Está
escrito: como as Escrituras influenciam o conflito em Gaza?
Com
quase nove meses de duração, o conflito em Gaza é atravessado por inúmeros
discursos: político, étnico, histórico e religioso.
Este
último foi tema do episódio desta quarta-feira (3) do Mundioka, podcast da
Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.
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A religião é um fator no conflito em Gaza?
A
própria deflagração do conflito teve justificativa religiosa. Os ataques
lançados pelo Hamas em 7 de outubro foram denominados pela organização
palestina como operação Dilúvio Al-Aqsa, em referência à mesquita de mesmo nome
que ocupa um espaço sagrado para os muçulmanos e está no centro do local onde
foram os templos sagrados do Judaísmo.
Mansur
Peixoto, criador do canal História Islâmica, detalha que embora o conflito em
Gaza não tenha origem puramente religiosa, as três religiões abraâmicas
teorizam o embate de forma escatológica.
"O
maior número de sionistas no mundo atualmente não são judeus", diz
Peixoto, "são cristãos evangélicos […] que acreditam que Gaza precisa ser
destruída. A Jordânia precisa ser anexada e a Mesquita de Al-Aqsa precisa ser
demolida para que Jesus possa retornar".
Por
outro lado, "a comunidade judaica acredita que a Mesquita de Al-Aqsa
precisa ser destruída, mas não para o retorno de Jesus […], e sim para o
advento do Messias, o grande Messias judeu, que segundo eles não é Jesus Cristo
e ainda não veio e que irá governar o mundo em nome de Israel".
Esse
discurso, ressalta Peixoto, é inclusive cooptado por políticos israelenses como
forma de justificar suas ações em Gaza.
O
primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, comparou a população civil de
Gaza "que ele já está massacrando […], seja de bombardeamentos, fome, sede
ou doenças aos antigos amalequitas da Bíblia".
Segundo
a tradição judaica, "Deus ordena ao rei Saul que vá e mate todos os
amalequitas. Não deixe vivo nem os animais amalequitas". A ordem, contudo,
não foi levada a cabo por Saul, que é substituído por Davi "que, de acordo
com a Bíblia, é quem deu cabo do plano de limpeza étnica da religião".
"E
essas passagens são invocadas constantemente pelo atual primeiro-ministro de
Israel."
Para
Peixoto, no entanto, esse uso do discurso é uma forma de descaracterizar as
profecias religiosas, uma vez que as tornam "autorrealizáveis".
"O que é uma profecia autorrealizável? É o que a gente vê, por exemplo,
sendo feito ali na região da Palestina, onde pessoas não estão esperando a
profecia acontecer, mas estão tentando causar a profecia."
É
quando, por exemplo, "a Liga Cristã Mundial estabelece que o
reconhecimento de Jerusalém como capital indivisível do Estado de Israel é
fundamental para o retorno de Jesus Cristo", algo levado em consideração
por políticos que cortejam esse eleitorado, como Jair Bolsonaro, Donald Trump e
Javier Milei.
De
acordo com a doutora em psicologia e rabina Kelita Cohen, ordenada pelo
Rabínico Reformista da Argentina, é preciso sempre se atentar para as múltiplas
interpretações de um texto, até mesmo os sacros.
"É
o texto que está errado ou é a interpretação do leitor do texto? E a
intencionalidade de quem lê? Quem lê tem uma intenção de construir ou de
destruir?", questiona.
Os
judeus e os árabes clamam a descendência de personagens bíblicos, lembra Cohen.
Os primeiros dizem ter origem em Isaque, filho prometido por Deus a Abraão. Já
os últimos se dizem vinculados à linhagem de Ismael, o filho rejeitado.
Há
quem leia o texto e veja nessa rivalidade a origem das discordâncias entre os
dois povos. No entanto, segundo as escrituras, os dois irmãos se reencontraram
na hora de sepultar o pai.
"Então
os dois irmãos estavam juntos. Eles compartilhavam a mesma dor, possivelmente
se apoiaram, choraram juntos naquele momento de dor."
