Cristiano
Addário de Abreu: ‘Narrativa fantasmagórica’
Há
um debate nas redes sociais suscitado por uma entrevista de Vladimir Safatle
que afirma que a “esquerda morreu”. Tal afirmação, conforme se escuta a fala do
professor, vai se cristalizando num argumento retórico inicial, cuja estratégia
seria chamar a esquerda como um todo para uma reflexão “refundadora” dela:
quase ambicionando fazer um reset geral, em uma situação que
ele vê como de derrota total, tanto das bases como das táticas e estratégias,
no horizonte até hoje compartilhado por este campo político.
O
assunto é evidentemente por demais ambicioso, e por mais que argumentos
retóricos possam ser revitalizantes no debate público, em busca de polêmicas
gerais, confesso um incômodo com a estratégia ali lançada, não alcançando
convencimento real, após ouvir as argumentações do professor.
É
curioso como há tanta verborragia para criticar “a esquerda”, mas não há a
mesma sanha crítica contra esse “novo”, e crescente, campo da direita… Ou “nova
direita”. Confesso não concordar com a velha argumentação de que “a esquerda se
compromete, então pode ser cobrada”, diferentemente da direita… Tal double
standard em políticanão colabora para uma melhor leitura da realidade,
ao contrário: piora a compreensão, e piora os problemas.
Para
entender o que ocorre com a esquerda é preciso olhar o quadro geral. A esquerda
morreu? E a direita: o que ficou dela? Lembremos que o partido que no Brasil
hegemonizou a liderança política da direita nacional, desde os anos 1990, foi o
PSDB: partido oriundo do PMDB, oposicionista ao regime militar, com pontes na
universidade, além de vias expressas com a mídia oligopólica coorporativa. As
reincidentes derrotas do PSDB em retornar ao Palácio do Alvorada desde 2002,
culminou na indigestão política da campanha do Aécio Neves, neto de Tancredo
Neves, e cuja recusa mimada do “Neves Neto” em reconhecer a derrota eleitoral
de 2014, atirou o Brasil no precipício golpista, encerrando a “Nova República”
organizada desde 1985.
Toda
a tragédia é bastante conhecida, com a operação Lava jato destruindo as
empresas nacionais de forma neocolonial, sob orientação do departamento de
Justiça dos EUA, com o coro anti-industrialização da mídia oligopólica
apoiando, com toda uma campanha de destruição política/institucional/industrial
do Brasil. Mas ao final dessa verdadeira guerra civil contra os governos do PT,
o que resultou? O PT foi o partido que, isoladamente, fez a maior bancada em
2022, além do presidente! E o PSDB: foi o partido que morreu neste processo
golpista iniciado em 2013/2014.
Logo,
muito cuidado com as decretações de falecimento.
Quem
morreu, no Brasil, e cada vez mais no mundo, é a antiga direita dita
civilizada, caindo as fantasias e escancarando uma extrema direita
internacional, conservadora em costumes, mas histericamente neoliberal em
economia. O que difere do fascismo “clássico”: há nessa “nova extrema direita”
um direcionamento externo unificado. Logo, nisso esse neofascismo difere do
nacionalismo das experiencias dos anos 1920/1930: pois já é uma Internacional
fascista.
No
caso brasileiro, abrindo caminho para este fenômeno neofascista, quem morreu,
no Brasil, foi o antigo tucanato, o PSDB, e a direita que restou da eutanásia
tucana é uma direita antipolítica: golpista em tudo, contrária ao diálogo e ao
debate, à leitura e ao direito. No limite, contrária até mesmo à Política, que
é a arte de contrapor discordâncias, princípios e interesses (o interesse é
legítimo!), e que ao longo destas contraposições na Pólis constrói o acordo
possível. O que na cultura política dos EUA chamam de compromise:
as partes cedem em pontos secundários e acordam num centro amplo. Isso é
política! Poder negociar os projetos discordantes, criando um resultado de
equilíbrio geral temporário. Que não é nunca um resultado perfeito para as
partes, mas que responde aos anseios principais dos grupos mais
representativos.
Mas
o que se encaminha é a impossibilitação de qualquer acordo, com essa
impossibilitação da política. Pois a direita que restou, após a Guerra Civil de
destruição do Brasil, iniciada em 2013, é quase elogiada pelo professor
Safatle, que vê coerência nela (diz ele: “ela entrega o que diz que
entregará…”), nessa que é uma direita antipolítica, bem diferente de quando
representantes da direita eram figuras como Jarbas Passarinho, ou mesmo um
Magalhães Pinto…
Mas
o que emerge no campo político da direita atual é um festival pornográfico de
bestialidade, com o privado tomando conta do público, o individual do coletivo,
com o absurdo sendo usado de forma espetaculosa para desqualificar tudo o que é
público, tudo o que é político, e celebrar de forma celerada e desonesta o
ultraliberalismo econômico a qualquer custo. A fala é rebaixada e a violência
erotizada sempre por essa “nova direita”, resultado de adultos infantilizados.
