A verdade sobre a ligação de Coco Chanel
com os nazistas na 2ª Guerra
A imaginação de Coco
Chanel (1883-1971) era inesgotável.
Nos anos 1910, ela
criou roupas com linhas simples, usando malha jersey confortável e liberando as
mulheres do espartilho. Ela depois viria a dar ao mundo o vestido preto básico
e o clássico perfume Chanel Nº 5.
Coco Chanel também foi
mestre em inventar a si própria. Ela se recusou a reconhecer sua infância
pobre, que a levou a ser criada por freiras depois que sua mãe morreu e seu pai
abandonou a família.
Depois do sucesso,
Chanel pagou seus dois irmãos para ficarem em silêncio sobre ela, sem causar
constrangimento pelas suas origens humildes. Sobrevivente e pragmática, Coco
Chanel gostava de contar altas histórias sobre sua vida.
Mas um fato sobre ela
é irrefutável: ela definitivamente colaborou com os nazistas durante a Segunda
Guerra Mundial. E pode também ter ajudado a Resistência Francesa.
A mulher tão
determinada a controlar sua imagem e seu legado acabou deixando uma história
emaranhada e confusa.
The New Look ("O
novo visual", em referência ao movimento criado pelo estilista Christian
Dior após a guerra) é a nova e vibrante série de TV sobre Coco Chanel e
Christian Dior (1905-1957). Passada na Segunda Guerra Mundial, a série analisa
a colaboração de Chanel com os nazistas, talvez oferecendo a interpretação
menos desfavorável já feita sobre o tema.
The New Look é repleta
de diálogos significativos, mas nenhuma fala é mais mencionada do que a
resposta de Dior (interpretado por Ben Mendelsohn) a um aluno da Universidade
Sorbonne em 1955. Dior era o maior astro da moda na época.
O estudante pede a ele
que justifique por que ele desenhava para as esposas e namoradas dos nazistas
durante a ocupação alemã de Paris, na França, enquanto Chanel (Juliette
Binoche) fechava sua casa de moda.
"Existe a
verdade", ele responde, "mas sempre existe outra verdade por trás
dela."
A série então retorna
de 1955 para os anos de guerra. Certamente, é uma obra de ficção inspirada por
fatos históricos. Mas ela indica com precisão a verdade sobre duas reações
muito diferentes à mesma guerra.
• As duas verdades
A verdade de Dior é
mais simples. Ele era totalmente leal à França.
Dior continuou
desenhando para os nazistas para manter e ganhar a vida. E usava o dinheiro
para apoiar os heroicos esforços de sua irmã, Catherine (Maisie Williams), para
a Resistência.
Catherine Dior
(1917-2008) acabou capturada, torturada e aprisionada em um campo de trabalhos
forçados. Sua história pouco conhecida pode ser a grande descoberta da série e
seu elemento mais comovente
Já os detalhes da
realidade de Chanel são obscuros e interpretados de formas muito diferentes até
hoje.
Sabe-se que ela teve
um longo caso amoroso com um agente nazista, Hans Günther von Dincklage
(1896-1974), conhecido como Spatz (interpretado na série por Claes Bang).
Ele e outros contatos
nazistas ajudaram o amado sobrinho de Chanel – André, que fazia parte do
exército francês – a ser libertado de um campo de prisioneiros alemão.
Também não há dúvida
de que ela se envolveu na chamada Operação Modelhut ("Chapéu Modelo",
em tradução livre), um esquema absurdo no qual um general nazista desonesto
autorizou Chanel a viajar para Madri, na neutra Espanha.
A esperança era que
ela levasse uma mensagem para seu velho amigo, o então primeiro-ministro
britânico Winston Churchill (1874-1965), sugerindo a negociação do fim da
guerra, ignorando Hitler sem qualquer preocupação.
O codinome de Chanel
era Westminster, uma indicação das suas fortes ligações com o Reino Unido e,
provavelmente, do seu caso amoroso de décadas com o duque de Westminster,
iniciado nos anos 1920.
A estilista também
tentou fazer uso das leis arianas dos nazistas, que impediam que judeus fossem
proprietários de empresas. Com base nelas, Chanel tentou retirar seus sócios
judeus do controle da sua companhia de perfumes, sem sucesso.
Coco Chanel
(interpretada na série por Juliette Binoche) manteve um longo romance com o
agente nazista Hans Günther von Dincklage (Claes Bang).
