E se o golpe de Bolsonaro tivesse
funcionado? Um país alternativo para os negacionistas
Depois dos
negacionistas das vacinas e da Terra redonda, agora temos os negacionistas do
plano de golpe de Jair Bolsonaro. Eles fecham os olhos para as múltiplas
evidências coletadas pela Polícia Federal e atribuem tudo a uma “narrativa” da
imprensa, conforme acusou o pastor evangélico Silas Malafaia na semana passada.
Só uma pergunta ao pastor: e se fosse o Lula?
Os novos negacionistas
certamente são encontrados aos milhares na direita, no bolsonarismo, no
ruralismo, no meio evangélico. Mas há também os negacionistas de boa-fé que
podem ser achados em todos os campos da política. São honestamente céticos ao
extremo. Primeiro dizem que Bolsonaro nunca teria conseguido convencer as
Forças Armadas, como se elas não estivessem inundadas pelo antipetismo e pelo
bolsonarismo de alto a baixo ou como se não tivessem um DNA golpista.
Como se não tivessem
permitido os acampamentos na frente dos quartéis. Ou não tivessem
desconsiderado a destruição da Amazônia e o genocídio Yanomami, em plena
sintonia com a política de Bolsonaro. Em todos esses casos, por onde andavam os
ditos legalistas? É claro que nutriam, no mínimo, uma imensa
simpatia pelo capitão reformado.
Mas ainda que
Bolsonaro tivesse conseguido dar o golpe, dizem os céticos, a ilegalidade pouco
duraria porque a pressão internacional seria tremenda, associada aos problemas
de ordem interna. Por isso dão-lhe o apelido fofo de “golpezinho”. Ou o
classificam como uma aventura louca de um bando de incompetentes. Após
consultar suas bolas de cristal, declaram convictos: “Imagina, nunca teria dado
certo”. (Antes, eles diziam que Bolsonaro era um democrata e que sua eleição
não representava um risco à democracia.)
Saber se o golpe
duraria muito ou pouco é puro exercício de futurologia. Mas não custa nada
ressaltar que o último dado no Brasil durou 21 anos.
“Ah, mas naquela época
havia um apoio maciço da imprensa, do empresariado, da Igreja.” Bolsonaro já
tem um amplo apoio no agronegócio, nos bancos, no mercado de capitais e em
diversos setores dos meios de comunicação. Além disso, na política, apoio pode ser
rapidamente conquistado. O poder é como um ímã que atrai e inebria os
deslumbrados, que costumam ser muitos e poderosos.
Além disso, o apoio
popular a Bolsonaro continua altíssimo, apesar de tudo o que o país já sabe
sobre o ex-presidente. Ou sobre o genocídio Yanomami no seu governo. Ou sobre o
uso da máquina para elegê-lo em 2022. Entre seus eleitores, quem se importa? Eles
são quase a metade do Brasil.
Sobre as pressões
internacionais, cabe lembrar: o governo de Vladimir Putin invadiu a Ucrânia em
afronta a poderosas forças políticas e econômicas no planeta e lá permanece há
dois longos anos, mantendo um conflito insuportável sob todos os pontos de vista,
ao custo de mais de 10 mil civis mortos, inclusive mulheres e crianças.
Um segundo exemplo:
após um ataque infame e covarde do grupo terrorista Hamas, o governo de
Benjamin Netanyahu em Israel deflagrou uma guerra contra Gaza que já matou mais
de 30 mil pessoas, um massacre insuportável sob todos os pontos de vista. Quem
conseguiu impedir ou acabar com essas guerras?
“Ah, mas com a Rússia
é diferente, a Europa depende do seu gás.” Como se o Brasil não fosse um enorme
exportador de grãos para potências globais.
Os negacionistas do
golpe, a exemplo dos negacionistas de um modo geral, sempre encontram saídas
para suas teorias ao apresentar novas questões que também têm respostas
objetivas, mas que sempre serão acrescidas de novas dúvidas. É um círculo
vicioso do qual não conseguem nem querem sair.
Não se sabe se o golpe
duraria muito ou pouco. A certeza hoje é que o Brasil esteve bem perto do
abismo.
