quinta-feira, 4 de julho de 2024

A Grã-Bretanha está quebrada. Será que alguém pode consertá-la?

Há um buraco no topo da cabeça de Rishi Sunak. Roger Bairstow enfia o dedo indicador dentro, pressiona a palma em torno das orelhas do primeiro-ministro e bate com força na mesa.

“Tem acontecido sem parar”, exclama ele com um sorriso travesso. “Tem sido só vai, vai, vai: um primeiro-ministro após o outro”.

Ao lado de Sunak, há outras quatro figuras de argila, cada uma com cerca de doze centímetros de altura, cada uma destronada pela pessoa à sua direita. “A gangue”, Bairstow os chama: Liz Truss, Boris Johnson, Theresa May e David Cameron. Ele esculpiu cada uma à mão.

Bairstow é ceramista desde os 14 anos, nascido e criado em Stoke-on-Trent, a cidade que construiu a indústria de cerâmica da Grã-Bretanha. Ele faz jarros retratando líderes britânicos desde 1997, quando, em uma feira, sentiu um súbito desejo de satirizar as orelhas de Tony Blair.

O chão de sua oficina, coberto de tinta seca, estala sob os pés. “Você tem que ser muito cuidadoso ao manusear argila”, diz Bairstow, agora sério, apontando para o forno onde seus líderes são queimados a 1.215 graus Celsius. “Um movimento errado e… pfft”. Ele bate as mãos para dar ênfase. Mas o trabalho nunca foi tão exigente, porque em Londres, líder após líder sucumbiu ao calor.

O Partido Conservador governou o Reino Unido por 14 anos tumultuados, depôs seu próprio primeiro-ministro quatro vezes no processo. Passou de uma ideologia para outra e de um escândalo para o próximo, transformando indelevelmente o país enquanto se fixava em uma guerra interna interminável.

Sunak entrou em Downing Street em outubro de 2022, quando o governo de Truss implodiu após apenas seis semanas; a tinta de Bairstow mal havia secado em sua figura de cerâmica quando ela renunciou.

E talvez nenhuma cidade tenha convulsionado mais violentamente com as consequências do projeto de 14 anos dos conservadores do que Stoke-on-Trent.

Seis cidades federadas – também conhecidas como as Potteries (Olarias, na tradução livre) – perderam bibliotecas, programas de assistência infantil e centros comunitários quando o programa de austeridade de Cameron começou a morder no início dos anos 2010.

Elas votaram esmagadoramente pelo Brexit em 2016, quando Johnson convenceu o país a trilhar um caminho longe da Europa. E romperam com décadas de tradição em 2019, abandonando o Partido Trabalhista em uma eleição que Johnson venceu com uma vitória monumental.

O que a cidade recebeu de volta? “Está uma bagunça”, diz Bairstow, um eleitor conservador de longa data, sobre sua cidade. “Não temos caráter”.

O declínio de Stoke não foi revertido. Suas ruas comerciais estão vazias, seus salários são baixos, seus serviços públicos enfrentam dificuldade e chaminés de antigas fábricas em ruínas pontilham seu horizonte. É a Grã-Bretanha em miniatura; desiludida, mas continuando em frente, desesperada por mudança, mas duvidosa de que alguém possa entregá-la.

Stoke, e o resto do campo de batalha político do “Muro Vermelho” que atravessa a região das Midlands e o Norte da Inglaterra, está pronto para encerrar a era conservadora na quinta-feira (4); as previsões indicam que seus eleitores abandonarão os conservadores nas eleições gerais, devolvendo o Partido Trabalhista ao poder com uma vitória potencialmente monumental.

Mas Stoke está, para usar o jargão, exausta; o ceticismo é a moeda. As pesquisas preveem uma mudança épica na quinta-feira. A maioria das pessoas em Stoke se pergunta se algo realmente vai mudar.

