Sergio Ferrari: Itália, política-espetáculo
e ultradireita
Com apenas 28 anos, em
2018, Michele Sodano foi eleito deputado federal pela região de Agrigento, na
Sicília. Na época, ele pertencia ao Movimento 5 Estrelas (M5S), organização que
naqueles anos se tornou um fenômeno nacional devido ao seu poder de convocação
e à diversidade de posições internas. Sodano concluiu seu mandato em outubro de
2022, porém já não era representante do M5S. Por divergências com a liderança,
em fevereiro de 2021, ele foi expulso de seu partido junto com um grupo de
colegas parlamentares. Apesar da pouca idade, Sodano acumulou um extenso
currículo profissional. Formado em Economia pela Universidade de Milão e em
Administração de Empresas pela Universidade de Copenhague, trabalhou com o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e em várias empresas
privadas. Atualmente dirige a IMMAGINA, uma organização/espaço de trabalho
coletivo e local de referência para encontros de solidariedade, localizada no
coração de Agrigento. A seguir, apresentamos uma entrevista exclusiva com esse
jovem intelectual comprometido, pacifista convicto e referência “sem partido”
para grupos de cidadãos em sua cidade.
LEIA A ENTREVISTA:
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Ser diferente
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Como devo
apresentá-lo?
Pergunta difícil.
Normalmente, na nossa cultura, nos apresentamos pelo que fazemos. No meu caso,
neste momento da minha vida, priorizo minhas atividades para a comunidade e
aproveito o tempo que posso reservar para mim, o que até agora nunca tinha
conseguido fazer. Sinto-me privilegiado quando penso em tantos compatriotas que
vivem apenas para trabalhar e acabam presos a uma lógica consumista que pode
ser comparada a uma grande prisão de luxo.
·
Quer dizer que sua
prioridade hoje é quase existencial?
Com certeza. Percebo
muita gente ao meu redor que está deprimida, triste; que, às vezes, nem sabe
para que vive. Seu objetivo é linear: trabalhar, aposentar-se e, em seguida,
preparar-se para fazer o melhor uso do tempo antes da morte. Eu não entendo como
se pode viver apenas para trabalhar. A vida é muito mais do que isso. Aprendi
isso quando me deparei com um câncer, aos 17 anos. Mudou tudo para mim.
Atenção: Acho que devemos trabalhar, mas entendendo o trabalho como uma
contribuição equilibrada para o mundo ao nosso redor e não como o único
objetivo de nossa existência.
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A profunda crise da política
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Uma reflexão
surpreendente porque você a expressa depois de estar, por quatro anos, vivendo
a 120 quilômetros por hora como deputado federal, com um escritório em Roma,
fazendo viagens constantes entre a capital italiana e Agrigento, sua cidade…
Foi uma experiência
rica, nada negativa. Isso me permitiu compreender melhor a essência de muitas
coisas. Não quero ser arrogante, mas acho que agora tenho mais lucidez para
interpretar certas situações e fenômenos. Em particular, entender o enorme
vazio da política institucional e tradicional. Sinto, e talvez seja provocador
o que digo, que, hoje, na Itália, a diferença entre direita e esquerda é
fundamentalmente de narrativa; não de substância ou de conteúdo essencial. Uma
narrativa que muita gente olha como se fosse um episódio do Big Brother ou
uma série da Netflix, muito distante de todo o conteúdo essencial.
Isso foi especialmente perceptível após os anos do governo Berlusconi, que
reduziu os instrumentos de análise social a quase nada e instalou a política
como um espetáculo. A consequência disso: hoje, muita gente não compreende que
a política em geral, e o Parlamento em particular, quase não têm poder real na
Itália, nenhuma capacidade de representar o seu próprio povo.
·
Essa é uma declaração
muito dura. Então, quem tem o poder na Itália hoje?
A grande finança, como
em toda a Europa, onde impera esse capitalismo neoliberal dominante. A Itália
não tem defesas imunológicas contra esse sistema. Tem uma tradição e uma
história extraordinárias que sempre permitem que as pessoas pensem que vivem em
um bom país. Mas, na realidade, nesse país, as multinacionais e o capital
financeiro podem fazer o que quiserem e governar como quiserem. Descobri isso
quando eu era deputado. A diferença entre Giorgia Meloni hoje e o Partido
Democrata (antigo Partido Comunista) ou o Movimento 5 Estrelas ontem, é apenas
narrativa. Na realidade, o que Meloni está implementando hoje, 18 meses depois
de chegar ao poder, é o que o governo de coalizão de Conte e depois o de Mario
Draghi fizeram no período anterior. Foram eles que abriram as portas para todas
as grandes privatizações –como no setor da saúde–, que continuam se
aprofundando.
