Quando a solidão é uma doença
Incerteza, solidão,
marginalização. São os males de que sofre a nossa sociedade e que, hoje, podem
expor os mais frágeis a patologias psiquiátricas. A 46 anos da Lei
180 [sobre a saúde mental na Itália] e a 100 anos do nascimento
de Franco Basaglia, o psiquiatra que “virou o mundo de cabeça para baixo”,
o caderno La Lettura tentou entender qual é a herança dessa lei e
quais são os “novos” transtornos psiquiátricos.
Quem nos acompanha
nesta jornada é o psiquiatra Giancarlo Cerveri (Milão, 1970), diretor
do Departamento de Saúde Mental e Dependências da ASST (unidade
sociossanitária territorial, na sigla italiana) de Lodi. Do
pavilhão Bignami do Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Tratamento
(SPDC) do hospital de Codogno (para chegar lá, é preciso passar pelo
pronto-socorro onde foi descoberto o primeiro paciente de Covid em 2020
na Itália), Cerveri ilustra como funciona um departamento de
psiquiatria: “Temos 15 leitos para pacientes agudos (por exemplo, quem chega
com tratamento de saúde obrigatório ou quem está em risco de suicídio) para
cerca de 240 mil habitantes da província. Na Itália, temos um dos números mais
baixos de leitos para casos agudos da Europa. Na Bélgica, chega-se a
seis vezes mais. Quando a Lei 180 foi estruturada, era preciso haver
um para cada 10 mil habitantes. Mas essas internações são poucas em comparação
com as necessidades reais”.
O pavilhão fica em uma
área separada do hospital porque, explica Cerveri, esta é uma herança
histórica: até o século XX, existiam três instituições isoladas: os
leprosários, os sanatórios para os tuberculosos e os manicômios, que
permaneceram separados até o fim do século passado.
“Atendidos na
psiquiatria (excluindo as dependências), temos 2.700 pessoas por ano, entre os
18 e os 65 anos de idade, tratadas pelos serviços de saúde mental. Até 2019,
eram cerca de 2.300. O número de consultas psiquiátricas no pronto-socorro, que
antes era de cerca de 900 por ano, em 2023 foi de 1.300”.
·
Depressão, ansiedade, transtornos
O efeito Covid deve ser levado em consideração, mas houve um aumento de
pedidos em toda a Itália, afirma o diretor. E esses 2.700 pacientes são
mais mulheres, “porque pedem ajuda com mais frequência, e há um predomínio de
depressão, ansiedade, transtornos alimentares. Os homens estão mais expostos ao
abuso de substâncias e são, em sua maioria, autores de crimes com patologias
psíquicas”. As patologias mais frequentes dos atendidos são depressão,
esquizofrenia, transtornos de personalidade.
Os serviços atuais
foram pensados, após o fechamento dos manicômios, para uma população que era
conhecida e estável. Com o passar do tempo, porém, houve mudanças radicais,
explica Cerveri. Hoje, são identificadas quatro principais. A primeira diz
respeito ao abuso de substâncias: “No passado, havia abuso de opioides,
como a heroína, que tem um efeito calmante, mas não é uma substância irritante
para o sistema nervoso central. Nos últimos 20 anos, aumentaram as substâncias
que causam paranoia, anomalias comportamentais e amplificam o risco de
desenvolver patologias psiquiátricas. Hoje, quem abusa de cocaína,
metanfetamina, canabinoides e tem graves anomalias comportamentais acaba na
psiquiatria. Isso significa que um número de leitos já reduzidos está ocupado
por um problema que antes não existia”.
Outra questão é a
dos migrantes,
que estão “expostos a condições traumáticas, muitas vezes aterradoras, como a
da viagem. Existem elementos de desespero que levam a um transtorno do
pensamento e do comportamento, porque entram em conflito com um contexto do
qual se sentem rejeitados, expulsos e no qual não conseguem se integrar. O
resultado é que, depois, eles põem em prática comportamentos agressivos e
irracionais. E a resposta da polícia é trazê-los até nós”.
O aparecimento
precoce de patologias psiquiátricas (15-16 anos) também é um tema atual e
pouco presente na época da Lei 180 (entre as hipóteses para esse
aumento: as mudanças nos hábitos de sono; o acesso precoce a entorpecentes;
ambientes familiares que levam a um diagnóstico precoce). “Lidamos cada
vez mais com menores que têm problemas de comportamento, distúrbios com
alterações de humor e o risco de suicídio. Além disso, abusam de substâncias.
Muitas vezes não temos respostas adequadas e somos forçados a interná-los”.
Sobre o tema dos
jovens, Cerveri também explica quais são as patologias ligadas ao uso
excessivo da internet e das mídias sociais: “além do fenômeno dos hikikomori (pessoas que se isolam do mundo),
essas formas de dependência se inserem em distúrbios mais gerais. Estamos
falando de crianças e adolescentes que têm transtornos de ansiedade e que
muitas vezes associam seu desempenho e seu valor à eficácia que têm nas redes
sociais digitais, que se tornam um elemento perturbador em sua vida”.
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Transtornos e criminalidade
Por fim, há os
pacientes que são autores de crimes, que, após o fechamento dos hospitais
psiquiátricos judiciários em 2015, passam a ser acolhidos
nas REMS (residências para execução de medidas de segurança) que, no
entanto, “não existem em um número suficiente, e há uma lista de espera em toda
a Itália para entrar. Essas pessoas são assim confiadas aos serviços
de saúde mental, que, no entanto, não têm recursos e preparação para responder,
também no que diz respeito às medidas de segurança.
