TRAMA GOLPISTA: E os militares? A pergunta
que não podemos calar
À luz dos fatos
descobertos, é razoável afirmar que estivemos bem perto de um golpe. A situação
é preocupante, independente da recusa do então comandante do Exército, general
Freire Gomes, em mobilizar as tropas para as intenções golpistas. Afinal, a
essa altura, é difícil saber se a negativa foi categórica ou contingente pela
impossibilidade de o golpe ser bem-sucedido, dado o contexto internacional
desfavorável. E a indagação que fica é: e se o contexto fosse outro, talvez o
de um governo de Donald Trump?
A angústia dessa
indagação nos leva a uma indispensável pergunta: o que fazer com os militares –
não os diretamente envolvidos com a trama, que devem ser processados na
Justiça, mas em sentido amplo, com a instituição, que segue tão permeável a
influxos antidemocráticos? A pergunta cabe, sobretudo, porque não estamos
diante de um fato isolado, mas de mais um capítulo de uma conhecida e
interminável novela: o protagonismo político dos militares.
Responder a essa
pergunta demanda profundo debate sobre a história e o papel das Forças Armadas,
cujo primeiro passo é o entendimento da arquitetura institucional entre civis e
militares, central ao monopólio legítimo da violência estatal e desafiadora para
qualquer sociedade, já que é razoável supor que entregar as armas a alguém e
exigir dele obediência não é algo simples. Por isso, em sentido histórico, toda
relação civil-militar é potencialmente problemática e a sociedade que
desconhece os seus soldados se sujeita aos maiores riscos.
• O PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE CIVIS E
MILITARES
Em seus primórdios, o
poder político se caracteriza pela dominação pessoal direta e a figura do
mandatário representa uma síntese entre as esferas política e militar. Foi o
desenvolvimento da instituição armada profissional[1] e da burocracia civil que
levou à separação entre as duas esferas, passando os soldados a ocuparem um
espaço à parte da política, porém atavicamente ligados ao Estado, uma vez que
são os responsáveis pela sua sobrevivência.
Essa responsabilidade
consiste na missão precípua das Forças Armadas: a defesa do território e de
seus habitantes por meio de uma preparação específica, mediante o uso de
equipamentos exclusivos, para dissuadir ou enfrentar agressores externos em
preservação da soberania nacional. Por ser uma atividade “essencial à
sobrevivência de uma nação, e pelo poder que lhe conferem as armas, o tema das
Forças Armadas não pode, portanto, desligar-se dos mecanismos de controle
político sobre as instituições castrenses” (Saint-Pierre & Vitelli, 2018).
Isso posto, devemos
considerar a importância do estudo da instituição militar:
“O militar, tendo ou
não a exata dimensão de seu papel, interfere direta e indiretamente, de forma
explícita ou encoberta, nas relações sociais, na economia e na cultura. O
militar está presente na modelagem de instituições, na configuração e na
dinâmica do poder político; é decisivo na delimitação de fronteiras
territoriais e, em boa dose, responsável pelo desenho do cenário internacional.
Ao longo da história, o militar formula pioneiramente variadas proposições
importantes para a sociedade, nem sempre se dando conta disso; engaja-se na
construção de seu país antes do surgimento do Estado nacional; antecede e
alimenta a ficção literária produzida para a exaltação das nacionalidades.”
(Domingos Neto, 2005, p.1)
É justo, portanto,
afirmar que a história da instituição militar se confunde com a do Estado. E o
problema central à relação civil-militar se resume no velho provérbio romano
who watches the watchers [Quem vigia os vigias?] ou who guards the guardians [Quem
guarda os guardiões?]. Nas palavras de Bruneau e Matei (2013, p.30), “qualquer
força armada forte o suficiente para defender um país também é forte o
suficiente para conquistá-lo”. A posse exclusiva das armas de guerra coloca os
militares em posição de grande barganha política e impõe desafios complexos às
instituições com relação ao seu controle.