·        Um legado doloroso

Todos parecem lembrar de um tempo melhor nas Potteries. Bairstow recorda com um brilho nos olhos a viagem para a fábrica de seu pai nos anos 1950, quando sua cidade de Hanley era movimentada.

“Havia uma fábrica em cada esquina”, diz ele. Ele sente falta disso; Bairstow tinha 6 anos quando se apaixonou pela cerâmica. “Sempre esteve lá”, diz ele. “Sempre”.

As cidades de Stoke-on-Trent – Hanley, Burslem, Tunstall, Longton, Fenton e Stoke – encontraram fortuna sob seus pés dois séculos antes, na forma de argila e carvão. Foi uma “combinação geológica notável”, explica Tristram Hunt, diretor do Museu V&A de Londres, que foi deputado trabalhista de Stoke Central entre 2010 e 2017.

Mas a era pós-industrial tem sido dura. Os trabalhadores das “Pits n’ Pots” sentiram-se alvo de Margaret Thatcher e ignorados por Tony Blair. E desde 2010, a austeridade – um programa severo de corte de custos supervisionado por Cameron, destinado a reduzir os déficits orçamentários – tem corroído os alicerces de Stoke.

A prefeitura de Stoke quase faliu este ano. Os serviços de ônibus foram cortados. Aumentou o número de moradores de rua. Centros comunitários foram fechados. Quase quatro em cada dez crianças vivem na pobreza. Ambulâncias muitas vezes demoram horas para chegar, depois voltam a um hospital que tem lutado com falta de pessoal.

Um trem de alta velocidade deveria conectar esta parte do país aos seus centros econômicos. Levou tempo, custou dinheiro, causou discussões e, no final, nunca aconteceu.

“O país está ferrado agora, basicamente”, diz Mark Gibney, 40, que já teve uma loja de roupas para bebês, mas agora trabalha em um pub. Ele passa todos os dias pelo antigo ponto de venda de sua loja, agora com as janelas tapadas. Ele olha para sua filha. “Como será quando ela tiver a minha idade?”

As cidades do Reino Unido precisam urgentemente de um impulso. O governo de Johnson, distanciando-se da política de austeridade, desviou fundos dos principais centros como parte de sua promessa muito anunciada de “nivelar” o país. Stoke, um campo de batalha eleitoral, foi um teste decisivo para o esquema.

Mas até mesmo a ex-deputada conservadora representante da cidade admite que o projeto ficou aquém das expectativas impossivelmente altas que criou.

“Uma enorme quantidade de dinheiro entrou na cidade, mas as pessoas não veem isso (porque) elas chegam no centro da cidade e ainda há pessoas sem-teto”, diz Jo Gideon, que ganhou Stoke Central para os conservadores em 2019, mas não foi selecionada para disputar novamente.

As promessas de financiamento, ela diz, fracassam quando as pessoas “não conseguem uma consulta médica, ou os buracos não foram consertados, ou os trens não chegam na hora”.

Gideon se chama de “deputada acidental” – sua vitória em Stoke em 2019 desafiou as expectativas e um século de evidências de que a cidade votaria no Partido Trabalhista. Mas ela diz que seu partido rapidamente se perdeu. “A política é vencida no centro – por que estamos cedendo esse espaço ao Partido Trabalhista?”

A constante troca de promessas, políticas e líderes deixou uma ferida. “A confiança se foi”, diz Gibney. “Todo mundo diz uma coisa e faz exatamente o oposto”. A fé na política está em um nível recorde de baixa na Grã-Bretanha, de acordo com a pesquisa de Atitudes Sociais Britânicas.

Alguns em Stoke apontam um momento específico em que perderam a fé no governo – as promessas não cumpridas do Brexit; a enxurrada de escândalos de corrupção; a saga do “Partygate” durante a pandemia que destruiu o governo de Johnson; o catastrófico experimento econômico de Truss. Mas, para a maioria, a desconfiança cresceu lentamente, como o ruído da rua que invade um sonho.

