sexta-feira, 22 de março de 2024

Milly Lacombe: Lula dá mostra e prova que está matando a esquerda

Lula mandou cancelar os atos sobre a ditadura militar que completa 60 anos esse mês. Em seguida, o presidente cancelou também a criação do Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Trata-se de dois episódios de uma pauta muito básica da esquerda: o direito à memória. Só com a elaboração do passado podemos não repetir seus horrores. Quem visita o museu do Apartheid em Joanesburgo, na África do Sul, sabe da força arrebatadora que a memória traz.

A ditadura de 64, nunca punida, nunca refletida, deu no 8 de janeiro de 2023. Enquanto nossos fantasmas não forem trazidos para o centro do debate os riscos de ditaduras voltarem seguem vivos.

Seria preciso coragem para jogar luz no passado, condenar vivos e mortos, derrubar estátuas de ditadores e genocidas, colocar as forças armadas em seu devido lugar. Lula capitulou. Ou não acha importante.

Se o ministério dos direitos humanos tem que engolir a seco privatização de presídios e cancelamento de um museu fundamental, para que serve o ministério dos direitos humanos?

As provas do falecimento da esquerda seguem sendo jogadas em nossas caras. Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, a ministra da Mulher, Cida Gonçalves, se recusou a debater o aborto. Quem ler a entrevista atentamente pode enxergar até o pensamento de Damares Alves nas declarações de uma ministra supostamente de esquerda: a defesa à família, o medo de aprofundar o debate, o conservadorismo pulsante. Quando a reportagem tentou focar no aborto a ministra ameaçou encerrar a entrevista.

Que diabo é isso? Uma ministra de esquerda, do ministério da mulher, que não fala em aborto? Vamos seguir amedrontados com a necessidade de radicalizarmos o debate? Esse tipo de covardia abre espaço para que, depois de Lula, venha um Bolsonaro ainda pior. Não parece possível, certo? Eu diria que é mais do que possível: é bastante provável diante de uma esquerda que deixou de entender que correlação de forças vem das ruas também.

Que tipo de esquerda abre mão do básico? Uma esquerda morta. Acho que o recente debate que envolveu a colocação de Vladimir Safatle sobre a morte da esquerda fica encerrado. A pergunta agora é: como renascer?

“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”, Walter Benjamin em “Teses sobre o Conceito de História”.

 

Ø  Alerta a Lula: Apaziguamento só amamenta o golpismo

 

Enquanto as investigações comprovam que uma parte considerável do Alto Comando das Forças Armadas e da alta oficialidade, ainda que minoritária, se mobilizou para consumar o golpe militar, o mandatário Luiz Inácio reiterou sua orientação: não promover atos ou eventos condenatórios aos 60 anos do golpe de 64.

Para comprovar o erro dessa política do governo de turno, bastaria citar como a receberam os setores reacionários das classes dominantes. Representando a direita militar, o ultrarreacionário Hamilton Mourão não teve dúvidas: “Ele está certo, isso é passado”, disse, referindo-se ao golpe militar e ao regime militar fascista.

Já o Estadão, acostumado a criticar Luiz Inácio, se apressou a sair em sua defesa: “Lula age corretamente” ao se negar a falar do golpe de 1964 na passagem dos seus 60 anos, em consonância com “um imperativo da governabilidade num contexto de feridas à espera de cicatrização” e “também é uma forma de prestigiar o atual comando militar, também artífice da pacificação”, afirmou no editorial “A acomodação de Lula com os militares” (17 de março). Por falar em feridas, é simplesmente patético que o Estadão que já defendeu que o governo reabra a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), aquilo que Luiz Inácio se recusa a fazer, capitule fazendo coro com a cumplicidade covarde desse governo.

Apenas os ideólogos reacionários – comprometidos antes de tudo com a continuidade da exploração do povo e da Nação – e os oportunistas, de cuja mentalidade castrada por décadas de subserviência e conciliação com os inimigos das massas populares creem que o apaziguamento conduzirá à estabilização do País.

