terça-feira, 5 de março de 2024

Sergio Abranches: a PEC da Impunidade 2.0

É muito grave a tentativa de deputados federais de aprovar medida que transforma os parlamentares numa casta acima da lei. Além de inconstitucional, tem sérias consequências para a democracia republicana e para a sociedade. Politicamente representa uma investida sobre as prerrogativas do Poder Judiciário e ato contra o processo judicial. É uma ofensa ao preceito constitucional, inarredável na democracia, de igualdade de todos perante a lei. No plano social, instituiria uma linhagem privilegiada, com poder para autorregular a apuração e punição de crimes que possa ter cometido.

É a segunda vez que a Câmara dos Deputados tenta blindar deputados de processos criminais. A primeira PEC da Impunidade, em 2021, pretendia submeter a prisão de parlamentares à aprovação do Congresso. Foi engavetada por causar repercussão muito negativa na sociedade.

A principal consequência da segunda PEC da Impunidade é proteger parlamentares suspeitos de conspirar contra o Estado Democrático de Direito e outros indiciados ou investigados por corrupção. Acobertaria, também, eventuais crimes de assédio sexual, violência contra a mulher e homofobia, que já foram punidos em assembleias legislativas e câmaras de vereadores. São crimes comuns. Não se justificam pelo exercício do cargo político eletivo.

Tudo que se apura sobre o projeto, indica a busca da impunidade por crimes comuns. É importante ressaltar que deputados e senadores não podem ser processados por atos ligados ao exercício da representação parlamentar, como opiniões, votos e iniciativas legislativas. É proteção correta e democrática.

O que se pretende com a PEC da Impunidade 2.0 é livrá-los de inquéritos por delitos dissociados da função parlamentar. Os parlamentares, no passado, eram favoráveis à prerrogativa de foro e a defenderam de todas as tentativas de eliminá-la. Em 2019, cogitaram ampliá-la limitando os poderes de juízes de primeira instância.

Diante dos inquéritos no STF contra parlamentares, principalmente sobre fake news e atos golpistas, querem eliminá-la para que os processos voltem à primeira instância.

Entre as ideias que circulam na Câmara dos Deputados, consta a autorização da Mesa Diretora para abertura de inquéritos, uma prerrogativa das autoridades encarregadas do processo judicial — portanto, uma invasão de esfera alheia ao Poder Legislativo. Querem, também, a quebra do sigilo de justiça, inclusive na fase de inquérito. O pretexto dessa última providência seria garantir o devido processo legal e o direito ao contraditório. Justificativa falaciosa.

Esse direito diz respeito à fase de julgamento, quando o indiciado se torna réu, e está preservado. Não pode ser estendido à fase de investigação, antes de encerrada toda a coleta de provas.

•        Abuso

A imunidade ampla, geral e irrestrita desejada por parlamentares é abusiva, ilegal e antidemocrática. É um projeto de poder e de impunidade. Se esse plano legislativo tivesse sucesso, levaria à captura de prerrogativas do Judiciário. A mesma pulsão que levou à dominância legislativa sobre o orçamento, invadindo área do Executivo. O efeito institucional é desequilibrar a estrutura republicana e desorganizar o processo político democrático.

É uma afronta à Constituição. Suas cláusulas pétreas, que não podem ser mudadas por emenda constitucional, asseguram os direitos e garantias individuais. Entre eles, está o direito à igualdade que inclui, expressamente, o direito à igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Portanto, iniciativas para proteger um determinado grupo do alcance da lei, do processo judicial, cairão por inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) — este, com certeza, será provocado a se manifestar. É, no fundo, mais um ataque ao Poder Judiciário, um ato deliberado de conflito entre Poderes por parte de parlamentares que temem o braço longo da lei.

O exame de constitucionalidade deveria barrar qualquer projeto dessa natureza na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), se ela levasse a sério suas atribuições regimentais. É dela a decisão sobre aspectos constitucional, legal, jurídico, regimental e de técnica legislativa de projetos, emendas ou substitutivos.