Gibney tem outras preocupações, de qualquer forma. “Desde sexta-feira (29), tivemos uma pessoa que pulou do telhado do pub na rua, tivemos um carro em chamas na rua onde moro e, esta manhã, tivemos uma batida policial por drogas”, diz ele. “Eu adoraria que existisse uma caixinha na parte inferior da cédula onde dissesse: ‘sem confiança’”.

·        Uma cidade “destruída”

A tinta está descascando na Hope Street. Há quinze anos, nesta rua em Hanley, você podia consertar sua bicicleta, afinar sua guitarra e pegar uma comida para levar sem passar por outra fachada de loja. Todos esses negócios, e mais, se foram agora.

Há muitos culpados: compras online, salários que não acompanharam a inflação, contas domésticas mais altas. Stoke tem a maior taxa de domicílios em pobreza energética do país, o que significa que sua renda após pagar pela energia ficará abaixo da linha da pobreza, de acordo com a National Energy Action. As rendas aqui cresceram apenas 0,7% ao ano, em média, entre 2010 e 2021 – muito atrás do crescimento anual de 1,2% que viram entre 1998 e 2010.

No topo da rua, Paul Ray anda inquieto. Ele culpa outro mal. “O pó destruiu a cidade”, diz ele. “Mudou o jogo das drogas, mudou a cidade, mudou tudo”.

Stoke é a capital relutante do “pó de macaco”, uma nova e perigosa droga sintética que as autoridades têm lutado para controlar. Ray, de 30 anos, diz que ela deixa as pessoas “subindo em prédios, se esfaqueando, perdendo a cabeça”.

Ele diz que sua própria vida foi desviada por um vício no pó. Ray acabou de sair da prisão por um crime com armas de fogo e está esperando fora de um centro de tratamento de drogas. Ele tem alternado entre as delegacias de polícia, hospitais e o submundo das drogas de Stoke por anos; ele planeja ficar na cidade para ficar sóbrio. Mas Stoke precisa de ajuda, ele diz, e tudo o que ele viu foi drama.

“Votei nos conservadores nas últimas vezes. Agora, não sei por que estou me incomodando com isso… Tem sido como uma porta giratória”.

Os políticos “escolhem para onde vai o dinheiro e em quais serviços o dinheiro é investido”, diz ele. “Habitação é um problema, então você comete crimes, depois drogas… É como um triângulo de fogo; se você tirar um desses (problemas), poderia resolver tudo”.

·        Uma nova era

Gareth Snell entende a escala do problema. “Eu costumava achar, como deputado, que Stoke estaria no topo das listas de coisas nas quais você não queria estar no topo, e no fim das listas de coisas nas quais você não queria estar no fim”, diz ele.

Ele está concorrendo para retornar como deputado trabalhista de Stoke Central, após perder para Gideon em 2019. Naquela noite, comentaristas falaram de uma década de governo conservador sob a liderança de Johnson. Eles se perguntaram quando, se é que algum dia, as cidades do Muro Vermelho, como Stoke, voltariam ao Partido Trabalhista. O pedido da CNN para entrevistar o candidato conservador, Chandra Kanneganti, foi recusado.

Politicamente, o Partido Trabalhista está amplamente transformado agora, arrastado para o centro pelo líder Keir Starmer. Eles estão, por todas as previsões, à beira de uma vitória monumental; até a maioria dentro da campanha conservadora admite em privado que o jogo acabou.

Mas a escala da oferta do Partido Trabalhista para reviver os serviços públicos da Grã-Bretanha é modesta. O Instituto de Estudos Fiscais, não partidário, diz que suas promessas de gastos públicos são “pequenas, quase triviais”. Acrescenta que “entregar mudanças genuínas quase certamente também exigirá colocar recursos reais na mesa”.