Não é verdade que recordar 1964 seja inoportuno. Os episódios da grave crise militar de 2022 e o golpe de 1964 não são feridas à espera de cicatrização: são, antes, feridas abertas, infeccionadas, e portanto não podem cicatrizar sem antes passar por dolorosa remoção dos tecidos apodrecidos. Todos os apaziguadores se esquecem que, por detrás dos “galinhas verdes” processados e condenados pelo 8 de janeiro, esteve o Alto Comando das Forças Armadas, em especial do Exército, que desde 2016 passaram a intervir diretamente na vida política nacional e nas instituições estatais, através de operações de guerra psicológica, como chantagens, ameaças e coações aos dirigentes destas. Esquecem-se que fora esse mesmo Alto Comando que, através de palestras de altos oficiais, mobilizou e incitou essa opinião pública reacionária anticomunista em seus baixos instintos e que passara a agitar a palavra de ordem de “Intervenção militar”, antes de Bolsonaro ter a relevância que passou a ter. Ignoram que, muito antes de Bolsonaro, foi o Alto Comando, através de generais da ativa – o então comandante do Exército general Villas Bôas e o ex-comandante militar do Sul general Mourão –, que colocou na ordem do dia a ruptura institucional em caso de “grave crise institucional” e “caos social” e colocaram as Forças Armadas para atuar diariamente como força política reacionária contrária às liberdades democráticas nas discussões parlamentares, judiciárias e eleitorais – o que é já uma intervenção, pois as Forças Armadas se impõem através das armas, ainda que seus tanques tenham só desfilado pela Esplanada dos Ministérios como que de passagem a treinamentos no interior de Goiás.

Ainda antes de Bolsonaro, o Alto Comando modificou o resultado das eleições (2018), ao retirar Luiz Inácio do páreo, através de chantagem durante uma votação do habeas corpus daquele candidato na Suprema Corte.

Como vemos: muito antes de Bolsonaro assumir – e independente dele – a latente ferida do golpismo voltava a se manifestar de forma aguda, inclusive porque não fora devidamente tratada desde 1988, quando o anterior apaziguamento com os gorilas e transição com o regime militar da Anistia Geral e Irrestrita, conduziu em que não houve punição, nem mudança na alta oficialidade militar, nem nos currículos de formação, tampouco na doutrina das Forças Armadas, que seguiram, todos esses anos, glorificando o golpe de 1964 como movimento legítimo e até mesmo como “revolução democrática”, e quando de seu afastamento do primeiro plano do gerenciamento do velho Estado, retomado a crença de serem as Forças Armadas como Poder Moderador e fiadoras do “Estado Democrático de Direito” – e, portanto, também fiadoras da sua restrição ou mesmo suspensão, como de modo descarado tentou fazer Bolsonaro.

Também é uma estupidez crer, como sugere o editorial do Estadão, que “o atual comando militar” seja “artífice da pacificação” e, portanto, confiável. A pacificação que esses senhores propõem se deve ao fato de que se encontram em situação de grande desmoralização, por sua identificação com todos os maus feitos do governo militar genocida de Bolsonaro do qual foram parte. Mas não faz mal recordar que o atual comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva, e o ex-comandante Freire Gomes, ambos tidos como nobres figuras democráticas, se bem não concordaram com a ruptura institucional naquele momento e declararam-se publicamente, estiveram no Alto Comando durante todo esse período em que as Forças Armadas voltaram a praticar sua intervenção militar, agora através das vias institucionais. Eles, também, são irredutíveis na crença de que é papel das Forças Armadas serem moradoras: a diferença deles para os bolsonaristas é que, para os primeiros, as Forças Armadas devem moderar no sentido de conjurar a divisão destas, o que a experiência histórica comprova que ante a eminência de tal situação, a sua coesão se assegura tomando posição pela extrema direita, ou mais ainda, se para isto tenham a ordem ou o acordo do Tio San. No caso atual, foi principalmente esta última determinante a que prevaleceu: os ianques vetaram e a ruptura não ocorreu.