Em boa hora, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), antecipa o juízo que caberá à CCJ sobre a inconstitucionalidade da PEC. As decisões no Parlamento são sempre mais políticas do que jurídicas, mas a obediência e observação da Constituição são obrigações às quais um parlamentar não poderia se furtar.

 

       Bolsonarista autor de PEC nega revanchismo, mas fala em  "perseguição" do Judiciário

 

Autor da PEC da Blindagem, o deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE) diz não se tratar de uma proposta "revanchista" e garante ter apoio até da oposição para a emenda constitucional, que condiciona abertura de processo ou ação de busca e apreensão contra deputados e senadores à autorização prévia das direções das duas casas.

Em entrevista ao Correio, Valadares, que é apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro, apesar de seu partido compor a base do governo e ocupar três ministérios na Esplanada, negou que á proposta seja "bolsonarista" e de "direita" e garante ter apoio até da oposição. Até agora, apenas 99 deputados assinaram o apoio ao texto. São necessários 171 para a PEC iniciar sua tramitação.

"Infelizmente, estamos vendo que membros do parlamento estão sendo perseguidos e isso não é saudável para o país, para uma democracia. Não se trata de uma PEC revanchista, não é de vingança. Não quero confrontar o Judiciário, que tem meu respeito. Mas existe, de maneira nítida, um desequilíbrio entre os Poderes, e o Legislativo precisa ser protagonista para que os Poderes sejam reequilibrados", disse o parlamentar, que discorda da posição do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que se posicionou contra a emenda e não acha que abertura de processo judicial contra parlamentar deva depender de autorização do Congresso.

"Respeito a posição do presidente do Senado, do cargo que ocupa na República, mas, na nossa avaliação, não há interferência (no Judiciário). A Câmara e o Senado têm correção e hombridade para decidir se o caso merece ser investigado ou não, ou se trata de mera perseguição política", afirmou Valadares.

O deputado garante ter apoio "praticamente unânime" na Câmara e que está fazendo trabalho de "formiguinha" na coleta de assinaturas, no aguardo das decisões das bancadas partidárias.

Ainda que diga não ser uma proposta revanchista, Valadares anunciou e apresentou o texto da PEC estimulado pela ação da Polícia Federal contra o gabinete e a residência do deputado e aliado Carlos Jordy (PL-RJ), em 18 de janeiro, medida autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no inquérito dos atos antidemocráticos. O caso de Jordy é citado na justificativa de sua emenda.

 

Ø  Câmara discute ampliar ‘PEC da Blindagem’ com acesso a trechos sigilosos e restrição a inquéritos

 

Lideranças do Congresso à frente do projeto que visa ampliar a proteção a políticos, apelidada de “PEC da Blindagem”, discutem incluir no texto a garantia de que parlamentares investigados pela Justiça tenham acesso irrestrito, inclusive a trechos protegidos por sigilo, dos inquéritos em curso contra eles mesmos. Há ainda a intenção de criar regras mais rígidas para a prorrogação das investigações, além de proibir operações de busca e apreensão nas dependências do Congresso. Apesar de contar com apoio de deputados de diferentes alas na Casa, a matéria deve encontrar resistências caso chegue ao Senado. Entidades e especialistas criticam.

O debate em torno do alcance a pontos sigilosos foi revelado pelo blog da colunista Malu Gaspar, do GLOBO. A PEC, que ainda não foi apresentada formalmente, pretende consolidar um pacote de medidas para blindar deputados e senadores de investigações e operações policiais — principalmente do Supremo Tribunal Federal (STF). Outros pontos em discussão preveem exigir que o Congresso dê autorização para o início de apurações contra parlamentares e acabar com o foro privilegiado de congressistas, o que empurraria todos os processos à primeira instância.