Alguns biógrafos e
historiadores já difamaram Chanel por essas ações. Um deles foi o escritor
americano Hal Vaughan (1928-2013), no seu chocante livro Dormindo com o
Inimigo: A Guerra Secreta de Coco Chanel (Ed. Cia. das Letras, 2011).
Rhonda Garelick, uma
das mais cuidadosas e astutas biógrafas de Chanel, conclui no seu livro de 2014
intitulado Mademoiselle: Coco Chanel and the Pulse of History
("Mademoiselle [senhorita]: Coco Chanel e o Pulso da História", em
tradução livre), que ela provavelmente acreditava na causa nazista e era
motivada pela conveniência, interesse próprio e antissemitismo.
"O patriotismo
sempre significou menos para ela do que o poder", escreve Garelick.
"Ela nunca reconheceu as implicações de tentar invocar as leis hediondas
de arianização dos nazistas contra seus próprios parceiros comerciais."
Mas a escritora
Justine Picardie conta à BBC que "é fácil demais dizer que Chanel era
nazista". Picardie é autora de uma biografia de Catherine Dior intitulada
Miss Dior (2021) e uma nova edição em inglês do seu livro Coco Chanel: A Vida e
a Lenda (Ed. HarperCollins, 2011) foi publicada no ano passado.
A escritora acredita
que Chanel era anglófila demais e acreditava muito na liberdade para aceitar o
nazismo, ainda que fizesse uso conveniente das suas conexões nazistas. Para
Picardie, a Operação Modelhut "é fascinante, mas realmente não a define".
• Legado complexo
The New Look traz seu
próprio ângulo da questão.
A série sugere que,
exceto pelo uso das leis arianas, Chanel colaborava com os nazistas, em grande
parte, de forma relutante. Afinal, ela é um dos personagens principais e os
protagonistas raramente são completos vilões.
A primeira visão dela
na época da guerra oferecida pela série é de 1943, com sua dramática chegada no
meio da noite para retirar André do campo de prisioneiros. Desamparada,
frenética e desesperada para salvar o sobrinho, Coco Chanel evoca a
solidariedade do público.
Nesse mundo de ficção,
a estilista confiou em um amigo colaborador dos nazistas, o barão Louis de
Vaufreland, para organizar a libertação, sem pensar totalmente nas
consequências.
O barão logo insiste
que ela precisa encontrar Spatz ou ele próprio ficará em perigo. Começa ali o
caso amoroso entre Chanel e Spatz.
Ela está não apenas
interessada nele, mas bastante apaixonada e curiosamente ingênua sobre suas
intenções. Mas Chanel é cada vez mais encurralada, chantageada e ameaçada para
participar da Operação Modelhut, apesar da sua intensa resistência.
Na vida real, o
relacionamento entre Chanel e Spatz começou muito antes, em 1941.
Provavelmente, era um esforço calculado e consciente para conseguir a
libertação do seu sobrinho.
"Acho que ela
teria feito qualquer coisa para salvá-lo", segundo Picardie. "E é
quando ela começa a ter um caso [com Spatz]."
Foram necessários 18
meses para conseguir as conexões certas entre os nazistas para libertar André.
A maioria dos
biógrafos concorda que a libertação do seu sobrinho provavelmente foi o motivo
original para a colaboração de Coco Chanel. Mas, ao longo do tempo,
"Chanel foi além da convocação do dever familiar nos seus esforços em prol
dos nazistas", segundo Garelick.
O criador da série,
Todd Kessler, contou à BBC que "o objetivo foi retratar o espírito de Coco
Chanel da forma mais precisa possível" – e, ao mesmo tempo, criar um drama
em vários episódios que pudesse fazer os espectadores mudarem de opinião sobre
ela, dependendo das suas ações.
Para ele, "não é inspirador
escrever 'vilões' ou 'heróis'. O que é inspirador é explorar a zona cinza, que
me traz mais próximo da compreensão dos personagens e das decisões que eles
precisaram tomar."
O ator Ben Mendelsohn
(na foto, com John Malkovich) interpreta o estilista Christian Dior,
concorrente de Chanel.
Kessler e Picardie
destacam a importância de julgar essas escolhas no angustiante contexto da
época.
Kessler indica que,
dois anos depois da ocupação, ninguém sabia que ela duraria apenas mais dois.
Ela poderia ter permanecido indefinidamente.
"Todos os
personagens tomavam decisões, às vezes várias decisões por dia, sobre como
sobreviver e como chegar ao dia seguinte", destaca ele. "O medo, o
terror diário que eles enfrentavam amplia a compaixão pelas decisões e escolhas
que aquelas pessoas fizeram, como Coco Chanel, naquele período."