A busca por esse
controle, o “controle civil”, um dos mantras mais conhecidos entre os
cientistas políticos, é imprescindível. Enquanto instrumento do Estado, as
Forças Armadas precisam estar sujeitas ao comando político, responsável pela
definição de uma estratégia de acordo com o interesse nacional. Não obstante, a
percepção de que assuntos relacionados à Defesa e à estratégia são de âmbito
exclusivo dos militares é comum no Brasil, onde as Forças Armadas se veem em
posição de avaliar e determinar as necessidades nacionais no contexto mais
elevado da política estatal. Isso se deve a condicionamentos políticos, sociais
e históricos diversos, dentre os quais destaco três: fragilidade das
instituições democráticas (quando existem), sintomático de uma cultura política
autoritária; carência de uma elite civil dotada de consensos mínimos para um
projeto nacional soberano; e ausência de ameaças externas capazes de mobilizar
a sociedade para as questões de Defesa, o que invariavelmente resulta em uma
liderança política inapta para lidar com esses temas. Disso resulta um amplo
domínio militar sobre eles, uma vez que os militares são os operadores
exclusivos do aparelho de Defesa.
No entanto, o papel
das Forças Armadas deve ser o de instrumentos do Estado, executores das
decisões políticas com o menor custo possível para a sociedade. As Forças
Armadas são o ativo da Defesa, não o contrário. Então, a primeira questão que
se coloca acerca do problema do controle civil é: como obter lealdade daqueles
que detêm a força?
Em apreciação
superficial, a relação civil-militar pode ser entendida na alegoria proposta
por Adam Przeworski. Nela, um tanque de guerra e um fusca se encontram em um
cruzamento. O tanque, muito mais poderoso que o fusca, tem tudo para passar por
cima dele, caso seja desafiado. Para o fusca, por outro lado, não há escolha:
refém de sua condição inferior, precisa ceder passagem ao tanque, sob pena de
ser destruído.
Apesar do sentido
didático da alegoria, e de sua verdade de fundo, ela é pobre ao reduzir o
problema à correlação material de forças. Ora, fosse assim, não haveria
propósito em discutir o controle civil, que seria inalcançável em qualquer
medida. A relação civil-militar não repousa apenas na força bruta, mas em um
jogo de poder em que os dois lados interagem em busca de ganhos relativos e
condicionados a variáveis dependentes de contextos históricos, políticos e
sociais que se alteram ao longo do tempo. Logo, essa relação não pode ser
concebida de forma cristalizada, como na alegoria, até porque ambos estão
sujeitos a influências e dissidências internas capazes de alterar a correlação
de forças. Assim, por exemplo, um militar democrata pode aderir a um golpe se
considerar que as chances de sucesso são altas, e, da mesma forma, um militar
golpista pode agir dentro das regras democráticas se entender que as chances de
sucesso de uma intervenção pela força são baixas. As duas arenas (civil e
militar) não constituem blocos monolíticos e a própria relação as molda e
transforma.
Isso nos remete à
outra questão: são as Forças Armadas um ator político autônomo ou um
instrumento de facções políticas?
Edmundo Campos Coelho,
em sua obra clássica sobre o Exército brasileiro, enfatizou o aspecto
organizacional para explicar as motivações para a intervenção. Segundo ele, por
muito tempo predominou na literatura especializada a concepção instrumental,
segundo a qual a intervenção se explicaria pela “sedução” que exercem sobre o
militar as facções políticas. Ou seja, a razão das intervenções seria externa à
organização militar.
Rompendo com a citada
tradição, o autor toma a organização militar como objeto em si, e, nesse
sentido, se destacam as diferenças entre civis e militares. Sobre isso,
Carvalho (2005, p.13) observa que “a sociologia tem mostrado exaustivamente […]
que organizações possuem características e vida próprias que não podem ser
reduzidas a meros reflexos de influências externas. Isso vale particularmente
para as organizações militares […]”.
Daí, chegamos a Finner
(2002), para quem a cultura política democrática e o intervencionismo das
Forças Armadas são vetores inversamente proporcionais, porque a primeira seria
um requisito para a institucionalização do controle civil. No caso brasileiro,
a distância entre Estado e sociedade civil resulta em baixa participação
popular, levando a disputas privadas pelo poder que estruturam um sistema
oligárquico no qual os militares sofrem constrangimentos circunstanciais, em
vez de institucionais. É esse o contexto em que surge a “política do Exército”.
• A “POLÍTICA DO EXÉRCITO”
O elemento ideológico
primário para a compreensão do papel político da instituição militar é o
Positivismo e sua adesão entre os militares brasileiros, que passam a
considerar as Forças Armadas como modelos organizacionais para a nação. A
partir da década de 1930, esse papel rapidamente foi se desenhando em uma
doutrina, segundo a qual o Exército seria “um órgão essencialmente político; e
a ele interessa, fundamentalmente, sob todos os aspectos, a política
verdadeiramente nacional (…). Sendo o Exército um instrumento essencialmente
político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a
política do Exército, e não a política no Exército” (General Góes Monteiro,
apud Coelho, 1976, p.103-104).
