A
uberização e a crise da previdência
Nos
últimos anos, a transformação do mercado de trabalho, impulsionada pelo avanço
tecnológico e pelo crescimento das plataformas digitais, trouxe à tona um
fenômeno denominado “uberização do trabalho”. Esse modelo, caracterizado pela
intermediação entre prestadores de serviço e clientes por meio de aplicativos,
promete flexibilidade e autonomia aos trabalhadores. No entanto, ao se analisar
mais profundamente, especialmente sob a ótica social, torna-se mais que
evidente que essa aparente liberdade vem acompanhada de uma série de
precariedades e significativos problemas.
A
previdência social desempenha um papel importante e necessário na proteção dos
trabalhadores, garantindo uma rede de segurança que lhes permite enfrentar
momentos de vulnerabilidade, como doença, desemprego ou velhice. O sistema
previdenciário foi concebido para assegurar que, após anos de contribuição, os
trabalhadores tenham direito a uma aposentadoria digna, proporcionando-lhes
estabilidade financeira na terceira idade.
No
modelo tradicional de emprego, essa segurança é garantida por contribuições
regulares tanto dos empregados quanto dos empregadores, criando uma base sólida
para o financiamento dos benefícios sociais e manutenção da seguridade da
sociedade. A previdência é um componente essencial do Estado de bem-estar
social, promovendo a equidade e a justiça social ao redistribuir renda e
oferecer proteção a todos os trabalhadores, independentemente de sua posição
econômica.
No
contexto da uberização do trabalho, essa estrutura de proteção é
significativamente enfraquecida. Os trabalhadores de plataformas digitais,
muitas vezes classificados como autônomos, não têm acesso aos mesmos direitos e
benefícios dos empregados formais. A ausência de contribuições previdenciárias
regulares por parte desses trabalhadores compromete não apenas sua própria
segurança futura, mas também a sustentabilidade do sistema previdenciário como
um todo.
Sem
a garantia de um contrato formal e das contribuições correspondentes, esses
trabalhadores ficam desprotegidos e enfrentam uma maior incerteza econômica.
Esse modelo de trabalho exacerba a vulnerabilidade dos trabalhadores, que são
frequentemente sujeitos a jornadas de trabalho extenuantes e a uma
instabilidade financeira crônica, sem o amparo de uma rede de proteção social.
A
precarização das condições de trabalho decorrente da uberização também afeta
diretamente a arrecadação fiscal. Com menos trabalhadores contribuindo
regularmente para a previdência, a capacidade do sistema de fornecer benefícios
adequados é severamente reduzida.
Isso
não apenas coloca em risco a aposentadoria de milhões de pessoas, mas também a
viabilidade de outros benefícios sociais, como o seguro-desemprego e o
auxílio-doença, que são essenciais para a estabilidade econômica dos
trabalhadores em momentos de crise. A redução na arrecadação fiscal também
limita a capacidade do governo de investir em outras áreas críticas, como saúde
e educação, exacerbando ainda mais as desigualdades sociais.
Além
disso, a importância da previdência se torna ainda mais evidente quando
consideramos o envelhecimento da população. À medida que a expectativa de vida
aumenta, mais pessoas dependem dos benefícios previdenciários para manter um
padrão de vida digno após a aposentadoria. A uberização, ao promover relações
de trabalho mais flexíveis e menos regulamentadas, ameaça agravar o
desequilíbrio financeiro dos sistemas previdenciários.
Sem
uma base ampla e estável de contribuições, a capacidade de atender às
necessidades de uma população envelhecida é comprometida, colocando em risco o
bem-estar de futuras gerações. A ausência de contribuições contínuas e
regulares pode resultar em um déficit previdenciário extremamente
significativo, forçando o Estado a adotar medidas de austeridade que podem
prejudicar ainda mais os trabalhadores e a economia como um todo.
O
processo de uberização também levanta questões sobre a dignidade e a
valorização do trabalho. Em muitos casos, os trabalhadores de plataformas
digitais recebem remuneração abaixo do salário-mínimo, não têm acesso a
benefícios básicos e são expostos a condições de trabalho perigosas e
insalubres.
Essa
desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade
que fundamentam a lógica da previdência social. A falta de regulamentação
adequada e a exploração dos trabalhadores pela lógica do lucro máximo das
plataformas criam um ambiente de trabalho hostil e insustentável, onde os
direitos humanos básicos são frequentemente violados.
Portanto,
a previdência social é um pilar essencial para a segurança e a dignidade dos
trabalhadores, oferecendo uma rede de proteção contra as incertezas econômicas
e os riscos da vida. A uberização do trabalho, ao afastar-se dos modelos
tradicionais de emprego formal, impõe sérios desafios a essa estrutura,
enfraquecendo a rede de segurança que sustenta milhões de trabalhadores.
