Roberto Amaral: Os 60 anos do golpe e o
recuo de Lula
Ensina a história:
quando o líder não pode avançar, o recuo é inevitável. Se não dispuser de
engenho e arte, matéria-prima escassa, logo se verá envolvido pela estratégia
do adversário. Assim na arte da guerra, assim na política. Lênin aconselhava
dar um passo atrás para poder dar dois à frente. Era o recuo tático. Mas há
políticos que dão dois passos atrás e só um à frente. Napoleão conheceu a
derrota quando mais avançava no território russo, pois não se dera conta de que
era o general Kutuzov, comandante do exército do Czar, na defensiva, quem de
fato conduzia as tropas invasoras. Para o desastre, evidentemente. Getúlio
Vargas, conservador e dialeta, fez de seu último recuo uma operação tática de
avanço que ainda hoje é referência para historiadores e políticos. De quebra,
adiou por dez anos o golpe que afinal veio em1964. João Goulart confiava haver
composto com os militares uma boa convivência quando aceitou a emenda
parlamentarista e assim legitimou o golpe de 1961.
Desde o primeiro
governo, Lula vem tentando compor com a caserna, acariciando-a com verbas e
outras benesses. Ainda hoje é visto com reservas. O presidente está demorando a
compreender o significado do 8 de janeiro de 2023, com seus antecedentes e
desdobramentos. Como parece não haver compreendido o real mandato que recebeu
do povo em 2022.
A tática do recuo é o
expediente de que o presidente Lula, mediante dictak que não
honra sua biografia de líder democrata, acaba de lançar mão ao proibir, na área
do Poder Executivo (e provavelmente valendo para o partido que criou à sua
imagem e semelhança), a discussão, mais do que nunca necessária, acerca do
legado da ditadura militar que no próximo 1º de abril completará 60 anos de sua
instauração, traumática como sabemos. Um golpe militar que depôs o presidente
da república e iniciou o mandarinato dos generais que duraria insuportáveis e
inesquecíveis 21 anos de mando autoritário (compreendendo prisões, tortura e
assassinatos) a que não faltou, porém, a resistência da sociedade brasileira,
que a combateu do primeiro ao último dia, sob as mais variadas formas de luta,
e os sacrifícios pessoais conhecidos. Só a crônica desses tantos anos de chumbo
(dos quais o presidente foi vítima quando de sua iniciação como líder sindical,
e tantos companheiros seus conheceram perseguição policial, prisão e tortura)
já exigiriam um bom e amplo debate sobre o processo democrático
brasileiro vis a vis as intervenções dos quartéis na vida
política brasileira, sempre contra a democracia, sempre a serviço da minoria do
1% de brasileiros donos do poder, os herdeiros da casa-grande que nos governa
há 500 anos, agravando a pobreza de um país destinado ser uma das mais ricas e
felizes províncias do mundo. [
Lutando contra essa
expectativa, de progresso e desenvolvimento social de par com autonomia
política, vêm os militares intervindo na vida política, desde principalmente
1889, mediante seguidos golpes de Estado casados com a violência política. Para
relembrar alguns episódios marcantes: 1937 (ditadura do Estado Novo), 1954
(deposição de Getúlio Vargas), 1955 (tentativa de impedir a posse dos eleitos,
Juscelino Kubitscheck e João Goulart), 1961 (intentona para impedir a posse do
presidente João Goulart e, mais ainda, o golpe de 1964 com a usurpação da
democracia por longos 21 anos - que ainda perduram, pelos seus malefícios,
intoxicando a democracia brasileira, pois sobrevivendo nas formulações do
estado maior das forças armadas da classe dominante, ainda hoje adestradas nas
escolas de comando dos EUA, de que se transformam em correias de transmissão
ideológica, sem se perguntarem se essa é a política que responde ao sentimento
nacional. Falam em pátria com P maiúsculo, mas não a ouvem, intentam sempre
jungí-la. Falam em soberania, mas a ela renunciam. O golpe foi uma ordem dada
por Washington, que desde a Segunda Guerra mantém linha com os comandantes
daqui. Um dos objetivos do Departamento de Estado dos EUA, alcançado com o
golpe, de sua inspiração, foi conter o ascendente movimento das lutas sociais
na América do Sul.
Ora, somente este
resumo, que não se conclui com o 1º de abril, estaria a exigir um debate e uma
revisão histórica, com a isenção que podem oferecer 60 anos de distanciamento.
Lula ignorou esse tempo, esses fatos e essa necessidade, e, perigosamente, fez
tábula rasa de nossa história recente, nada obstante dela haver sido personagem
como ator e vítima.