Assim, seriam os
modelos organizacionais militares os mais adequados à nação, por serem eles
capazes de eliminar a indisciplina social.
“Só à sombra deles é
que, segundo nossa capacidade de organização, poderão organizar-se as demais
forças da nacionalidade. O Exército e a Marinha são, por conseguinte, os
responsáveis máximos pela segurança interna e externa da Nação, precisando para
este fim serem evidentemente tão fortes quanto possível, de modo que nenhum
outro elemento antagônico à sua finalidade possa ameaçar os fundamentos da
Pátria. Nestas condições, as forças militares têm de ser, naturalmente, forças
construtoras, apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova
estrutura à existência nacional, porque só com a força é que se pode construir,
visto que com fraqueza só se constroem lágrimas […] e o meio mais racional de
estabelecer, em bases sólidas, a segurança nacional, com o fim, sobretudo de
disciplinar o povo e obter o máximo de rendimento em todos os ramos de
atividade pública, é justamente adotar os princípios de organização militar…”
(ibidem, p.104-105).
Ato contínuo, em meio
ao início da Guerra Fria, é criada a Escola Superior de Guerra, em 1948,
idealizada para estreitar a colaboração civil-militar e institucionalizar as
ideias de Góes Monteiro em “um corpo coeso de doutrina e ferramentas a serem
utilizadas pelos governantes em função da conquista e manutenção de um estado
de segurança” (COSTA, 2008, p.70).
A ESG veio também para
reforçar a tendência ao predomínio do grande capital estrangeiro. Suas bases
doutrinárias são uma versão latino-americanizada do National War College, dos
Estados Unidos, e emblemático disso foi a demanda estadunidense às forças armadas
latino-americanas para funções alienadas de suas atividades precípuas, isto é,
dissociadas da Defesa e voltadas para a repressão política interna. Essa
guinada para dentro se materializou em doutrinas de segurança muito diferentes
daquelas vigentes nas democracias industrializadas ocidentais. Nesse sentido, a
ESG difundiu nas Forças Armadas “a predisposição a intervenções no quadro
político-institucional…” (Oliveira, 1978, p.26).
Como resultado, a
década de 1950 observa a escalada da insubordinação militar com tentativas de
golpe em 1954 e rebeliões armadas como as de Jacareacanga (1956) e Aragarças
(1959), que elevam as tensões e culminam no golpe de 1964. O regime instaurado
após o golpe vertebrou nas Forças Armadas a arquitetura institucional
necessária para atuar politicamente. Sob os moldes dessa arquitetura (a
Doutrina de Segurança Nacional), a segurança nacional foi instrumentalizada
para a manutenção da ordem interna a partir de uma “extraordinária
simplificação do homem e dos problemas humanos”, segundo a qual “a guerra e a
estratégia são a única realidade e a resposta a tudo” (COSTA, 2008, p.87).
Nessa toada, o
conceito de Segurança Nacional incorporou uma noção de segurança sujeita à
competência própria das Forças Armadas, orientada pela “minimização de todas as
fontes de cisão e desunião dentro do país” (STEPAN, 1975, p. 132), o que
implicava a necessidade de um governo forte e autoritário. Segundo Saint-Pierre
e Vitelli (2018), em certas circunstâncias,
“a segurança dos
cidadãos pode ser ameaçada sob o argumento da segurança estatal, muito embora o
sentido último do Estado, o compromisso central do contrato social que funda o
Leviatã, seja precisamente a segurança daqueles […] e constitui um sério risco
para a humanidade quando os governos, sob o pretexto da segurança ou de manter
a integridade do Estado, apelam a expedientes que vão da censura da imprensa ao
terrorismo de Estado, da excepcionalidade institucional à detenção arbitrária,
à tortura e ao genocídio”.
• O GÊNIO SAIU DA LÂMPADA
As Forças Armadas são
instituições indispensáveis em um mundo permanentemente sujeito ao espectro da
guerra. Portanto, não há espaço para discutir a relevância delas. O que a
sociedade deve discutir é o seu papel, e isso passa por problemas institucionais,
muitos deles sublimados por uma transição baseada na conciliação com o
inconciliável.