“As pessoas com quem estou falando”, responde Snell, “não estão lendo relatórios do IEF. Qualquer manifesto sempre poderia ser mais ousado, mas a realidade é que não sabemos o que estamos herdando financeiramente”, acrescenta. “Não há um pote infinito de dinheiro que podemos magicamente fazer aparecer da noite para o dia”.

Ele insiste que pressionará pelo financiamento que Stoke precisa – “Você pode dizer não uma vez, mas vou continuar voltando” – mas ele não estará sozinho.

·        “Estou sempre lutando”

Na cidade ao lado, June Cartwright não está esperando. Todos em Burslem conhecem Cartwright, uma organizadora comunitária de 80 anos que trabalhou contra a corrente para melhorar sua cidade natal. “Costumávamos ter centros comunitários, não temos nada parecido (agora). Nenhuma biblioteca. Era uma cidade tão movimentada”, diz ela.

Cartwright personifica o único serviço público cada vez mais disponível aqui: uma determinação e boa vontade entre vizinhos.

“Estou sempre lutando”, ela acrescenta, com a energia que lhe resta. A luta começou em 2011. “O conselho decidiu que não financiaria uma árvore de Natal para nós. E o filho pequeno do meu amigo disse: O Natal não vai vir para Burslem?”, ela recorda.

Cartwright arrecadou alguns milhares de libras e organizou um festival de Natal. No ano seguinte, também houve festas de verão e um grupo comunitário completo. Mas a chamada Rainha de Burslem está tentando se aposentar, se o telefone parar de tocar. “Desculpe, não pude fazer mais”, ela diz.

Em Hanley, Anna Francis – 40 anos mais jovem que Cartwright – está pegando o bastão. Há uma década, Francis comprou uma casa no degradado bairro de Portland Street em Hanley por £1 (cerca de R$ 7), como parte de uma iniciativa da prefeitura para melhorar o bairro, que exigia que os compradores renovassem sua propriedade e se envolvessem na comunidade.

Houve interações tensas, no início, com seus novos vizinhos. “Alguns da comunidade existente estavam realmente irritados; (eles) diziam: ‘você não é bem-vinda’”.

Mas o esquema funcionou em grande parte. “A casa ao lado era uma casa fechada, a da frente tinha pegado fogo e não tinha telhado, e a ao lado dessa estava vazia… todas essas desde então foram renovadas”, diz Francis.

Francis conseguiu financiamento para transformar um pub desativado em um espaço comunitário local. Enquanto ele é renovado, seu grupo comunitário realiza oficinas de cerâmica em um contêiner do outro lado da rua.

Neste dia, e todas as terças-feiras, enquanto o sol de verão se põe, mães locais estão fazendo figuras de pombos de barro. Seus filhos lutam boxe e jogam futebol do lado de fora.

“Algumas pessoas chamam (os pombos) de companheiros realmente brilhantes, e outras os chamam de ratos voadores”, diz Francis. “Há uma maneira dupla de olhar para o nosso bairro também, e estamos tentando virar isso para ver a história positiva”.

Pode não parecer o trabalho que Roger Bairstow tem feito desde os 14 anos. Mas esta é a tradição de cerâmica secular de Stoke levada para um futuro incerto.

À medida que o abismo emocional entre Stoke e Westminster se torna impossivelmente amplo, a cidade tem se tornado dependente de pessoas como Cartwright e Francis. Ambas dizem que seus vizinhos precisam de apoio, e elas não podem fornecer tudo. Mas, por enquanto, estão fazendo algo com muito pouco.

“Stoke é uma cidade realmente criativa”, diz Francis; sua história consiste em “pessoas que reconheceriam os recursos do lugar”. Séculos atrás, isso significava “tirar argila do chão e transformá-la em algo bonito, e depois queimá-la”, diz ela.

“Hoje, é um conjunto diferente de questões e recursos. Mas ainda é a mesma ética

 

Fonte: CNN Brasil

 

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