O presidente errou,
taticamente, estrategicamente e, talvez o pior de tudo, errou do ponto de vista
pedagógico, pois jogou fora uma excelente oportunidade de elevação do nível de
consciência das massas.
O que há de pior, de
nocivo, de maléfico na síntese da ditadura sobrevive nas atuais gerações de
oficiais jovens e velhos, de uniforme impecável e de pijamas esgarçados, e se
projeta na vida política, açulando os instintos mais primitivos revelados na emergência
da ultradireita protofascista, pela vez primeira se apresentando como perigoso
movimento popular. O que, por si só, já justificaria a reflexão interditada.
Não considerou o
Presidente, político hábil e arguto, que, revisitando o 1º de abril de 1964
(uma noite escura que começaria a clarear-se 21 anos passados) estaríamos
deitando mão nas informações necessárias para identificarmos os elementos
construtores da transição da democracia quase plena para a emergência da reação
protofascista, a deposição de Dilma Rousseff, a farsa da Lava Jato, sua
inelegibilidade e prisão, a eleição de Jair Bolsonaro e o governo deste, ambos
como projeto de estado maior das forças armadas do Estado brasileiro.
Ora, esses fatos,
história do presente, foram vividos por Lula, e não lhe falta a consciência de
que as raízes ideológicas da reação protofascista remontam à ditadura, cuja
doutrina renasce, como chorume, porque a peçonha sobrevive, animando caserna,
empresariado e setores populares desamparados da democracia e esquecidos pela
esquerda que de há muito abandonou a organização popular e a batalha
ideológica.
Lula sabe do que
estamos tratando, pois passou parte desses últimos anos, exatamente 580 dias,
purgando uma condenação ilegal. Aliás, vê-lo na cadeia foi sempre e é ainda
sonho da Faria Lima, que o considera como inimigo de classe desde os primeiros
dias das greves do ABC paulista. O ódio de classe não é aplacado pelos seguidos
gestos de conciliação do presidente.
Ora, o mandatário
conhece melhor do que a maioria dos mortais o empenho da caserna em reeleger
seu delfim (como ponto de partida de um golpe de estado anunciado durante
quatro anos), e, frustrada a opção legal, seu empenho em virar a mesa e
implantar uma ditadura protofascista em termos desconhecidos e inimagináveis. O
presidente assistiu, de corpo presente, à resistência a sua posse e a intentona
do 8 de janeiro de 2003, com a clara conivência dos comandos mantidos pelo
nosso ministro da defesa, que se sente feliz como representante dos fardados no
governo civil. Já aí temos na mesa argumentos e material suficientes para abrir
uma discussão nacional sobre nosso processo político e o papel do militar, mais
ameaçado do que nunca. Empreender essa revisão, inadiável, não é remoer o
passado: é visitar a história para com ela aprender, conhecer os erros para não
permitir que se repitam. É o exercício de todo estadista.
A nação quer conhecer
sua história, pois sabe que o avanço da ultradireita e a retomada da opção
golpista têm origem direta nos 21 anos da ditadura.
A maquinação e as
operações militares visando à implantação de uma ditadura fascista, a partir do
governo do capitão, são, hoje, segredo de polichinelo. Estão descritas em seus
pormenores e publicadas nas folhas, transformando-se em objeto de análise sobre
os preparativos do golpe. O que toda a sociedade sabe, o que sabe o governo, a
urdidura golpista, resta revelada em todas as suas nuances, comprovada,
documentada. Não pelas investigações da Polícia Federal; também não resulta da
lupa de nenhum Sherlock, nem é o fruto da fragilidade psicológica do
major valet do capitão, pois resultam de depoimentos,
confissões, deleções premiadas do general comandante do exército e do
brigadeiro comandante da aviação, atores na súcia golpista e cúmplices do
ex-presidente na intentona malograda.
Que receia o
presidente? Nossa gente não conhece a tranquilidade institucional com que
contava viver após as eleições de 2022, quando, majoritariamente, optou pela
democracia. Esse caráter, que o pleito assumiu não pode ser posto de lado.
Nossa gente, que não mora nem em Ipanema nem nos Jardins paulistas, vê inseguro
o seu governo, hostilizado pelos fardados e chantageado por um Congresso no
qual é minoria absoluta. O povo está assustado. Os banqueiros, hoje como ontem,
nos governam, pois é a Faria Lima quem dita as regras do jogo, e é em nome do
grande capital que a imprensa corporativa exerce o perverso papel de aparelho
ideológico da classe dominante. Há muito que nosso povo deu adeus às ilusões:
nem reforma, nem revolução. É preciso reabilitar a esperança, retomar a
iniciativa, dialogar com as massas, nas ruas, quando até a esquerda organizada
parece atraída pelo recuo imobilista. A batalha contra o protofascismo se faz
no campo ideológico, que cobra iniciativa, debate e organização. E na
especificidade brasileira o governo não pode simplesmente lavar as mãos.