A
pauta, nada escondida, da antipolítica dessa extrema direita é guiada pela
agenda única do ultraliberalismo à la TINA (there is no
alternative), que mata e castra qualquer política, que é a arte de
contrapor interesses, gerando no atrito novos resultados: mas como qualquer
outro caminho está proibido pelos adeptos das seitas
antipolíticas/ultraliberais (em economia) dessa “nova” extrema direita, a
política foi assim assassinada!
Como
não pode haver outro caminho, na verdade, não pode haver política: que é a arte
da negociação de interesses, usando as fendas das contradições nos conflitos
para cavar, sim, novas alternativas coletivas!!!
Óbvio
está que essa “nova direita”, nova (sic) extrema direita, são roupas novas para
o dogma neoliberal: a neoescolástica do neoliberalismo é uma dogmática
anticientífica, pois vive num dedutivismo pseudo-lógico que nega a história e
os fatos, as experiências e os eventos. Logo, não é científica uma tal visão
econômica, pois a ciência precisa balizar o dedutivismo com o indutivismo, os
fatos históricos e o empirismo, junto com as deduções lógicas. E não defender a
sacralidade de velhas deduções lógicas petrificadas. Esse dogmatismo da
escolástica neoliberal nega os fatos e a realidade: é o negacionismo histórico
militante, que grita que se os fatos negam suas teorias, que se explodam os
fatos históricos.
Essa
direita é negacionista histórica, (logo) negacionista científica, e assim ela
emerge, orwellianamente, como um resultado político negacionista da própria
política.
- Que direita vive e que esquerda morreu?
O
mundo entrou num período de crise sistêmica, de transição sistêmica entre o ciclo
de acumulação capitalista norte-americano para um ciclo de acumulação
capitalista (???) chinês (Giovanni Arrighi). Usa-se aqui a obra do pensador
italiano como base deste texto: em sua obra fulcral, O longo século XX,
Giovanni Arrighi constrói um arrebatador trabalho histórico/analítico de
interpretação do capitalismo histórico.
O
uso sintetizado de Giovanni Arrighi aqui é feito não para tratar de seu
trabalho imenso, mas para desenhar o pano de fundo geral deste quadro de “morte
da esquerda” que o presente artigo trata. Pois o que o mundo vive nesta
terceira década do século XXI é uma crise sistêmica que ameaça culminar numa
guerra generalizada: como costumam ser as guerras de transição sistêmica entre
os ciclos de acumulação capitalista: uma “guerra de 30 anos” emerge no
horizonte histórico do atual conflito hegemônico entre EUA e China.
Como
foi a transição do “ciclo genovês” para o “ciclo holandês”, com a Guerra dos 30
anos “original” (1618-1648), encerrada no Tratado de Westphalia (1648), que deu
origem ao mundo de soberanias políticas estatais, equilíbrio diplomático, e
liberdades religiosas submetidas à soberania dos Estados: os Estados tinham
soberania para impor sua religião nos seus territórios.
Todo
este edifício westfaliano compõe os alicerces políticos das soberanias
nacionais que compuseram o mundo político como conhecemos pós Tratado de
Westphalia (1648), assim como após as guerras napoleônicas que geraram uma
relativa paz de 100 anos no quadro estritamente europeu, e tal tradição
westfaliana também está na raiz das instituições do pós-Segunda Guerra, como
ONU, Bretton Woods, que criaram as vias diplomáticas após a “guerra dos 30
anos” (1914-1945) entre Alemanha e EUA no século XX. Sendo esta tradição
westfaliana o caminho da valorização da política e da diplomacia, da negociação
e do equilíbrio, logo, da multipolaridade.
Nesta
“nova guerra de 30 anos” que emerge no horizonte histórico, há o caminho
imperial dos EUA, da OTAN, e seus aliados, desenhando algo análogo no séc. XXI
ao o que a Espanha tentou nos séculos XVI/XVII: a saída imperial.
E
há a solução westphaliana, política, diversa e plural, nos obrigando a dialogar
com soluções políticas que muitas vezes discordamos, mas que existem pelo
planeta, com as diversas faces das lideranças locais e regionais emergindo no
palco da história central, sempre disputada.
Obviamente
que a solução aqui chamada de westphaliana é a solução que valoriza o diálogo
político e a própria Política: logicamente com discordâncias, é preciso
dialogar e achar compromises possíveis no horizonte.
Recolocando assim a história no centro, com os Estados como base gestoras dos
povos, assim como dos capitais e dos mercados.
Mas
o que ocorre no quadro político mundial é um verdadeiro assassinato da Política
para a entronização da “solução” imperial: uma ONU completamente esvaziada, num
mundo de “soberanias nacionais” rebaixadas (modelo levado ao cúmulo pela União
Europeia), com os Estados engessados sob a doutrina TINA, submetidos aos mega
conglomerados financeiros do capitalismo monopolista (Big Tech à
frente).