"Então
se uma pessoa, se a pessoa se apega ao texto bíblico para dizer que a
rivalidade está desde o princípio, eu posso dizer: 'Olha, no final não precisa
de rivalidade. Eles fizeram as pazes.'"
Essa
exemplificação, de como até mesmo as escrituras podem ser lidas de maneiras
diferentes, evidenciam que "os problemas de hoje derivam de problemas
antigos".
"Os
problemas de hoje derivam dos problemas que estão acontecendo hoje. Claro que
tem um processo histórico para acontecer, mas eles não estão vinculados àqueles
fenômenos lá descritos na narrativa bíblica em tempos da Antiguidade."
Para
Cohen, o fundamento religioso está sendo usado para justificar e legitimar uma
briga.
"Quem
quer brigar vai brigar. Vai brigar e vai encontrar fundamentos onde estiverem
mais à mão."
¨
Por que judeus
ortodoxos não querem servir no Exército em Israel (e qual a relação disso com a
política do país)?
Eles
são conhecidos como "tementes a Deus".
Vivem
em comunidades fechadas, com pouco contato com o mundo exterior, onde parece
que o tempo parou. Muitos não têm televisão, internet nem, claro, redes
sociais.
Os
homens dedicam a maior parte do tempo ao estudo religioso, enquanto as mulheres
cuidam dos inúmeros filhos e trabalham para sustentar a família.
Os
ultraortodoxos, também chamados de haredi, são seguidores de uma corrente do
judaísmo ortodoxo cuja vida é regida por textos religiosos e normas sociais
rígidas.
Em Israel, onde representam cerca de 13% da
população, os partidos políticos que representam esta comunidade exercem há
décadas uma influência minoritária, mas decisiva na política.
Em
troca do seu apoio aos sucessivos governos do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, os
ultraortodoxos conseguiram manter, entre outras coisas, a isenção do
serviço militar obrigatório para
os haredi, que dedicam suas vidas ao estudo, e centenas de milhões de dólares
para suas instituições.
Isso
tem gerado uma fonte de tensão há anos, com grande parte dos israelenses judeus
seculares sendo obrigados a prestar serviço militar e servir em sucessivas
guerras, além de pagar a maior parte dos impostos do país.
Agora,
em um momento delicado devido à guerra em Gaza e ao
temor de um novo conflito aberto com o Hezbollah no
Líbano, o Supremo Tribunal de Israel acabou com essa isenção, o que fez com que
milhares de haredi saíssem às ruas para protestar.
A
decisão também ameaça a estabilidade do governo, uma vez que os dois partidos
ultraortodoxos que fazem parte do Executivo — o Shas e o Judaísmo Unido da Torá
(JUT) — ameaçaram abandonar a coligação liderada por Netanyahu, levantando a
questão sobre até onde vai a influência desta comunidade minoritária.
·
Como se diferenciam de
outros judeus
Os
haredis são uma das "quatro tribos do Estado moderno de Israel",
junto aos secularistas, os religiosos nacionalistas e os árabes israelenses,
conforme definiu o ex-presidente Reuven Rivlin.
Os
homens se vestem com ternos pretos e costumam usar longos cachos perto da
orelha, barbas compridas e chapéu de abas largas. Já o traje típico das
mulheres é composto por saias longas, meias grossas e lenços ou perucas na
cabeça.
Isso
faz com que sejam facilmente identificáveis.
Séries
como Nada Ortodoxa e Shtisel, da Netflix,
despertaram interesse por seu estilo de vida e costumes.
Os
haredi fazem parte do mundo ortodoxo, que se distingue por respeitar plenamente
a lei judaica.
