sábado, 6 de julho de 2024

A uberização e a crise da previdência

Nos últimos anos, a transformação do mercado de trabalho, impulsionada pelo avanço tecnológico e pelo crescimento das plataformas digitais, trouxe à tona um fenômeno denominado “uberização do trabalho”. Esse modelo, caracterizado pela intermediação entre prestadores de serviço e clientes por meio de aplicativos, promete flexibilidade e autonomia aos trabalhadores. No entanto, ao se analisar mais profundamente, especialmente sob a ótica social, torna-se mais que evidente que essa aparente liberdade vem acompanhada de uma série de precariedades e significativos problemas.

A previdência social desempenha um papel importante e necessário na proteção dos trabalhadores, garantindo uma rede de segurança que lhes permite enfrentar momentos de vulnerabilidade, como doença, desemprego ou velhice. O sistema previdenciário foi concebido para assegurar que, após anos de contribuição, os trabalhadores tenham direito a uma aposentadoria digna, proporcionando-lhes estabilidade financeira na terceira idade.

No modelo tradicional de emprego, essa segurança é garantida por contribuições regulares tanto dos empregados quanto dos empregadores, criando uma base sólida para o financiamento dos benefícios sociais e manutenção da seguridade da sociedade. A previdência é um componente essencial do Estado de bem-estar social, promovendo a equidade e a justiça social ao redistribuir renda e oferecer proteção a todos os trabalhadores, independentemente de sua posição econômica.

No contexto da uberização do trabalho, essa estrutura de proteção é significativamente enfraquecida. Os trabalhadores de plataformas digitais, muitas vezes classificados como autônomos, não têm acesso aos mesmos direitos e benefícios dos empregados formais. A ausência de contribuições previdenciárias regulares por parte desses trabalhadores compromete não apenas sua própria segurança futura, mas também a sustentabilidade do sistema previdenciário como um todo.

Sem a garantia de um contrato formal e das contribuições correspondentes, esses trabalhadores ficam desprotegidos e enfrentam uma maior incerteza econômica. Esse modelo de trabalho exacerba a vulnerabilidade dos trabalhadores, que são frequentemente sujeitos a jornadas de trabalho extenuantes e a uma instabilidade financeira crônica, sem o amparo de uma rede de proteção social.

A precarização das condições de trabalho decorrente da uberização também afeta diretamente a arrecadação fiscal. Com menos trabalhadores contribuindo regularmente para a previdência, a capacidade do sistema de fornecer benefícios adequados é severamente reduzida.

Isso não apenas coloca em risco a aposentadoria de milhões de pessoas, mas também a viabilidade de outros benefícios sociais, como o seguro-desemprego e o auxílio-doença, que são essenciais para a estabilidade econômica dos trabalhadores em momentos de crise. A redução na arrecadação fiscal também limita a capacidade do governo de investir em outras áreas críticas, como saúde e educação, exacerbando ainda mais as desigualdades sociais.

Além disso, a importância da previdência se torna ainda mais evidente quando consideramos o envelhecimento da população. À medida que a expectativa de vida aumenta, mais pessoas dependem dos benefícios previdenciários para manter um padrão de vida digno após a aposentadoria. A uberização, ao promover relações de trabalho mais flexíveis e menos regulamentadas, ameaça agravar o desequilíbrio financeiro dos sistemas previdenciários.

Sem uma base ampla e estável de contribuições, a capacidade de atender às necessidades de uma população envelhecida é comprometida, colocando em risco o bem-estar de futuras gerações. A ausência de contribuições contínuas e regulares pode resultar em um déficit previdenciário extremamente significativo, forçando o Estado a adotar medidas de austeridade que podem prejudicar ainda mais os trabalhadores e a economia como um todo.

O processo de uberização também levanta questões sobre a dignidade e a valorização do trabalho. Em muitos casos, os trabalhadores de plataformas digitais recebem remuneração abaixo do salário-mínimo, não têm acesso a benefícios básicos e são expostos a condições de trabalho perigosas e insalubres.

Essa desvalorização do trabalho humano é contrária aos cânones de justiça e equidade que fundamentam a lógica da previdência social. A falta de regulamentação adequada e a exploração dos trabalhadores pela lógica do lucro máximo das plataformas criam um ambiente de trabalho hostil e insustentável, onde os direitos humanos básicos são frequentemente violados.

Portanto, a previdência social é um pilar essencial para a segurança e a dignidade dos trabalhadores, oferecendo uma rede de proteção contra as incertezas econômicas e os riscos da vida. A uberização do trabalho, ao afastar-se dos modelos tradicionais de emprego formal, impõe sérios desafios a essa estrutura, enfraquecendo a rede de segurança que sustenta milhões de trabalhadores.