Quando Luiz Inácio elege a política do apaziguamento para tratar com a crise militar, ele está permitindo que se restabeleçam todas as condições favoráveis para o Alto Comando militar voltar à ofensiva mais adiante. Quando as massas se levantarem em defesa de seus direitos, o que é inevitável, os gorilas, como Poder Moderador que se creem, novamente se erguerão ameaçando o País com a intervenção militar para salvar a Nação da “desintegração”. Por não terem sido confrontados seriamente quando estavam desmoralizados e fragilizados, os gorilas encontrarão terreno favorável para uma nova escalada golpista.

O apaziguamento com a cúpula militar só amamenta o golpismo!

Aos democratas genuínos, progressistas e revolucionários, ademais das massas populares em luta, não resta outro caminho que não o de levantar com contundência a campanha de denúncia dos 60 anos do ignominioso golpe de 1964 e do golpismo, seja na forma de ruptura institucional, seja na forma de “Poder Moderador”. Não são aceitáveis os compromissos com os fascistas e os golpistas – os quais só nos levariam ao golpe e ao fascismo.

 

Ø  Jornalista revela que Freire Gomes já discutiu prisão de Alexandre de Moraes

 

Dentro das instituições reacionárias brasileiras, a luta entre as Forças Armadas e o Supremo Tribunal Federal vem sendo travada desde a década passada, particularmente após os levantamentos populares de 2013-2014 e a Operação Lava-Jato. Nos anos seguintes, frente à crise política e os abalos institucionais, as contradições tornaram-se mais e mais agudas na disputa por definir qual a forma deveria assumir o velho Estado brasileiro para conduzir o sistema de exploração do povo.

Tomemos como exemplo o ex-comandante do Exército Freire Gomes. Hoje chamado de “traidor” por bolsonaristas e tratado como “santinho” por parte dos analistas reacionários e por parte do governo federal, algum desavisado poderia pensar que sua contribuição para o país está em apaziguar os abalos políticos provocados pela extrema-direita. Pois bem, até bem pouco tempo este senhor estava discutindo um esquema para prender Alexandre de Moraes. As informações são de Vera Rosa, do Estado de São Paulo.

Em agosto de 2022, quando ainda era comandante do Exército, Freire Gomes se reuniu com os demais comandantes e outros generais às portas fechadas para discutir a convocação pelo recém empossado presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – Alexandre de Moraes – de uma reunião extraordinária com os comandantes-gerais das Polícias Militares para discutir a segurança das eleições. Queixando-se que, pela Constituição, quem comanda as PMs e as forças auxiliares é o Exército e que não foi sequer consultado por Moraes, Freire Gomes, enfurecido, chegou a discutir uma proposta de solicitar à Procuradoria Geral da República a prisão do ministro do STF. Um olhar atento conclui que a Constituição, afinal de contas, pode servir aos propósitos intervencionistas das Forças Armadas e que, muito provavelmente, tal pedido seria atendido pelo então Procurador Geral da República, Augusto Aras.

Há ministros do STF, dentre eles Gilmar Mendes, que defendem investigações nos próximos três meses de oficiais que, sabendo do plano de golpe de Bolsonaro, nada fizeram. Outros, como André Mendonça, seguem defendendo a tese dos militares, segundo a qual não se deve mexer nos oficiais, somente em Jair Bolsonaro. Ainda que a Nação mereça ter conhecimento de tudo que armaram os comandantes militares no objetivo de puni-los por seus crimes contra o povo, não se pode ter ilusão com a direita liberal que encabeça o STF.

Também por isso se confirma a justeza do alerta levantado por essa tribuna de que não se deve confiar em tudo que se fala nos monopólios de comunicação. Tanto mais quando se trata das Forças Armadas que, após o fim do regime militar, conduziram um processo de anistia ampla, uma Assembleia Constituinte na qual impuseram artigos que dão brecha para a intervenção dos militares (Artigo 142) e cujo nome de maior prestígio dos últimos 30 anos (general Eduardo Villas-Bôas) admitiu que as Forças Armadas reacionárias devem ser “protagonistas silenciosas para que a sociedade saiba que a crise não ultrapassará certos limites”, lançando as consignas de “legitimidade, estabilidade, legalidade”.

 

Fonte: UOL/A Nova Democracia

 

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