Os
judeus ortodoxos obedecem "principalmente a três elementos-chave:
respeitam o shabbat (dia de descanso judaico); têm uma
alimentação kosher (consomem aquilo que a religião permite
comer); e praticam o que é conhecido como 'pureza conjugal' (dormir em camas
separadas e não ter relações sexuais até sete dias após a menstruação, e depois
de um banho ritual de imersão)", explica Naomi Seidman, professora do
Centro de Diáspora e Estudos Transnacionais da Universidade de Toronto, no
Canadá, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Um
ortodoxo moderno, observa Seidman, "vai fazer outras coisas, e pode ser,
por exemplo, um advogado ou um policial, desde que cumpra esses elementos da
lei judaica".
Para
os haredi ou ultraortodoxos, no entanto, estas normas não são suficientes.
Toda
sua vida gira em torno da Torá (a Bíblia hebraica, composta pelo Antigo
Testamento), tanto a lei escrita quanto oral, e todas as suas escolhas de vida,
sejam profissionais, de educação, onde vivem ou como se vestem, estão sujeitas
à tradição judaica.
Na
longa história do judaísmo, o fenômeno ultraortodoxo é relativamente recente,
nascido no século 19, quando a industrialização fez prosperar um novo tipo de
judeu, mais mundano e integrado à sociedade.
Isso
causou uma ruptura por parte dos judeus ortodoxos que queriam manter uma visão
muito mais conservadora, isolacionista e antissecular do judaísmo, e que se
organizaram em torno de diferentes rabinos.
·
Como são suas
comunidades?
Os
haredi geralmente vivem em enclaves onde todos os seus vizinhos compartilham a
mesma visão de mundo, e onde tradicionalmente tentam manter o mínimo contato
com o mundo exterior para evitar a influência e contaminação de seus valores e
práticas.
Há
comunidades significativas de judeus ultraortodoxos nos Estados Unidos e no
Reino Unido, embora sua maior população esteja em Israel, onde representam
atualmente pouco mais de 13% dos habitantes do país, e onde seu número cresce
rapidamente devido à sua alta taxa de natalidade.
Bairros
como Mea Shearim, em Jerusalém, ou Bnei Brak, nos arredores de Tel Aviv, reúnem
uma parte significativa desta população.
"Eles
costumam ter famílias muito grandes e, em geral, são mais pobres que os judeus
seculares e os judeus ortodoxos modernos, que estão entre os setores mais
abastados da população judaica e possuem famílias menores", explica Naomi
Seidman.
Cada
uma destas comunidades tem suas próprias sinagogas, yeshivás (escolas
religiosas) e organizações comunitárias.
O
respeito e o status no mundo haredi são proporcionais à erudição no estudo da
Torá, por isso os rabinos são os grandes líderes da comunidade, a quem os
moradores recorrem quando têm que tomar uma decisão importante em suas vidas,
como com quem casar ou o que estudar.
A
maioria dos homens adultos se dedica ao estudo dos textos religiosos em tempo
integral, por isso suas esposas ficam encarregadas do sustento da família.
A
variedade de empregos que podem ter é, no entanto, limitada — e as famílias são
geralmente bastante pobres e dependentes de subsídios estatais.
Apesar
do isolamento, está surgindo uma nova classe de ultraortodoxos mais modernos,
observa Seidman:
"Eles
levam uma vida haredi, vivem em enclaves haredi e se vestem como tal, mas em
vez de trabalharem apenas dentro da comunidade ou em profissões tradicionais,
como o comércio de diamantes, são professores ou advogados, e usam a internet,
algo que não é bem visto entre os mais radicais."
Alguns
destes haredi mais modernos se voluntariam, às vezes, para entrar no Exército,
onde existe atualmente um batalhão, o Netzah Yehuda, que foi criado
especificamente para satisfazer as exigências ultraortodoxas de segregação de
gênero, os requisitos de alimentação kosher e horário
reservado para orações e rituais diários.
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Como é a relação deles
com outros israelenses?
Em
1948, havia pouco mais de 40 mil ultraortodoxos em Israel, em comparação com
mais de um milhão hoje. O peso desta minoria vem aumentando — e com isso,
explica Naomi Seidman, também sua autoconfiança e poder político.