Mas, se as provas são
insuficientes para convencer os negacionistas, talvez levando adiante o cenário
traçado nos planos de Bolsonaro as coisas fiquem mais claras. Teria sido mais
ou menos assim:
Em 7 de dezembro de
2022, os comandantes do Exército, Marco Antonio Freire Gomes, e da Aeronáutica,
Carlos Baptista Júnior, cedem às pressões de Bolsonaro e do ministro da Defesa,
Paulo Sérgio Nogueira Oliveira, unem-se ao comandante da Marinha, Almir Garnier,
e passam a apoiar a decretação de estado de sítio no Brasil. Trata-se de um
eufemismo para golpe de Estado porque se destina a impedir a posse do
adversário de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, legalmente eleito em
outubro dentro das regras democráticas.
Os comandantes
militares em seguida comunicam sua decisão aos chefes militares regionais, que,
obedecendo à cadeia de comando, repassam as novas diretrizes aos seus
subordinados. Não obedecer representaria prisão por quebra de hierarquia e
indisciplina.
Gomes e Baptista
Júnior dão de ombros para a pressão internacional e todas as consequências
internas e externas de um golpe. Cegos pela ideologia incendiária e
divisionista do seu líder Bolsonaro, ajudam a enfiar o país numa aventura de
desdobramentos imprevisíveis. Se dará certo, não se sabe; o fato é que os
comandos das três Forças Armadas resolvem virar a mesa.
Comandantes de todas
as unidades militares Brasil afora são orientados a anunciar às suas tropas,
reunidas em regime de urgência, que as Forças Armadas não reconhecem a eleição
do presidente eleito e que a posse marcada para janeiro de 2023 não mais ocorrerá.
Bolsonaro e seus militares criam uma espúria e ilegal “comissão eleitoral” que
adota, como primeira medida, suspender os efeitos da eleição de 2022.
Eventuais dissidentes
na caserna, como o general Tomás Paiva, são imediatamente presos e mantidos
incomunicáveis. Outros críticos identificados no corpo da tropa são removidos
em questão de horas. Sem a troca de informações entre os resistentes, o
dissenso que poderia aflorar é rapidamente reprimido sem que seja necessário
disparar um único tiro.
Como as Forças Armadas
estão inundadas pelo bolsonarismo e pelo ódio a Lula e ao PT, a tarefa não é
tão difícil. Muitos oficiais precisam só de um empurrãozinho para rasgar a
Constituição. Eles raciocinam que é só acompanhar os generais que ninguém será punido.
Está no jargão que os militares vivem repetindo, “o exemplo arrasta”.
Tropas das Forças
Armadas cercam, inclusive com blindados, os prédios do STF e do TSE em
Brasília. O ministro Alexandre de Moraes é imediatamente preso e levado, também
incomunicável, a um quartel. Um processo militar é inventado para incriminá-lo
e disseminar fake news de “fraude” nas eleições. Eventuais reações dos
seguranças ou policiais nos tribunais são facilmente debeladas – afinal de
contas, são milhares de militares armados com fuzis, granadas, tanques e caças
contra poucas dezenas de funcionários públicos portando apenas armas leves.
Impossível resistir, basta ver o que houve no 8 de Janeiro.
Com seus poderes
anulados e o prédio fechado pelos militares, o TSE não consegue fazer a
solenidade de diplomação de Lula e de seu vice eleito, Geraldo Alckmin, marcada
para dali uma semana, em 12 de dezembro. A fim de reduzir uma reação política
mais aguda, tropas especiais prendem Lula e outros líderes da oposição, que são
levados em aviões da FAB para unidades militares distantes no meio da Amazônia.
Ainda sob o impacto da
prisão de Moraes e Lula, o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco
rapidamente capitulam. Muitos lembrarão que, durante meses a fio, eles se
recusaram a iniciar um processo de impeachment contra Bolsonaro. No geral foram
mais aliados do que opositores, então está tudo sob controle no campo do
Congresso Nacional, já amplamente dominado pelo ruralismo, pelos evangélicos,
pela bancada da bala, pela direita. Tanto que Bolsonaro mandara retirar o nome
de Pacheco da lista dos presos pós-golpe (o nome de Lira nem aparecia).
