Milly Lacombe: Lula dá mostra e prova que está
matando a esquerda
Lula mandou cancelar
os atos sobre a ditadura militar que completa 60 anos esse mês. Em seguida, o
presidente cancelou também a criação do Museu da Memória e dos Direitos
Humanos. Trata-se de dois episódios de uma pauta muito básica da esquerda: o
direito à memória. Só com a elaboração do passado podemos não repetir seus
horrores. Quem visita o museu do Apartheid em Joanesburgo, na África do Sul,
sabe da força arrebatadora que a memória traz.
A ditadura de 64,
nunca punida, nunca refletida, deu no 8 de janeiro de 2023. Enquanto nossos
fantasmas não forem trazidos para o centro do debate os riscos de ditaduras
voltarem seguem vivos.
Seria preciso coragem
para jogar luz no passado, condenar vivos e mortos, derrubar estátuas de
ditadores e genocidas, colocar as forças armadas em seu devido lugar. Lula
capitulou. Ou não acha importante.
Se o ministério dos
direitos humanos tem que engolir a seco privatização de presídios e
cancelamento de um museu fundamental, para que serve o ministério dos direitos
humanos?
As provas do
falecimento da esquerda seguem sendo jogadas em nossas caras. Em recente
entrevista à Folha de S.Paulo, a ministra da Mulher, Cida Gonçalves, se recusou
a debater o aborto. Quem ler a entrevista atentamente pode enxergar até o
pensamento de Damares Alves nas declarações de uma ministra supostamente de
esquerda: a defesa à família, o medo de aprofundar o debate, o conservadorismo
pulsante. Quando a reportagem tentou focar no aborto a ministra ameaçou
encerrar a entrevista.
Que diabo é isso? Uma
ministra de esquerda, do ministério da mulher, que não fala em aborto? Vamos
seguir amedrontados com a necessidade de radicalizarmos o debate? Esse tipo de
covardia abre espaço para que, depois de Lula, venha um Bolsonaro ainda pior.
Não parece possível, certo? Eu diria que é mais do que possível: é bastante
provável diante de uma esquerda que deixou de entender que correlação de forças
vem das ruas também.
Que tipo de esquerda
abre mão do básico? Uma esquerda morta. Acho que o recente debate que envolveu
a colocação de Vladimir Safatle sobre a morte da esquerda fica encerrado. A
pergunta agora é: como renascer?
“O dom de despertar no
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo
vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”, Walter Benjamin em “Teses
sobre o Conceito de História”.
Ø
Alerta a Lula: Apaziguamento só amamenta o
golpismo
Enquanto as
investigações comprovam que uma parte considerável do Alto Comando das Forças
Armadas e da alta oficialidade, ainda que minoritária, se mobilizou para
consumar o golpe militar, o mandatário Luiz Inácio reiterou sua orientação: não
promover atos ou eventos condenatórios aos 60 anos do golpe de 64.
Para comprovar o erro
dessa política do governo de turno, bastaria citar como a receberam os setores
reacionários das classes dominantes. Representando a direita militar, o
ultrarreacionário Hamilton Mourão não teve dúvidas: “Ele está certo, isso é
passado”, disse, referindo-se ao golpe militar e ao regime militar fascista.
Já o Estadão,
acostumado a criticar Luiz Inácio, se apressou a sair em sua defesa: “Lula age
corretamente” ao se negar a falar do golpe de 1964 na passagem dos seus 60
anos, em consonância com “um imperativo da governabilidade num contexto de
feridas à espera de cicatrização” e “também é uma forma de prestigiar o atual
comando militar, também artífice da pacificação”, afirmou no editorial “A
acomodação de Lula com os militares” (17 de março). Por falar em feridas, é
simplesmente patético que o Estadão que já defendeu que o governo reabra a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), aquilo que
Luiz Inácio se recusa a fazer, capitule fazendo coro com a cumplicidade covarde
desse governo.
Apenas os ideólogos
reacionários – comprometidos antes de tudo com a continuidade da exploração do
povo e da Nação – e os oportunistas, de cuja mentalidade castrada por décadas
de subserviência e conciliação com os inimigos das massas populares creem que o
apaziguamento conduzirá à estabilização do País.