Logo,
“a morte da esquerda”, neste quadro, é sinal de uma morte maior: é a morte da
própria política, dentro de um sistema mundo que caminha celeremente para um
totalitário capitalismo monopolista, sobretudo sob o domínio naturalizado
das Big Tech, com seu hipercapitalismo das plataformas
monopolistas/monopsônicas.
Sob
o impacto da segunda revolução industrial, os países retardatários usaram dos
mecanismos das empresas estatais para alcançarem soberania em áreas
estratégicas da indústria de base e de energia (México de Cárdenas, Brasil de
Vargas…), e assim salvarem sua independência. Já faz tempo que a revolução
digital nos impõe uma solução análoga: sobretudo pelo controle comunicacional
que ela impõe aos povos: ser de esquerda é defender abertamente a solução de
estatais em áreas estratégicas, como é cada vez mais o realíssimo mundo
digital.
Inclusive,
sobre a “liberdade de expressão” nas plataformas do capital monopólico
concentrado no Vale do Silício, o tão propalado sucesso dos produtores de
conteúdo da extrema direita nas redes, obviamente, não é um acaso, não é mérito
do talento deles: tais plataformas digitais usam seus escondidos algoritmos
para alavancarem os propagadores da agenda dessa extrema direita: isso é cada
vez mais perceptível.
Mas
o público em geral naturaliza tais plataformas comunicacionais, e confunde (são
induzidos a confundir) os conceitos: tais plataformas, associadas ao Estado dos
EUA (na China suas empresas lá estão associadas ao seu Estado), pois no caso de
Europa e América Latina, estamos completamente sob controle comunicacional
das BIG Tech dos EUA, que já são meios de utilidade pública no
mundo atual, e que assim precisam, não apenas de regulação, mas de contrapartes
nacionais: só haverá saída para os países que criem algumas plataformas
digitais próprias.
A
realidade virtual já compõe grande parte do mundo econômico e social, mas estão
fora dos controles sociais e políticos dos países latino-americanos e europeus:
só respondendo ao Congresso dos EUA. Ou os países criam algum leque de
plataformas digitais, ou perderão soberania.
Mas
para fazer isso a esquerda precisa invocar, e positivizar, uma entidade
esquecida (propositadamente), mas que cerca todos os problemas (e soluções)
invocados pelos povos, uma entidade recalcada pela “esquerda race and
gender”, pelos “modernos”, mas que ronda a esquerda como o fantasma
invocado por Marx e Engels em torno da Europa em 1848: a entidade Estado.
- Ressuscitar a política, e a esquerda, é ressuscitar o
Estado-nação
A
tão “viva” extrema direita cresce porque fala em nacionalismo! Mesmo sendo ela
totalmente neoliberal em economia (vide Meloni na Itália, para não falar de
Tarcísio em SP, ou Milei na Argentina). A esquerda precisa voltar a falar alto
em estado, em estatais, para propor uma real solução aos problemas deste
capitalismo monopolista das plataformas. O quadro histórico que se ergue no
horizonte clama e exige mais e mais Estado, à revelia dos dogmas liberalóides,
o vento da história impõe a solução Estado, para todo o cenário que emerge
hoje: crise e catástrofes climáticas, guerras se alastrando, cibersegurança,
soberania comunicacional, soberania energética, soberania alimentar….
A
extrema direita no século XXI, por mais que arrote defender “o nacionalismo”,
“os valores nacionais”, e toda verborragia nacional, ela é de fato
completamente colonial/internacionalista em economia. Mas só a fala (mentirosa)
dela, de defesa da nação já lhes dá voto. Logo, ser de esquerda no século XXI,
exige assumir uma fala aberta de fortalecimento de estruturas do Estado-nação,
defesa de estatais estratégicas, e de um nacionalismo econômico, em defesa de
empregos e indústrias. Inclusive para que a entidade Estado possa reverter e
minimizar as causas e efeitos da crise climática: esta crise internacional
crônica, até ela, exige maior presença e soberania dos Estados nacionais na
ação contra ela.
A
esquerda precisa roubar o nacionalismo (fake) da direita, e defendendo
um nacionalismo estatista, intervencionista, regulador, da economia e seus
monopólios. Recuperando o poder de fazer políticas públicas dos Estados,
políticas industriais dos Estados e assim recuperando a política para os povos.
Já
ensinou Clausewitz que a guerra é a política por outros meios, pois o que se
desenha no mundo é um bloco do capital monopolista central decidido a fazer a
guerra a qualquer custo contra as forças em ascensão. Por isso tais forças
monopolistas buscam exilar a política do planeta: para imporem o caminho da
guerra sobre um mundo sob o totalitarismo neoliberal. Ou a humanidade resgata o
fazer político, ou cairá no precipício da guerra, que caminha para ser uma
guerra total. A morte da política, imposta pelo neoliberalismo inquestionável,
é o beco impositivo levando o mundo para a guerra total. O silenciamento da
política, imposto cada vez mais aos povos do mundo, é o grito de guerra do
imperialismo.
Fonte:
A Terra é Redonda
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