A multidão na frente
dos quartéis é tomada por um frenesi que vai justificar toda a violência
estatal. Eles apoiam e empoderam os militares. Saem em passeata ao lado dos
militares, que por sinal nem se consideram sublevados, já que seguem as
orientações vindas de cima. Isso lhes dá o argumento falso e inconstitucional
de que a hierarquia foi devidamente respeitada. Afinal de contas, banalmente
maus, apenas seguem ordens.
Importante notar que
os bolsonaristas não precisarão destruir as sedes do Executivo, do Legislativo
e do Judiciário em Brasília – a destruição das instituições ocorre de outro
jeito, por dentro, por isso será muito mais efetiva e duradoura.
Em um efeito dominó,
as polícias Civil e Militar de diversos estados controlados pela direita
anunciam adesão ao golpe. A Polícia Rodoviária Federal bloqueia, com apoio de
caminhoneiros, diversas rodovias a fim de dificultar manifestações
anti-Bolsonaro.
As embaixadas e
líderes de países estrangeiros se apressam a emitir, com palavras fortes, uma
condenação ao golpe em andamento no Brasil. Aliados nas Américas e na Europa
anunciam retaliações comerciais. Isso terá um efeito na economia, mas incapaz
de derrubar o governo. Como não derrubaram Putin.
A parte expressiva do
país que apoiou toda a incompetência cínica do governo de Bolsonaro segue
apoiando vivamente o golpe. Os empresários da agricultura batem palmas e saem
em carreatas empunhando a bandeira nacional.
A fim de calar as
críticas internas, Bolsonaro faz uma série de ameaças veladas ou explícitas aos
donos dos principais meios de comunicação tradicionais. A família Marinho, dona
da TV Globo, que é o principal foco da raiva de Bolsonaro pela capacidade que
teve de fazer e amplificar as críticas ao seu governo durante os últimos quatro
anos, reúne-se de forma emergencial para decidir se manterá a cobertura crítica
ou se recuará a fim de não ver a emissora retirada do ar, o que resultaria em
desemprego em massa e quebra da bilionária empresa.
Acionando o instinto
de sobrevivência, muitos influenciadores de redes sociais passam a exercer a
autocensura.
Aos poucos uma
oposição ao golpe começa a ser organizada. Os de sempre que foram à linha de
frente nas crises anteriores – a saber: trabalhadores rurais sem-terra,
estudantes, professores, indígenas, sindicalistas, advogados, militantes de
partidos políticos de esquerda, jornalistas, servidores públicos, profissionais
da saúde – tentam organizar passeatas e protestos.
As manifestações são
duramente reprimidas. Por meio das tropas de choque das PMs, o regime enfrenta,
espanca e até mata. O Brasil dá um mergulho no caos e na violência política com
resultados imprevisíveis. O “golpezinho” de Bolsonaro vai mudar a vida de
milhões de brasileiros, alguns de forma irreversível. Mas não era só um bando
de trapalhões?
O cenário hipotético
acima pareceria absurdo uns cinco anos atrás. Hoje, com tudo o que sabemos a
partir da investigação da Polícia Federal, é fácil concluir que poderia
perfeitamente ter se tornado realidade.
Quando tomou posse na
Presidência em janeiro de 2019, Bolsonaro jurou para todo o país, ao vivo na televisão:
“Prometo manter, defender e cumprir a Constituição”.
A Carta Magna diz, em
seu artigo 77, parágrafo 2º: “Será considerado eleito Presidente o candidato
que […] obtiver a maioria absoluta de votos”.
Segundo o famoso
discurso do deputado Ulysses Guimarães em 1988, “traidor da Constituição é
traidor da Pátria”. “Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar
os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. A persistência da
Constituição é a sobrevivência da democracia.”
Quase a metade dos
eleitores aptos a votar em 2022 escolheu Bolsonaro. Esses milhões de
brasileiros aparentemente não se importam em seguir aqueles que optaram por
trilhar o caminho maldito. Também são negacionistas da Constituição e da
democracia.
Fonte: Por Rubens
Valente, da Agencia Pública
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