Com o esgotamento do
regime autoritário, o processo de transição foi conduzido sob a tutela dos
militares, agarrados à Lei da Anistia, de 1979. A longa duração do governo
Sarney – o mais longo governo interino na história das transições – foi
sintomática do interesse em protelar o processo, e a participação das Forças
Armadas na elaboração da Carta de 1988 afastou a necessidade de dispositivos
categóricos de controle civil.
“Em vez de tentar
estabelecer o controle civil sobre os militares, José Sarney preferiu se
acomodar aos interesses dos militares. Essa acomodação, aliás, não foi apenas
do presidente, mas também do Congresso. A Constituição de 1988 praticamente
deixou inalterado o teor das relações entre civis e militares estabelecidas
pela Constituição autoritária de 1967 e sua emenda de 1969. A acomodação, que
não causou maiores sobressaltos, foi obtida por um acordo tácito, definido como
tutela amistosa, que pode ser explicada como o resultado de um equilíbrio
local. Esse resultado favorece as Forças Armadas, pois elas preservam seu poder
de veto nos assuntos relacionados à manutenção da ordem e da lei, sem
carregarem o ônus de governar um país em crise. […] O presidente [Sarney]
chegou a declarar que o exército era um dos mais fortes baluartes da transição
para a democracia”. (Zaverucha, 1994, p.224)
A Constituinte,
portanto, foi atravessada pelo lobby dos militares, que atuaram pela
preservação do conceito de Segurança Nacional. Lideranças civis diversas
defenderam a heterogeneidade das sociedades contemporâneas e o papel reservado
à Constituição como salvaguarda do pacto social, a partir do respeito às
diferenças e aos direitos individuais. No entanto isso não bastou para impedir
que a moldura da Doutrina de Segurança Nacional, que visa neutralizar as
contradições sociais (normais às sociedades complexas, mas entendidas como
fraquezas pelos militares), seguisse viva na Carta de 1988. Seus impactos mais
visíveis foram a militarização da segurança pública,[2] com consequências
desastrosas para o país, e o artigo 142, “monstrengo jurídico incompatível com
o princípio da soberania popular, (…) aviso prepotente das fileiras: entregamos
o governo, não a paternidade da pátria…” (Martins Filho, 2021, p.20).
É nesse diapasão
histórico que devemos analisar a atual trama golpista: como expressão de um
problema crônico brasileiro, o intervencionismo militar, reeditado sob o
bolsonarismo. Para além dos desvios individuais, que competem à polícia e à
justiça, é preciso cuidado para não negligenciar a necessária lente política e
institucional sobre o problema, o que não significa condenar a instituição, mas
atentar para os seus princípios doutrinários obsoletos e perniciosos para a
construção da democracia brasileira. Cumpre acentuar que esses princípios
permanecem perigosamente vivos e se tornaram mais nítidos com a instauração da
Comissão Nacional da Verdade, em 2011. A CNV levou a um ponto de inflexão nas
relações com a caserna, resultando na ampla adesão das fileiras ao bolsonarismo
(movimento golpista na essência) e em diversos episódios emblemáticos do
retorno dos militares ao palco principal da política – como o tuíte do então
comandante do Exército, general Villas Bôas, em 2018, quando ameaçou
publicamente o STF diante do pedido de habeas corpus feito pela defesa de Lula,
que era, àquela altura, líder das pesquisas para a Presidência.
À guisa de conclusão,
o problema do golpismo militar é histórico, nos acompanha há muito tempo e
segue como fator de grave instabilidade política no país. Agora, a sociedade
brasileira está diante de uma oportunidade para afirmar categoricamente às
Forças Armadas que papel devem e, principalmente, que papel não devem ter.
Nesse sentido, é imprescindível punir com rigor os golpistas, civis e
militares, o que deve terminar com generais presos pela primeira vez na
história do país. E já passou da hora de rever o artigo 142, o currículo do
ensino militar (que precisa estancar o culto a 1964) e a relação dos militares
com os Poderes e o processo eleitoral. O enfrentamento à militarização da
segurança pública, problema complexo, vem logo em seguida.
Em suma, é necessária
uma revisão sistemática no papel das Forças Armadas, pelo bem da sociedade, do
Estado e da própria instituição militar. E basta de anistia.
Fonte: Por João Rafael
Gualberto de Souza Morais, no Le Monde
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