Depois, há a questão
da violência sofrida por trabalhadores e pacientes, como o caso
de Bárbara Capovani, morta em 2023 por um de seus pacientes, cuja
internação havia sido ordenada pela autoridade judiciária, à espera
da REMS. Isso também explica o medo e um pouco de descontentamento também
devido à carga excessiva de responsabilidade, razão pela qual também temos um
problema com o recrutamento de pessoal”.
Sobre isso, acrescenta
o psiquiatra Antonio Calento, que trabalha no SPDC especialmente
com infratores, “a lei Basaglia havia retirado da psiquiatria o papel de tutela dos
pacientes do ponto de vista da periculosidade. Nos últimos anos, porém, estamos
voltando a esse caminho, e nos é dada a tarefa de realizar uma medição em um
local onde ela não deveria ser realizada”.
Cerveri acompanha
o La Lettura na visita à comunidade de reabilitação de alta
assistência (CRA, na sigla italiana) de Lodi, ou seja, a residência para
internamentos prolongados, com 16 leitos (há também um centro diurno), onde
chegam pacientes pós-agudos ou de reabilitação.
A psiquiatra
responsável Elisabetta Pionetti apresenta a estrutura, inaugurada em
1998 para receber pacientes do instituto manicomial feminino, e que hoje abriga
internações que variam de 18 a 36 meses, para uma faixa etária de 18 a 50 anos.
“Chegam aqui pacientes
em uma fase muito ativa – explica Pionetti – que perderam
habilidades, e trabalhamos em todas as frentes, incluindo a da formação
profissional e da inserção com as entidades locais. Trabalhamos com patologias
graves: transtornos psicóticos, esquizofrênicos, de personalidade e formas
depressivas e bipolares”.
Os internados atuais
são maioritariamente homens com situações sociais difíceis, com coabitações
familiares impossíveis de reativar ou com níveis de autonomia deteriorados.
“Neste momento, também temos três pessoas em medidas de segurança. Os
estrangeiros aqui são uma carga de trabalho importante para nós, porque o juiz
continua renovando a medida até que tenham um teto e uma atividade, o que é
impossível, porém, sem a autorização de residência”.
Em quase 30 anos de
atividade, explica Pionetti, muitas coisas mudaram, como a desconfiança
externa: “No início, não conseguíamos encontrar apartamentos para alugar aos
pacientes. Agora estamos discutindo a inserção no mercado de trabalho com a
província e com as entidades. E fazemos divulgação, até mesmo com as crianças,
para sensibilizar contra o estigma social”.
·
Reinserção social
A pé, chegamos
com Cerveri ao CPS (centro psicossocial)
de Lodi que, de forma simplificada, corresponde às clínicas de
psiquiatria. É Marco Vercesi, psiquiatra, quem nos apresenta esta outra
realidade: “nos últimos anos, em comparação com os quadros psicóticos
esquizofrênicos narrados pela experiência manicomial, os usuários são variados.
Identificamos algumas áreas críticas acompanhadas pelas equipes: autismo em
adultos, com diagnósticos crescentes, assim como crescem os de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), em relação
aos quais, na Itália, até cerca de dez anos atrás, não estávamos
muito preparados. Ou a depressão resistente, ou seja, quadros de depressão de
longa duração que não respondem a uma série de terapias farmacológicas”. E
ainda antes da Covid, acrescenta Vercesi, aqui tinha nascido o Centro
Juvenil (18-25 anos) para identificar, por exemplo, situações de início de
esquizofrenia.
É a psiquiatra do
CPS, Maria Marasco, quem esclarece este trabalho: “o desejo
de Basaglia era reintroduzir no tecido social os internados em
manicômios e, principalmente, em suas famílias, onde nascem o desconforto e a
dor. Procuramos dar apoio a eles e àquelas situações que antes só encontravam
uma certa paz com o distanciamento. A diferença entre o pré e o
pós-Basaglia é que tudo tem um começo e um fim, não há mais pessoas que
tenham uma ‘sentença sem fim’ em relação aos tratamentos”.
Com Cerveri,
tentamos então olhar um pouco mais de cima para as causas dos mal-estares na
nossa sociedade: “Um tema relevante – diz ele – é a incerteza quanto aos
equilíbrios que o nosso país alcançou, como o clima, a geopolítica, o declínio da fertilidade... Isso cria um estresse de fundo na população, tornando os
frágeis mais expostos ao sofrimento de uma patologia psiquiátrica, como
aconteceu com a Covid. O risco da incerteza é de perder o nosso presente e
as oportunidades do futuro. Outro tema que vemos em toda a população, mas
principalmente entre os idosos, é a solidão. Somos animais sociais e precisamos
de relações para nos sentirmos bem. Vimos isso com a Covid: sair do
isolamento foi diferente para um jovem de 14 anos e para um adulto de 67 anos.
Isso também vale para os jovens que se isolam: quando você é rejeitado pelo
grupo, a solidão se torna avassaladora”.
“O aspecto mais
difícil do meu trabalho – responde Marasco – é convencer o paciente
de que ele tem pleno direito, com todos os direitos e como todos os outros,
dentro da sociedade. E voltamos à superação do estigma que nós, psiquiatras,
também sofremos”.
Cerveri conclui:
“é difícil trabalhar sem ter os instrumentos para ajudar as pessoas. E, se a
pessoa não se cura, é frustrante. Depois da lei Basaglia, faltou a
narrativa para nós, psiquiatras: não conseguimos contar o que está acontecendo,
somos vistos ora como os violentos que amarram as pessoas, ora como os que
liberam sujeitos perigosos. Porém, a quantidade de pessoas que nos pedem ajuda
e de quem depois se sente melhor não diminui. E não se investe em saúde mental
porque é uma área que não agrada”.
Fonte: Por A Jessica
Chia, no Corriere della Sera - tradução
de Moisés Sbardelotto, para IHU
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