Reconhecer a importância da previdência social e enfrentar as implicações desse novo modelo de trabalho é crucial para garantir uma proteção social justa e eficaz em um mundo cada vez mais digitalizado.

 

•           Na contramão da regulação do trabalho. Por Renan Bernardi Kalil

Em março, o Projeto de Lei Complementar 12/2024 (PLP 12/2024) foi enviado para o Congresso Nacional com o objetivo de regular o trabalho dos motoristas que atuam por meio de plataformas digitais. À época, apontamos os seus principais problemas: a equivocada caracterização das plataformas digitais como intermediárias, a insuficiência na definição do trabalho autônomo e vedação do reconhecimento da relação de emprego mesmo quando presentes elementos de controle do trabalho.

Após meses de intensos debates em diversos espaços, incluindo audiências públicas e seminários realizados pela Câmara dos Deputados, um substitutivo ao PLP 12/2024 foi divulgado recentemente. Não apenas os antigos problemas permaneceram, como novos foram criados.

O principal se refere ao descanso. A Constituição prevê que se trata de um direito do trabalhador. Porém, o substitutivo subverte a lógica que justifica reconhecer o repouso para o trabalhador e o coloca como um dever. Sim, para o motorista que trabalha por meio de plataformas digitais, o descanso será um dever.

Concebido como mecanismo de proteção ao trabalhador, o descanso é um dos instrumentos que limita a quantidade de horas que uma pessoa pode prestar serviços para outra. Dessa forma, busca-se fazer com que o beneficiário das atividades realizadas pelo trabalhador assegure um período mínimo para recomposição das energias entre o fim de uma jornada e o começo da outra.

Caracterizar o descanso como dever joga água no moinho da transferência das responsabilidades apenas para os trabalhadores em uma relação fortemente desigual. Colocar nas costas dos motoristas a obrigação de controlar o seu próprio descanso em um contexto no qual não decidem o preço do seu trabalho e são punidos por não aceitarem uma quantidade mínima de corridas ou por cancelarem viagens apenas reforça a discrepância de poderes entre trabalhadores e plataformas.

O art. 4º do substitutivo diz que dentro de um período de 24 horas, o motorista tem a obrigação de repousar por pelo menos 11 horas, devendo ficar desconectado de todas as plataformas. É oferecida a possibilidade de fracionamento desse intervalo de 11 horas, desde que garantido o mínimo de 6 horas ininterruptas de descanso.

Em relação aos períodos de descanso, percebemos que, diante da necessidade de encontrar referências, busca-se o socorro na lei trabalhista. Não é à toa que o art. 4º traz os limites já previstos nos artigos 66 e 235-C da CLT. Contudo, uma exígua responsabilidade é atribuída às plataformas digitais na observância desses parâmetros.

O art. 5º estabelece as punições para o descumprimento do dever de descansar. O motorista pode ser suspenso de todas as plataformas que tiver cadastro e ficar impedido de ingressar em novas plataformas por 30 dias. Em caso de repetição desse descumprimento, a punição é aplicada em dobro. Essas penalidades serão impostas após a lavratura de auto de infração por órgão de fiscalização do Poder Executivo.

Aqui, manifesta-se um dos lados perversos de caracterizar o descanso como dever: o não cumprimento, por parte do motorista, impede-o de trabalhar e sujeita-o a receber multa. Em outras palavras, o trabalhador é colocado em uma condição de algoz de si mesmo no âmbito de uma relação assimétrica na qual sua autonomia é extremamente reduzida.

Ao mesmo tempo que debatemos o PLP 12/2024, o restante do mundo também discute a regulação do trabalho via plataformas digitais. Em abril, o Parlamento Europeu aprovou uma diretiva sobre o tema. O texto prevê regras para combater a classificação fraudulenta dos trabalhadores como autônomos: foi estabelecida uma presunção legal de que a relação entre uma plataforma e um trabalhador é uma relação de trabalho quando se identifiquem elementos de controle e direção da atividade. Caso a plataforma queira refutar essa presunção, cabe a ela demonstrar que a relação é de outra natureza.

Ou seja, enquanto debatemos como proibir de forma absoluta a possibilidade de reconhecer uma relação de emprego e transformamos direitos em deveres, a Europa discute como oferecer proteção social aos trabalhadores a partir da análise do que ocorre no mundo dos fatos. Se o Brasil quiser sair da contramão da regulação do trabalho via plataformas digitais, é necessária uma alteração de rota urgente.

 

Fonte: Por Pedro Henrique M. Aniceto, em A Terra é Redonda

 

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