A iniciativa tem apoio no Centrão, na oposição e até entre governistas. Na semana passada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que, se houver alterações legislativas neste sentido, “terão que ser negociadas entre Câmara e Senado”. O presidente da Casa vizinha, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já se disse contra e deu o tom de resistência entre os senadores.

·        “Como se defender?”

Ministros do STF ouvidos sob reserva veem a iniciativa com cautela e acreditam que é difícil que ela seja de fato implementada — seja pelo ambiente político ou pelos questionamentos à própria Corte que eventualmente surgirão em caso de aprovação.

Hoje, os ministros do Supremo costumam limitar o acesso dos investigados aos trechos de inquéritos que lhes digam respeito, e somente após a realização de operações de busca e apreensão e da análise do material apreendido. Antes disso, documentos, delações ou evidências que ainda não vieram à tona são mantidos sob sigilo até mesmo dos alvos.

— Não pode ter sigilo para a parte, que não pode ser processada sem saber do que está sendo acusada e sem conhecer as provas. Como ela pode se defender? É cumprir o devido processo legal, a ampla defesa e o direito ao contraditório — defendeu o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento (BA).

Para representantes do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, o fim do sigilo para os próprios parlamentares pode inibir a produção de novas provas que ainda dependam de interceptações, dificultar operações de busca e apreensão e até mesmo colocar em risco a proteção de testemunhas. Um subprocurador lembrou, reservadamente, que não cabe o contraditório em uma fase de investigação, já que não faz sentido um investigado conhecer o que está sendo produzido contra ele.

Ministros do STF, por sua vez, lembram que o “acesso amplo” aos autos de procedimentos investigatórios já é garantido por uma súmula editada em 2006 pelo tribunal. A inviabilidade do acesso se restringe, portanto, apenas a procedimentos investigatórios não concluídos, como uma interceptação telefônica que está sendo realizada.

A discussão da PEC ganhou fôlego na Câmara após o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizar medidas contra os deputados Carlos Jordy (PL-RJ) e Alexandre Ramagem (PL-RJ). Com o fim do foro, que está em discussão, parlamentares sairiam da alçada de Moraes. Hoje, deputados federais e senadores têm a prerrogativa de serem julgados pelo Supremo em questões envolvendo o exercício do cargo.

<<<<< Principais pontos da PEC:

  1. FREIO: Proibir operações de busca e apreensão contra parlamentares nas dependências do Congresso.
  2. REGALIA: Acabar com o foro privilegiado de parlamentares, o que levaria seus processos a outras instâncias antes de chegarem ao STF
  3. APURAÇÃO: Garantir que deputados e senadores investigados tenham acesso total aos inquéritos contra si, inclusive a trechos sob sigilo.
  4. PROTEÇÃO: Estabelecer que o início de apurações contra parlamentares seja submetido ao Congresso.
  5. LIMITAÇÃO: Impor prazos mais rígidos em relação aos inquéritos que correm contra parlamentares.

Jordy se tornou alvo da Polícia Federal por suposto envolvimento nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, enquanto Ramagem é investigado por conta do monitoramento ilegal feito pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo de Jair Bolsonaro.

— Eu defendo a retirada do foro do STF. Hoje, o deputado só é julgado por uma instância, é um absurdo. Acredito em um conjunto de medidas, sim. O sentimento de todos é votar uma defesa do Parlamento ainda no primeiro semestre — afirmou o líder do PL na Câmara, Altineu Côrtes (RJ).

Um dos caminhos em discussão é impor limites mais rígidos em relação à duração dos inquéritos — hoje, não há prazo máximo no caso de investigados que estão soltos. Embora o governo ainda não tenha se manifestado sobre o projeto, a maioria das lideranças de partidos da base se manifestou a favor da PEC em reuniões recentes entre os caciques partidários. Líder do PP, Doutor Luizinho (RJ) afirma que as discussões estão em andamento, mas que ainda não se chegou a uma versão final do texto:

— Temos uma preocupação grande, coletiva e unânime entre os líderes, pelo respeito ao exercício dos mandatos. Temos dialogado e tentado encontrar um meio-termo.

