Violência policial: No Brasil, todo ano é
1964. Todo dia é primeiro de abril
COMEÇO ESSE
TEXTO com duas histórias.
Na primeira delas,
estudantes secundaristas protestam por melhorias nas instalações insalubres de
um restaurante estudantil, quando o local é subitamente invadido por policiais
militares armados com cassetetes, pistolas e submetralhadoras.
Um aparato totalmente
desnecessário, pois os jovens estavam indefesos, tinham a sua disposição apenas
alguns talheres, pratos e um punhado de comida estragada. Os policiais sabem
disso e, mesmo assim, avançam para cima dos estudantes, agredindo-os.
Tiros são ouvidos e
agora seis estudantes estão no chão. Ensanguentados.
Um deles não apresenta
qualquer reação. Está morto! Seus companheiros, desesperados, formam um cordão
de isolamento ao seu redor para impedir que os policiais desapareçam com o seu
corpo. O jovem assassinado é carregado nos braços dos estudantes pelas ruas da
cidade até a Santa Casa de Misericórdia.
Mais tarde, os
policiais alegam que o secundarista morreu em confronto com agentes da lei,
Relatos de testemunhas contradizem essa versão e o laudo pericial aponta que o
jovem foi executado com um tiro à queima-roupa. Execução!
Na segunda história,
os moradores de uma favela, em sua maioria jovens e crianças, protestam contra
os sucessivos episódios de violência policial na região. Policiais militares
estão no local. A turbamulta revoltosa está diretamente sob a mira de seus fuzis.
Os moradores estão desarmados, os policiais sabem e isso não importa.
A população encara os
fuzis e ofendem os policiais que os ameaçam. A tensão aumenta e, então, tiros
são ouvidos!
Um soldado da polícia
militar dispara repetidas vezes contra os moradores. Alguns correm, outros se
escondem. Os brados coletivos dão lugar a um grito solitário. Um jovem corre
implorando por ajuda. Corre por alguns poucos metros e cai.
Uma poça de sangue se
forma entre o seu corpo e o asfalto. Há um ferimento enorme em suas costas. É
um tiro de fuzil. Alguns moradores correm para ajudá-lo, enquanto outros,
indignados, avançam contra os policiais, agora com pedras e garrafas.
O jovem é carregado
nos braços dos próprios moradores até o hospital mais próximo, mas não resiste
aos ferimentos. É um tiro de fuzil.
O jovem assassinado
retornava da casa de sua avó, nem do protesto ele participava.Naquele mesmo
dia, a polícia militar divulga que todos os disparos foram realizados em uma
troca de tiros com criminosos e que o jovem morto tinha envolvimento com o
crime organizado. A versão dos policiais foi imediatamente desmontada por
testemunhas e posteriormente pela perícia.
Essas são as duas
histórias. Ambas são reais. Ambas aconteceram no Rio de Janeiro. Os dois jovens
assassinados existiram, tinham nome, família, sonhos, um futuro.
O primeiro deles se
chamava Edson Luiz de Lima e tinha apenas 18 anos, o segundo
era Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos.
Edson era paraense,
filho de uma família muito pobre, veio para o Rio sozinho em busca de melhores
condições de vida. Chegou a morar nas ruas da cidade e conciliava os seus
estudos com o emprego de faxineiro. Johnatha vivia com sua mãe, Ana Paula
Oliveira, e uma irmã na favela de Manguinhos, Zona Norte da cidade, era
torcedor do Flamengo e sonhava em seguir carreira como sargento do exército
Brasileiro.
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Edson foi assassinado em março de 1968, durante a Ditadura Militar. Johnatha
foi morto em maio de 2014, sob a égide de um governo democraticamente eleito.
Duas vidas distintas
que foram encerradas de forma parecida. Duas histórias semelhantes separadas
apenas pelo tempo. E isso nos diz muito sobre o país em que vivemos. Edson foi
assassinado em março de 1968, durante a Ditadura Militar. Johnatha foi morto em
maio de 2014, sob a égide de um governo democraticamente eleito.
Há, entre as
histórias, uma distância de mais de 40 anos! E ainda assim a morte de Johnatha,
sua estrutura, repete o assassinato de Edison. A polícia ainda mata como nos
tempos da ditadura.
Sabemos que Edson não
foi o primeiro e que Johnatha não foi o último, sabemos que há, entre eles
dois, um sem-número de casos semelhantes, de histórias, de vidas que foram
encerradas de forma violenta pela ação direta do braço armado do estado.
Histórias que seguem a
mesma estrutura: o assassinato é apenas a primeira de uma longa cadeia de
agressões, de violências que se propagam até para além dos limites dos corpos
físicos de suas vítimas. Até a memória dos mortos é violada!
É comum que sejam são
difamados, criminalizados para que o seu assassinato seja considerada justo,
para que seja aplaudido e não condenado.
Lembram do que
aconteceu com Marielle, DG, Maria Eduarda, Thiago Flausino, Claudia Ferreira…?
E aqui há um detalhe
crucial, quanto mais pretos, quanto mais pobres, mais fácil será encontrar uma
desculpa para o extermínio. Dependendo, nem isso será necessário. De fato, na
maioria dos casos basta dizer que “houve confronto”.
Essa estrutura se
repete com a anuência de boa parte da imprensa, da sociedade, da classe
política e do judiciário. Todos eles, cada qual a sua própria maneira,
contribui para o azeitamento dessa verdadeira máquina de extermínio. Desse
modelo cujos contornos foram desenhados ainda durante a Ditadura Militar
e seguiram incólumes ao longo de todos esses anos.
Repito, morte de
Johnatha, sua estrutura, repete o assassinato de Edison.
O ano é 2024, mês de
março. Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha, chora desesperada ao saber do
resultado do julgamento do soldado Alessandro Marcelino de Souza, o policial
militar que atirou nas costas do seu filho, dez anos antes. O veredito?
Homicídio culposo, isto é, quando não há intenção de matar. A sentença garante
a impunidade do policial que ainda responde por um triplo homicídio.
Nessa mesma semana,
como parte de sua agenda de conciliação com a caserna, o presidente Lula
determinou que o governo federal não patrocinará ou encabeçará qualquer ato
político relacionado ao golpe militar de 1964.
Isso significa que não
ocorrerão os tradicionais atos em memória das vítimas da Ditadura Militar e nem
o lançamento de programas que joguem luz sobre os crimes do regime.
Na prática, a atitude
do presidente reforça o pacto de anistia que garantiu a impunidade dos
militares após a derrocada da ditadura.
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A polícia ainda mata como nos tempos da ditadura.
10 anos se passaram e
ainda não tivemos justiça por Johnatha de Oliveira Lima, quase 60 anos se
passaram e ainda não tivemos justiça por Edson Luiz de Lima.
Até nesse aspecto as
histórias se aproximam! A injustiça é a lei e isso não é coincidência. A
anistia normaliza a máquina de extermínio que ceifa a vida de jovens pobres e
negros como Johnatha de Oliveira Lima. A sentença de 2024 e o silêncio sobre
1964 garantem a impunidade da máquina e de seus agentes. Ela seguirá fazendo o
que sempre fez, fazendo aquilo que foi designada para fazer. Estamos vendo isso
na Bahia, estamos vendo isso em São Paulo.
A máquina desenhada
pelos militares, suas polícias, segue incólume.
Provavelmente a
história de Edson, de Johnatha e tantos outros se repetiu no dia de hoje.
No Brasil todo ano é
1964 e todo dia é primeiro de abril.
Fonte: Por Orlando
Calheiros, em The Intercept
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