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O drama de um discurso imposto
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De acordo com sua
análise, não parece muito dramático que atualmente a Itália seja governada por
uma líder que tem sua origem em uma militância neofascista…
Claro que é dramático,
porque Meloni e a direita apresentam propostas ideológicas muito negativas para
o desenvolvimento da consciência humana. Porque, do ponto de vista ideológico,
a sua xenofobia, o medo do outro, a raiva de quem é diferente cria um prejuízo
enorme e é muito perigoso.
·
Você acha que esses
impulsos, mensagens e conceitos são irreversíveis?
Não consigo avaliar o
nível de reversibilidade ou irreversibilidade dos argumentos impostos pela
extrema direita. A história é tese, antítese e síntese. Não posso dizer se
chegaremos à antítese de todos esses abomináveis conteúdos ideológicos. O que
vejo é um desmonte acelerado de tudo o que é cultural, no sentido amplo do
termo. Um desinvestimento ativo na cultura, na educação, que tem impacto direto
na conscientização cidadã. Hoje, percebo que muitas pessoas têm medo dos
imigrantes e assumem a mensagem indiscutível de “imigrantes ou refugiados que
vêm apenas para roubar e tirar vantagem”. Não há dúvida de que ainda existe um
setor consciente e solidário na sociedade italiana, mas ele é pequeno. E também
um grupo majoritário que inclui setores populares, que tem medo e que, a cada
dia, sofre mais com a crise econômica. Diante do risco de morrer de fome,
muitos italianos de baixo poder aquisitivo estão se tornando conservadores e se
apropriando acriticamente de argumentos xenófobos.
>>>> “Facilitamos
a ascensão da Meloni”
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Você ficou assustado
quando o partido da Meloni, Irmãos da Itália, venceu em 2022?
Não, não foi medo,
mas, fiquei preocupado. E mais do que isso, uma sensação muito estranha: se
Meloni chegou até aqui é porque o campo progressista italiano facilitou o
terreno.
·
Pergunto novamente
para entender bem: segundo a sua reflexão, o atual governo, mais do que
mudanças profundas em seu programa, promove uma mudança de ideologia e de
narrativa política…
Acho que sim. Por
exemplo, o governo apresentou argumentos e medidas para se opor a festas “rave”
(ndr: multitudinárias e clandestinas), ou para proibir a carne sintética, ou
para impor multas pelo uso de palavras em inglês. E arrasta a opinião pública e
o debate dos cidadãos em torno destas questões não essenciais. Porém, ao mesmo
tempo, perdoa grandes empresários que têm dívidas históricas e permite que
multinacionais façam o que quiserem. Ao mesmo tempo, anula o “Reddito di
cittadinanza” (Renda de Cidadania), importantíssimo subsídio de 700 euros para
cada família abaixo do nível de pobreza, uma das nossas grandes conquistas
quando o nosso Movimento 5 Estrelas estava no governo. É terrível, porque, com
seus mecanismos midiáticos, Meloni e sua gente estão impondo como verdade
absoluta que esse subsídio foi injusto e que “as pessoas devem trabalhar”. Como
se o problema não fosse a pobreza sistêmica de uma parcela significativa da
população, mas a falta de vontade de trabalhar. Invertem tudo e se aproveitam da
pobreza e do desespero das pessoas. É por isso que insisto em falar sobre o
grande problema da narrativa política dos grupos dominantes.
·
Narrativa de direita e
desmonte das conquistas sociais…
Com certeza. Quando,
em 2018, nosso movimento alcançou tanta força e chegou ao poder, sentimos que a
justiça triunfava. Morei na Dinamarca, onde já era membro do M5S. Pedi demissão
do meu emprego lá para voltar e participar da campanha eleitoral. Depois de
seis meses e com apenas 28 anos, e com o perfil de um jovem com um discurso
determinado e forte, fui eleito deputado com o apoio de mais de 50% do
eleitorado da minha cidade. Muitos italianos experimentaram tudo isso como uma
revolução extraordinária. Conseguimos legislar avanços impressionantes, como o
subsídio aos mais necessitados, ou a obrigatoriedade de contratos de trabalho
permanentes e seguros após dois anos de trabalho na mesma empresa. Conseguimos
abolir a publicidade aos jogos de azar em um país onde o jogo continuava a
crescer devido ao desespero econômico de muitas pessoas. Mas, as concessões à
direita e à extrema-direita começaram rapidamente e perdemos mais terreno a
cada dia.