Mas
o ressentimento também cresceu entre uma grande parte do resto da população,
que considera que paga com seus impostos os subsídios sociais para um grupo
majoritariamente desempregado, e que envia seus filhos para lutar num Exército
que acreditam que hoje segue as ordens de um governo influenciado pelos haredi,
enquanto eles permanecem em segurança longe da linha de frente.
Tradicionalmente,
os haredi se mantiveram fora da política.
Teologicamente,
os ultraortodoxos consideram que o Estado de Israel só pode ser estabelecido
após a chegada do messias, razão pela qual se consideram antissionistas.
Mas
esta é a teoria. Na prática, apenas um pequeno grupo de ultraortodoxos defende
ativamente esta ideia, não reconhece o Estado moderno de Israel e sai para
protestar com bandeiras palestinas.
A
grande maioria dos haredi, no entanto, defende uma forma de pensar mais
prática, com a qual têm apoiado a participação política para defender seus
interesses.
Isso
permitiu a eles, no passado, formar coligações com a esquerda ou a direita para
manter suas isenções e benefícios sociais.
Hoje
em dia, analisa Seidman, as coalizões só acontecem com a direita. Nas ruas, o
mundo haredi se alinhou fortemente com a direita sionista, que defende, nas
suas visões mais radicais, a expansão do Estado de Israel em direção ao que
consideram seus territórios históricos, ou seja, a Palestina da Cisjordânia e
Gaza.
Esta
posição, defendida por partidos como Sionismo Religioso, aliado de Netanyahu no
governo, influenciou as políticas de Israel e a forma como está conduzindo a
guerra em Gaza, denunciam seus críticos.
Assim,
a participação dos haredi no serviço militar ganhou agora maior relevância.
Mais
de 60 mil homens haredi estão registrados como estudantes de yeshivás —
e foram dispensados de prestar serviço militar. Até agora.
De
acordo com uma pesquisa recente do Instituto Israelense para a Democracia, 70%
dos judeus israelenses querem o fim das isenções gerais do serviço militar para
os ultraortodoxos, algo que o Supremo Tribunal finalmente aprovou.
Desde
então, o Exército recebeu ordens para recrutar mais 3 mil homens da comunidade,
além dos 1,5 mil que já prestam serviço militar.
Também
foi solicitado que elaborasse planos para recrutar um número maior de pessoas
nos próximos anos.
A
tensão tem aumentado.
"Meu
filho já está na reserva há 200 dias! Quantos anos vocês querem que faça? Como
é que vocês não têm vergonha?", disse recentemente Mor Shamgar, mãe de um
soldado que serve como comandante de tanque no sul do país, ao assessor de
segurança nacional de Israel em uma conferência. O discurso viralizou nas redes
sociais.
Para
Shagmar, assim como para outros israelenses, o governo "administrou muito
mal a situação", colocando sua própria sobrevivência política à frente dos
interesses nacionais na questão do recrutamento, disse ela em conversa com a
correspondente da BBC News em Jerusalém, Yolande Knell.
Mas
para os jovens haredi que poderiam ser forçados a prestar serviço militar
obrigatório, a decisão do Supremo Tribunal ameaça seu estilo de vida religioso.
"Durante
2 mil anos, fomos perseguidos e sobrevivemos porque aprendemos a Torá, e agora
o Supremo Tribunal quer nos tirar isso, o que vai causar a nossa
destruição", disse à correspondente da BBC um dos jovens que protestou
nesta semana contra a decisão da Justiça.
Para
Naomi Seidman, a comunidade haredi é, diferentemente da imagem popular que tem,
cada vez mais sensível ao que o resto da sociedade pensa dela.
Nos
últimos anos, eles tentaram expandir sua rede de serviços públicos, como de
assistência rodoviária ou de ambulância, ao resto da população israelense, na
esperança "de que o mundo secular aprecie estas contribuições e as veja
como uma alternativa ao serviço militar", diz a especialista da
Universidade de Toronto.
Fonte:
Sputnik Brasil/BBC News Mundo
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