Entre as críticas da
série, as mais intensas abordam a forma amena de apresentação do trabalho de
Chanel para os nazistas.
O jornal britânico The
Guardian destaca que "o Holocausto é essencialmente eliminado da história
em troca de uma rivalidade sobre tule" – uma observação justa sobre o
Holocausto, embora, para mim, a série fale surpreendentemente pouco sobre vestidos.
Já o site
RogerEbert.com chama a série de "completo tratamento revisionista de
Chanel". Nela, "os roteiristas parecem dedicados a fazer todo o
possível para minimizar ou restringir" a verdade sobre as ligações de
Chanel com os nazistas, segundo o site.
• E sobre a Resistência Francesa?
Se for verdade que
Coco Chanel também ajudou a Resistência, seu envolvimento terá sido menos
pessoal do que a colaboração com os nazistas.
Picardie afirma que a
casa de Chanel na Riviera escondia um transmissor de rádio usado pela
Resistência e também serviu de refúgio para judeus que tentavam fugir da
França. E existem documentos dos arquivos franceses, que vieram recentemente a
público, relacionando Chanel como membro da Resistência.
Há pelo menos um
historiador que é cético quanto a essas afirmações. Mas uma exibição em cartaz
no Museu Victoria & Albert em Londres, intitulada Gabrielle Chanel –
Manifesto da Moda, exibe pela primeira vez ao público os documentos que
mencionam Coco Chanel como membro da Resistência Francesa, ao lado de
evidências do seu envolvimento com os nazistas.
A curadora da
exibição, Oriole Cullen, declarou ao The Guardian que "as novas evidências
não a inocentam. Elas apenas tornam o quadro mais complicado".
O possível trabalho
desempenhado por Coco Chanel para a Resistência Francesa não foi incluído em
The New Look. Kessler afirma que queria encontrar pelo menos duas fontes
estabelecidas para cada fato trabalhado e as evidências da sua ajuda à
Resistência "não surgiram ao longo do tempo".
Talvez a estilista
mais influente do século 20, Coco Chanel teve seu legado manchado pelas suas
conexões com os nazistas.
Na verdade, pouco
depois da libertação de Paris, Coco Chanel foi questionada pelas autoridades
francesas sobre essas relações. Ela foi liberada em questão de horas.
Os historiadores
acreditam que, embora não haja evidências diretas, sua amizade com Churchill,
de alguma forma, foi responsável por ela ter escapado tão facilmente, seja por
intervenção direta do primeiro-ministro ou não.
Chanel partiu
rapidamente para a Suíça, para evitar eventuais represálias, e lá permaneceu
por cerca de uma década. Seu romance com Spatz prosseguiu por anos depois da
guerra e ela nunca enfrentou nenhuma consequência oficial pelas suas atividades
durante o conflito.
The New Look aborda
esses anos, mas não daremos spoilers sobre episódios que ainda não foram
apresentados. Podemos apenas dizer que parte do que é mostrado é verdade e
muita coisa, incluindo a participação de Spatz, está muito longe dos registros
históricos.
A colaboração de
Chanel pode ter manchado seu legado, mas ela ainda é considerada uma das
estilistas mais influentes do século 20. E as verdades obscuras sobre pessoas
criativas nunca serão coisas do passado.
High & Low, por
exemplo, é um documentário novo, envolvente e fascinante. Produzido por Kevin
Macdonald, o filme conta a história do aclamado estilista britânico John
Galliano, cuja carreira relembra a de Coco Chanel.
Galliano se tornou
diretor de criação da Casa de Dior e perdeu o emprego em 2011, depois de
aparecer embriagado em vídeos, gritando insultos antissemitas.
Mas ele se arrependeu
e voltou a trabalhar. Sua mais recente exibição para a Casa Margiela, em
janeiro, mereceu críticas arrebatadoras.
No documentário, o
crítico de moda e cultura do jornal The Washington Post Robin Givhan, vencedor
do prêmio Pulitzer, fala sobre Galliano em termos que poderiam facilmente se
aplicar a Coco Chanel.
Para Givhan, mesmo se
você acreditar que Galliano merece uma segunda chance, você "ainda
consegue sentir profundamente o que ele disse. É possível reter esses dois
pensamentos contraditórios na sua mente ao mesmo tempo."
Fonte: BBC Culture
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