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A queda de uma grande ilusão
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Isso causou a crise
interna dentro do Movimento 5 Estrelas?
Isso mesmo. Um grupo
de nós, que, como deputados, não apoiava a nomeação de Mario Draghi como
primeiro-ministro, em 2021, foi expulso do Movimento e formou um grupo
parlamentar independente. Em nossa avaliação, Draghi representava a elite
neoliberal e globalizante da Europa. Ele foi diretor-executivo do Banco Mundial
e depois, por oito anos, foi presidente do Banco Central Europeu. Por trás de
Draghi estavam novamente a extrema-direita e a direita, juntamente com o
Partido Democrático e o M5S. A sua nomeação foi algo que a nossa decência
política já não pode aceitar.
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Um momento muito
difícil na sua carreira política?
A expulsão do M5S foi
um acontecimento muito amargo na minha vida. Mas, não podia confiar naquele
governo que, como a história mostrou, não beneficiaria em nada os setores
populares. Foi triste, porque significou uma ruptura com um processo
participativo que era inigualável em suas origens. Ao mesmo tempo, ao olhar a
partir da minha própria ética, sinto essa expulsão como uma espécie de
condecoração. Foi uma decisão de princípio que tomei sabendo que não me
beneficiaria pessoalmente. Fiz a coisa certa, mesmo que não fosse a mais
conveniente para mim. E é por isso que a considero um grande grito de
liberdade. Imediatamente, com os outros colegas com quem criamos o grupo
independente, começamos a renascer na vida parlamentar. Apresentamos projetos
de lei de forma totalmente independente e, pela primeira vez, fiz contribuições
parlamentares expressando os meus próprios sentimentos e convicções, e sem ter
que ler um documento escrito por outra pessoa em nome do M5S. Confesso que foi
uma experiência da qual me orgulho. Outros colegas, amigos e companheiros
parlamentares do nosso movimento continuaram com a linha oficial. Sinto uma
espécie de compaixão por eles, porque deve ser muito difícil se sentir bem
depois de vender sua alma ao diabo.
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A crise de uma Europa com a guerra em suas entranhas
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Quando a guerra
eclodiu na Ucrânia, seu grupo de expulsos do M5S se distanciou de qualquer
apoio militar à Ucrânia e àquele conflito em geral…
De fato. Essa guerra
mina qualquer papel estratégico que a Europa pretenda desempenhar. Como
continente, somos meros traficantes de armas, quando deveríamos ter levantado
uma voz forte e alternativa pela paz. E, atenção: penso que deveria ter sido
mantida uma distância saudável de Zelensky e de Putin. Sinto que, hoje, a
Europa, como conceito de um projeto original em construção para um continente
igualitário e justo, está muito enfraquecida.
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Para concluir: sua
organização IMMAGINA acaba de abrir suas portas para apresentar Grand Hotel
Coronda, um livro sobre aqueles que foram presos políticos na prisão argentina
de Coronda durante a ditadura militar. E nessa mesma sala realizam-se as
reuniões regulares dos vários grupos e forças que defendem a paz na Palestina…
Para nós, o IMMAGINA é
um espaço aberto, em construção, humano e profundamente solidário. O principal
objetivo que perseguimos é dar uma pequena sensação de eternidade a esse
momento que vivemos hoje e aqui. Não é um projeto acabado ou fechado. As portas
de nossas instalações estão abertas para todos. Pretendemos, especialmente nós
que fazemos parte da IMMAGINA, nos reapropriar da vida. E isso implica dois
conceitos principais: construir comunidade e contribuir para a felicidade
coletiva. Em nossa prática coletiva buscamos promover atividades e propostas em
nível micro, sem esquecer os aspectos macro de nossa cidade e região, com muita
humildade e passo a passo, sem desespero.
E, neste contexto, a
solidariedade é um conceito fundamental para nós. Combater tudo o que, hoje,
empobrece nossa sociedade planetária: as fronteiras, as guerras que beneficiam
poucas multinacionais, as polarizações entre regiões e Estados. Somos todos seres
humanos de um mesmo planeta. Devemos preservar uns aos outros, não brigar uns
com os outros, e cuidar, juntos, do nosso planeta.
Fonte: Outras Palavras
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