Reconhecer
a importância da previdência social e enfrentar as implicações desse novo
modelo de trabalho é crucial para garantir uma proteção social justa e eficaz
em um mundo cada vez mais digitalizado.
• Na contramão da regulação do
trabalho. Por Renan Bernardi Kalil
Em
março, o Projeto de Lei Complementar 12/2024 (PLP 12/2024) foi enviado para o
Congresso Nacional com o objetivo de regular o trabalho dos motoristas que
atuam por meio de plataformas digitais. À época, apontamos os seus principais
problemas: a equivocada caracterização das plataformas digitais como
intermediárias, a insuficiência na definição do trabalho autônomo e vedação do
reconhecimento da relação de emprego mesmo quando presentes elementos de
controle do trabalho.
Após
meses de intensos debates em diversos espaços, incluindo audiências públicas e
seminários realizados pela Câmara dos Deputados, um substitutivo ao PLP 12/2024
foi divulgado recentemente. Não apenas os antigos problemas permaneceram, como
novos foram criados.
O
principal se refere ao descanso. A Constituição prevê que se trata de um
direito do trabalhador. Porém, o substitutivo subverte a lógica que justifica
reconhecer o repouso para o trabalhador e o coloca como um dever. Sim, para o
motorista que trabalha por meio de plataformas digitais, o descanso será um
dever.
Concebido
como mecanismo de proteção ao trabalhador, o descanso é um dos instrumentos que
limita a quantidade de horas que uma pessoa pode prestar serviços para outra.
Dessa forma, busca-se fazer com que o beneficiário das atividades realizadas
pelo trabalhador assegure um período mínimo para recomposição das energias
entre o fim de uma jornada e o começo da outra.
Caracterizar
o descanso como dever joga água no moinho da transferência das
responsabilidades apenas para os trabalhadores em uma relação fortemente
desigual. Colocar nas costas dos motoristas a obrigação de controlar o seu
próprio descanso em um contexto no qual não decidem o preço do seu trabalho e
são punidos por não aceitarem uma quantidade mínima de corridas ou por
cancelarem viagens apenas reforça a discrepância de poderes entre trabalhadores
e plataformas.
O
art. 4º do substitutivo diz que dentro de um período de 24 horas, o motorista
tem a obrigação de repousar por pelo menos 11 horas, devendo ficar desconectado
de todas as plataformas. É oferecida a possibilidade de fracionamento desse
intervalo de 11 horas, desde que garantido o mínimo de 6 horas ininterruptas de
descanso.
Em
relação aos períodos de descanso, percebemos que, diante da necessidade de
encontrar referências, busca-se o socorro na lei trabalhista. Não é à toa que o
art. 4º traz os limites já previstos nos artigos 66 e 235-C da CLT. Contudo,
uma exígua responsabilidade é atribuída às plataformas digitais na observância
desses parâmetros.
O
art. 5º estabelece as punições para o descumprimento do dever de descansar. O
motorista pode ser suspenso de todas as plataformas que tiver cadastro e ficar
impedido de ingressar em novas plataformas por 30 dias. Em caso de repetição
desse descumprimento, a punição é aplicada em dobro. Essas penalidades serão
impostas após a lavratura de auto de infração por órgão de fiscalização do
Poder Executivo.
Aqui,
manifesta-se um dos lados perversos de caracterizar o descanso como dever: o
não cumprimento, por parte do motorista, impede-o de trabalhar e sujeita-o a
receber multa. Em outras palavras, o trabalhador é colocado em uma condição de
algoz de si mesmo no âmbito de uma relação assimétrica na qual sua autonomia é
extremamente reduzida.
Ao
mesmo tempo que debatemos o PLP 12/2024, o restante do mundo também discute a
regulação do trabalho via plataformas digitais. Em abril, o Parlamento Europeu
aprovou uma diretiva sobre o tema. O texto prevê regras para combater a
classificação fraudulenta dos trabalhadores como autônomos: foi estabelecida
uma presunção legal de que a relação entre uma plataforma e um trabalhador é
uma relação de trabalho quando se identifiquem elementos de controle e direção
da atividade. Caso a plataforma queira refutar essa presunção, cabe a ela
demonstrar que a relação é de outra natureza.
Ou
seja, enquanto debatemos como proibir de forma absoluta a possibilidade de
reconhecer uma relação de emprego e transformamos direitos em deveres, a Europa
discute como oferecer proteção social aos trabalhadores a partir da análise do
que ocorre no mundo dos fatos. Se o Brasil quiser sair da contramão da
regulação do trabalho via plataformas digitais, é necessária uma alteração de
rota urgente.
Fonte:
Por Pedro Henrique M. Aniceto, em A Terra é Redonda
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