas doenças negligenciadas — grupo que inclui quadros como
malária, dengue, esquistossomose e micoses profundas, entre outros.
Um
levantamento realizado em 2019 aponta que, de 360 testes clínicos com novos
tratamentos contra doenças negligenciadas, apenas 17% incluem pacientes com
menos de 18 anos.
A
DNDi ainda destaca que, dos 47 remédios indicados pela OMS no tratamento dessas
enfermidades "esquecidas", somente sete possuem formulações
elaboradas para os mais jovens.
Dentro
desse contexto, o ASMQ na versão pediátrica começou a ser distribuído para
diminuir essa disparidade e garantir uma opção para os casos mais graves de
malária, causados pelo Plasmodium falciparum.
Essa
espécie específica de Plasmodium é responsável por cerca de 25% dos casos da
enfermidade na América Latina, segundo a FioCruz. A DNDi lembra que o
falciparum é o principal causador de casos severos de malária no Brasil.
Mas
a chegada do novo remédio até a ponta, nos serviços de saúde, foi precedida por
uma grande discussão entre os especialistas da área.
Mendonça
diz que o processo de desenvolvimento do fármaco e a aprovação dele pelas
agências regulatórias (como é o caso da Anvisa no Brasil) foi concluído em
meados de 2008. Em 2009, o remédio foi incorporado ao Programa Nacional de
Prevenção e Controle da Malária.
"Mas
à época existia um certo receio dos infectologistas de que a introdução ampla
desse remédio levaria ao surgimento de novas cepas resistentes do
parasita", lembra o diretor do Farmanguinhos.
Essa
dúvida gerou uma certa cautela na adoção do novo esquema terapêutico — e exigiu
a realização de novos estudos.
"Além
disso, a experiência de outros países, especialmente no Sudeste Asiático,
mostraram que a combinação de artesunato + mefloquina até agora não esteve
associada à resistência e o tratamento continua a ser efetivo por um tempo
prolongado", acrescenta Siqueira.
Com
essas informações em mãos, a partir de 2019, criou-se um consenso entre
especialistas e tomadores de decisão de que o novo medicamento poderia ser
amplamente adotado no Brasil como a primeira opção de tratamento.
"Mas
logo depois, em 2020, veio a pandemia de covid-19 e não conseguimos iniciar a
distribuição ampla do ASMQ para crianças", justifica Mendonça.
A
situação só se normalizou a partir de 2023 — e, como mencionado no início da
reportagem, os primeiros lotes da versão pediátrica do remédio passaram a ser distribuídos
em junho deste ano.
Segundo
a Farmanguinhos, foram enviadas cerca de 360 mil unidades do medicamento para o
território Yanomami, que enfrenta a emergência de saúde pública desde o ano
passado.
Além
disso, outros 259 mil comprimidos — metade de uso adulto, metade na versão
pediátrica — serão fornecidos às secretarias estaduais de Saúde dos Estados
amazônicos (Acre, Amazonas, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato
Grosso e Maranhão).
Ainda
segundo o instituto da FioCruz, a criação do medicamento custou 7,8 milhões de
euros (R$ 46 milhões na cotação atual), valor que foi financiado em conjunto
por União Europeia, Reino Unido, Espanha, França e Holanda.
Por
fim, Sosa-Estani acredita que o sistema colaborativo utilizado para criar essa
medicação pode servir de inspiração na busca por soluções contra outras doenças
negligenciadas.
"Esse
modelo bem-sucedido de desenvolvimento farmacêutico colaborativo sem fins
lucrativos nos ensinou muitas lições valiosas sobre o desenvolvimento de novos
tratamentos para outras doenças que requerem atenção urgente, como é o caso da
própria epidemia de dengue", conclui ele.
Fonte:
BBC News Brasil

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