Investigações mirando parlamentares sempre causaram tensões entre Legislativo e Judiciário. Em 2016, o STF determinou que as operações de busca e apreensão nas dependências do Congresso não dependiam de autorização da Mesa Diretora, porque o mecanismo poderia comprometer a eficácia da medida. Em 2021, houve a tentativa de aprovar o que ficou conhecido como PEC da Impunidade, que condicionava a prisão de parlamentares à aprovação do Congresso. Com a reação, o texto acabou engavetado. Na ocasião, a iniciativa serviu como resposta à prisão do então deputado Daniel Silveira, que foi preso após atacar o STF e seus ministros.

·        “Reação a investigações”

Especialistas criticam a ofensiva. Para o advogado Gustavo Sampaio, professor de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF), há um “excesso” na proposta de submeter o início das investigações ao aval prévio do Congresso.

— Sou absolutamente contra esse condicionamento, que representa uma reação legislativa reacionária à pressão do sistema de Justiça criminal, que começa a investigar parlamentares de forma constante. É uma espécie de escudo que deputados estão querendo colocar para torná-los intocáveis, o que não é bom.

O professor de Direito da FGV-SP Roberto Dias entende que a PEC tem caráter corporativista de proteção de parlamentares e visa reforçar o discurso de que há uma tentativa de frear abusos do poder Judiciário.

— É um combate ao STF que ocorre há muitos anos, mas que se acirrou durante o governo Bolsonaro. A PEC me parece uma forma de gerar certas restrições para impedir o processo, a investigação e a eventual condenação de parlamentares que tenham cometido crimes, o que é um grande problema.

>>>> Idas e vindas das operações no Parlamento:

  • 2001: A Câmara decidiu que o Supremo Tribunal Federal (STF) não precisaria mais de licença do Legislativo para processar parlamentares por crimes comuns praticados antes do mandato.
  • 2016: O STF determinou que as operações de busca e apreensão nas dependências do Congresso não dependiam de autorização da Mesa Diretora porque poderia comprometer a eficácia da medida cautelar, sobretudo naquela ocasião, em que o investigado era o presidente da Casa, Eduardo Cunha, que, mais tarde, foi afastado do cargo, condenado e preso.
  • 2019: O STF anulou parte da Operação Métis, realizada no Senado em 2016, contra a Polícia Legislativa, por entender que o juízo de primeiro grau usurpou a competência da Corte Suprema para processar e julgar o caso, que apurava suposta obstrução de Justiça, por meio de varreduras telefônicas feitas pelos agentes em imóveis funcionais. As varreduras teriam sido pedidas por senadores, em paralelo às investigações da Operação Lava-Jato.
  • 2020: Uma operação de busca e apreensão da PF no gabinete do então senador José Serra (PSDB-SP) foi barrada pelo ministro Dias Toffoli, do STF. A pedido do Senado, ele concedeu liminar suspendendo a ação que apurava denúncia de caixa 2 nas eleições de 2014. Para Toffoli, havia "risco potencial" de serem coletados "documentos relacionados ao desempenho da atual atividade do congressista", o que não tinha a ver com o objetivo da investigação.
  • Em contrapartida, num desdobramento da Lava-Jato, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços funcionais do então deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), inclusive em seu gabinete na Câmara, por suspeita de caixa 2 nas eleições de 2010 e 2012 e lavagem de dinheiro. O inquérito estava no STF e foi para São Paulo em 2019, depois que o plenário da Corte decidiu que crimes como corrupção e lavagem, quando investigados junto a crimes eleitorais, devem ser analisados pela Justiça Eleitoral.

 

Fonte: Correio Braziliense/O Globo

 

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