Ditadura e memória: o que Brasil poderia
aprender com Argentina
Às vésperas dos 60
anos do início da ditadura militar, presidente Lula barra recordação dos
assassinatos e torturas. Na Argentina esse indispensável processamento do
passado está bem mais avançado.Uma palavra composta do alemão desafia qualquer
estudante de línguas: "Vergangenheitsbewältigung" – traduzível como
"processamento do passado", no sentido de um ajuste de contas com a
história. Na Alemanha, ela se refere sobretudo ao modo como cada nova geração
lida com o Holocausto e impede que, a partir do país, volte a ocorrer um crime
contra a humanidade dessa ordem.
O processamento do
passado é um conceito extremamente atual no Brasil, neste momento, já que em 31
de março de 2024 completam-se 60 anos do golpe militar e do início da ditadura.
Porém esse jubileu não é processado, elaborado, mas sim ignorado.
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva bloqueou todo tipo de evento governamental que recorde as
violações dos direitos humanos nos 21 anos da ditadura militar. Ele declarou:
"O que eu não posso é […] ficar remoendo sempre. […] Sinceramente, eu não vou
ficar remoendo e vou tentar tocar esse país para frente.". Além disso:
"Em nenhum momento da história os militares foram punidos como estão sendo
punidos agora. Em nenhum momento um general foi chamado pela Polícia Federal
para prestar depoimento."
Não se sabe como as
Forças Armadas vão comemorar sua tomada do poder 60 anos atrás. O Clube Militar
do Rio de Janeiro programou um almoço pelo aniversário do golpe, em
"memória" do "movimento democrático" de 1964. Fora isso,
reina o silêncio nas casernas.
Lula deve bem saber
por que evita recordar aos militares o seu infame passado. Possivelmente teme
que eles se sintam provocados, e aí… Sim, e aí? O simples ato de levar adiante
esse pensamento já é assustador. Pois mostra como as Forças Armadas são poderosas
no Brasil, apesar da fracassada tentativa de golpe pela tropa fiel ao
ex-presidente Jair Bolsonaro, em 8 de janeiro de 2023.
Até hoje o Exército
nunca reconheceu sua responsabilidade pelas violações dos direitos humanos
durante a ditadura. Os inquéritos da Comissão da Verdade de 2014 mostraram que
os militares assassinaram, torturam e fizeram desaparecer 434 cidadãos, contudo
a autoimagem deles segue sendo a de defensores da Constituição.
Até então uma figura
apagada, Bolsonaro ficou conhecido no Congresso e iniciou sua campanha
eleitoral ao elogiar publicamente um dos torturadores notórios do regime, o
coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, como sendo seu ídolo.
Argentina acerta
contas com passado ditatorial
Na Argentina é
diferente. Também lá os militares negaram qualquer responsabilidade pelas
violações dos direitos humanos da ditadura de 1976 a 1983. Eles foram
absolvidos e anistiados nas duas décadas após a instituição da democracia – mas
aí foram chamados a prestar contas.
Iniciaram-se mais de
mil ações jurídicas, resultando em numerosas condenações, outros mil processos
estão em curso. Altos generais foram encarcerados, mas acima de tudo o ditador
Jorge Rafael Videla, que morreu na prisão.
Diversos monumentos na
Argentina recordam o passado sombrio. No Parque de la Memoria de Buenos Aires,
inaugurado em 2001, estão listados os nomes de 8.717 vítimas do regime. O
Espaço para a Memória e Direitos Humanos, situado na antiga Escola de Mecânica
da Armada (Esma), contém diversos memoriais contra as violações dos direitos
humanos da ditadura.
Entre outros, lá se
encontra o antigo Cassino dos Oficiais, onde era mantido um presídio
clandestino e o maior centro de torturas da Argentina, no qual foram torturados
cerca de 5 mil indivíduos. A maioria foi assassinada em seguida: apenas uns 200
sobreviveram.
Em 2023, o museu na
ex-Esma foi declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco: trata-se de
um dos mais opressivos monumentos de advertência aos crimes contra a
humanidade, em todo o mundo. No Brasil, poucos conhecem o Memorial da
Resistência de São Paulo.
Também na Argentina as
Forças Armadas não colaboraram espontaneamente para o processamento do passado:
o presidente Nestor Kirchner teve que confiscar as instalações da Esma em 2004
para transformá-las em memorial.
Um ato simbólico ficou
especialmente marcante: Kirchner ordenou que, perante os cadetes reunidos, o
comandante do Exército em pessoa retirasse da parede os retratos de Videla e de
Reynaldo Bignone, presidente argentino de facto de 1982 a 1983 e último da
ditadura.
Quanto tempo será
ainda preciso esperar até um presidente do Brasil mandar baixar os retratos de
Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo? No momento, nada
indica que será Lula a tomar tal iniciativa.
Fonte: Deutsche Welle
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