Não é verdade que
recordar 1964 seja inoportuno. Os episódios da grave crise militar de 2022 e o
golpe de 1964 não são feridas à espera de cicatrização: são, antes, feridas
abertas, infeccionadas, e portanto não podem cicatrizar sem antes passar por
dolorosa remoção dos tecidos apodrecidos. Todos os apaziguadores se esquecem
que, por detrás dos “galinhas verdes” processados e condenados pelo 8 de
janeiro, esteve o Alto Comando das Forças Armadas, em especial do Exército, que
desde 2016 passaram a intervir diretamente na vida política nacional e nas
instituições estatais, através de operações de guerra psicológica, como
chantagens, ameaças e coações aos dirigentes destas. Esquecem-se que fora esse
mesmo Alto Comando que, através de palestras de altos oficiais, mobilizou e
incitou essa opinião pública reacionária anticomunista em seus baixos instintos
e que passara a agitar a palavra de ordem de “Intervenção militar”, antes de
Bolsonaro ter a relevância que passou a ter. Ignoram que, muito antes de
Bolsonaro, foi o Alto Comando, através de generais da ativa – o então
comandante do Exército general Villas Bôas e o ex-comandante militar do Sul
general Mourão –, que colocou na ordem do dia a ruptura institucional em caso
de “grave crise institucional” e “caos social” e colocaram as Forças Armadas
para atuar diariamente como força política reacionária contrária às liberdades
democráticas nas discussões parlamentares, judiciárias e eleitorais – o que é
já uma intervenção, pois as Forças Armadas se impõem através das armas, ainda
que seus tanques tenham só desfilado pela Esplanada dos Ministérios como que de
passagem a treinamentos no interior de Goiás.
Ainda antes de
Bolsonaro, o Alto Comando modificou o resultado das eleições (2018), ao retirar
Luiz Inácio do páreo, através de chantagem durante uma votação do habeas corpus
daquele candidato na Suprema Corte.
Como vemos: muito
antes de Bolsonaro assumir – e independente dele – a latente ferida do golpismo
voltava a se manifestar de forma aguda, inclusive porque não fora devidamente
tratada desde 1988, quando o anterior apaziguamento com os gorilas e transição
com o regime militar da Anistia Geral e Irrestrita, conduziu em que não houve
punição, nem mudança na alta oficialidade militar, nem nos currículos de
formação, tampouco na doutrina das Forças Armadas, que seguiram, todos esses
anos, glorificando o golpe de 1964 como movimento legítimo e até mesmo como
“revolução democrática”, e quando de seu afastamento do primeiro plano do
gerenciamento do velho Estado, retomado a crença de serem as Forças Armadas
como Poder Moderador e fiadoras do “Estado Democrático de Direito” – e,
portanto, também fiadoras da sua restrição ou mesmo suspensão, como de modo
descarado tentou fazer Bolsonaro.
Também é uma estupidez
crer, como sugere o editorial do Estadão, que “o atual comando militar” seja
“artífice da pacificação” e, portanto, confiável. A pacificação que esses
senhores propõem se deve ao fato de que se encontram em situação de grande
desmoralização, por sua identificação com todos os maus feitos do governo
militar genocida de Bolsonaro do qual foram parte. Mas não faz mal recordar que
o atual comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, e o ex-comandante
Freire Gomes, ambos tidos como nobres figuras democráticas, se bem não
concordaram com a ruptura institucional naquele momento e declararam-se
publicamente, estiveram no Alto Comando durante todo esse período em que as
Forças Armadas voltaram a praticar sua intervenção militar, agora através das
vias institucionais. Eles, também, são irredutíveis na crença de que é papel
das Forças Armadas serem moradoras: a diferença deles para os bolsonaristas é
que, para os primeiros, as Forças Armadas devem moderar no sentido de conjurar
a divisão destas, o que a experiência histórica comprova que ante a eminência
de tal situação, a sua coesão se assegura tomando posição pela extrema direita,
ou mais ainda, se para isto tenham a ordem ou o acordo do Tio San. No caso
atual, foi principalmente esta última determinante a que prevaleceu: os ianques
vetaram e a ruptura não ocorreu.
Quando Luiz Inácio
elege a política do apaziguamento para tratar com a crise militar, ele está
permitindo que se restabeleçam todas as condições favoráveis para o Alto
Comando militar voltar à ofensiva mais adiante. Quando as massas se levantarem
em defesa de seus direitos, o que é inevitável, os gorilas, como Poder
Moderador que se creem, novamente se erguerão ameaçando o País com a
intervenção militar para salvar a Nação da “desintegração”. Por não terem sido
confrontados seriamente quando estavam desmoralizados e fragilizados, os
gorilas encontrarão terreno favorável para uma nova escalada golpista.
O apaziguamento com a
cúpula militar só amamenta o golpismo!
Aos democratas
genuínos, progressistas e revolucionários, ademais das massas populares em
luta, não resta outro caminho que não o de levantar com contundência a campanha
de denúncia dos 60 anos do ignominioso golpe de 1964 e do golpismo, seja na
forma de ruptura institucional, seja na forma de “Poder Moderador”. Não são
aceitáveis os compromissos com os fascistas e os golpistas – os quais só nos
levariam ao golpe e ao fascismo.
Ø
Jornalista revela que Freire Gomes já
discutiu prisão de Alexandre de Moraes
Dentro das instituições
reacionárias brasileiras, a luta entre as Forças Armadas e o Supremo Tribunal
Federal vem sendo travada desde a década passada, particularmente após os
levantamentos populares de 2013-2014 e a Operação Lava-Jato. Nos anos
seguintes, frente à crise política e os abalos institucionais, as contradições
tornaram-se mais e mais agudas na disputa por definir qual a forma deveria
assumir o velho Estado brasileiro para conduzir o sistema de exploração do
povo.
Tomemos como exemplo o
ex-comandante do Exército Freire Gomes. Hoje chamado de “traidor” por
bolsonaristas e tratado como “santinho” por parte dos analistas reacionários e
por parte do governo federal, algum desavisado poderia pensar que sua
contribuição para o país está em apaziguar os abalos políticos provocados pela
extrema-direita. Pois bem, até bem pouco tempo este senhor estava discutindo um
esquema para prender Alexandre de Moraes. As informações são de Vera Rosa, do
Estado de São Paulo.
Em agosto de 2022,
quando ainda era comandante do Exército, Freire Gomes se reuniu com os demais
comandantes e outros generais às portas fechadas para discutir a convocação
pelo recém empossado presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) –
Alexandre de Moraes – de uma reunião extraordinária com os comandantes-gerais
das Polícias Militares para discutir a segurança das eleições. Queixando-se
que, pela Constituição, quem comanda as PMs e as forças auxiliares é o Exército
e que não foi sequer consultado por Moraes, Freire Gomes, enfurecido, chegou a
discutir uma proposta de solicitar à Procuradoria Geral da República a prisão
do ministro do STF. Um olhar atento conclui que a Constituição, afinal de
contas, pode servir aos propósitos intervencionistas das Forças Armadas e que,
muito provavelmente, tal pedido seria atendido pelo então Procurador Geral da
República, Augusto Aras.
Há ministros do STF,
dentre eles Gilmar Mendes, que defendem investigações nos próximos três meses
de oficiais que, sabendo do plano de golpe de Bolsonaro, nada fizeram. Outros,
como André Mendonça, seguem defendendo a tese dos militares, segundo a qual não
se deve mexer nos oficiais, somente em Jair Bolsonaro. Ainda que a Nação mereça
ter conhecimento de tudo que armaram os comandantes militares no objetivo de
puni-los por seus crimes contra o povo, não se pode ter ilusão com a direita liberal que encabeça o STF.
Também por isso se
confirma a justeza do alerta levantado por essa tribuna de que não se deve
confiar em tudo que se fala nos monopólios de comunicação. Tanto mais quando se
trata das Forças Armadas que, após o fim do regime militar, conduziram um
processo de anistia ampla, uma Assembleia Constituinte na qual impuseram
artigos que dão brecha para a intervenção dos militares (Artigo 142) e cujo
nome de maior prestígio dos últimos 30 anos (general Eduardo Villas-Bôas)
admitiu que as Forças Armadas reacionárias devem ser “protagonistas silenciosas
para que a sociedade saiba que a crise não ultrapassará certos limites”,
lançando as consignas de “legitimidade, estabilidade, legalidade”.
Fonte: UOL/A Nova
Democracia
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