Quando a casa cai os
escombros soterram as Severinas, os Severinos, os Zés e as Marias. Uma das
poucas expectativas a manter-se de pé é a confiança do povo em Lula, que ainda
é tratado como um dos seus. Por outro lado, Lula sabe que, no frigir dos ovos, é
com esse povão anônimo que poderá contar.
Quais as razões,
então, para o recuo? Por que não discutir com as grandes massas nosso projeto
de democracia? Por que não discutir o papel dos militares? Por que não
destrinchar a ditadura? Por que arquivar a comissão dos mortos e desaparecidos,
e desistir do Museu da Memória e dos Direitos Humanos? A quem beneficia o recuo
constrangedor?
Ø
Sessenta anos do golpe e a criação de uma
Comissão Nacional Indígena da Verdade. Por Flávio de Leão Bastos
O ano de 2024 marca os
sessenta anos do golpe de Estado efetuado por militares, com a colaboração de
setores da sociedade civil brasileira, durante o período da guerra-fria.
Quando deu início à
denominada Operação Popeye em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão
Filho inaugurou o tenebroso período da história brasileira no qual a
sistematização da repressão por meio da tortura, desaparecimento e execução de
presos políticos deu o tom e a marca do regime.
Contudo, se esse
sensível tema gera debates em torno das razões pelas quais verdade, memória e
justiça não parecem traduzir a prioridade dos sucessivos governos brasileiros,
a situação é ainda mais vexatória para o Brasil quando o assunto “ditadura”
tangencia a opressão aos seus povos indígenas.
Se o histórico
brasileiro de rupturas institucionais por parte de militares se repetiu em
1964, impondo ao país o terrorismo de Estado com cerca de 434 mortos e
desaparecidos – assim reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) –,
em relação aos povos indígenas a repressão chegou a assassinar 8350 pessoas
(praticamente o mesmo número de vítimas do genocídio de Srebrenica, cometido
por tropas sérvias contra civis bósnio-muçulmanos em 1995, durante a guerra da
Bósnia).
Isso, pois, a Comissão
Nacional da Verdade pesquisou apenas dez povos indígenas, dentre mais de
trezentos que vivem no Brasil, em vista de suas limitações temporais e
materiais. No entanto, a CNV apresentou recomendações importantes,
registrando-se com clareza que, em relação a tais povos, tratava-se apenas do
início de um trabalho. Sem dúvida, um trabalho histórico rumo à verdade,
memória e justiça para os povos originários do Brasil.
Contudo, poucos
avanços são verificados atualmente para que as recomendações da CNV, em relação
aos povos indígenas, sejam minimante cumpridas. Dentre elas, a criação de uma
Comissão Nacional Indígena da Verdade, essencial para que as mesmas dinâmicas
históricas e estruturais de violência não voltem a se repetir, contra tais
culturas.
Se a memória da
presença indígena na Terra das Palmeiras (ou, Pindorama, na língua Tupi, nome
dado pelas indígenas à nossa terra antes da ocupação portuguesa a partir de
1500) é marcante na língua, na culinária, nas artes, nos nomes de ruas, de
cidades e em seus subsolos, não foi ainda consolidada no âmbito da
Justiça de Transição, uma vez que a sociedade brasileira se viu privada de
conhecer as tragédias impostas aos Tupinambás, Krenaks, Kayowás,
Waimiri-Atroaris, Guaranis, dentre outras tantas etnias, durante a ditadura, à
medida em que memória, verdade, justiça, reparação e não repetição, enquanto
etapas do processo transicional, jamais foram realizadas quanto aos povos
indígenas.
Não se pode dissociar
os legados do passado, dos fatos presentes. As dinâmicas violentas que hoje
massacram indígenas são consequência das desterritorializações geográficas e
corporais que os vitimaram no passado.
A espoliação das
terras indígenas tradicionais gera a pobreza e a miséria de tais povos;
decorrem daí os suicídios dos jovens indígenas (que hoje supera em três vezes os suicídios
entre os não indígenas); é, ainda,
consequência dessa desterritorialização a ruptura para com o sistema de
produção alimentícia, milenar e sustentável de tais culturas, o que conduz à
inanição e morte pela fome, ao que se soma a guerra bacteriológica levada a
cabo a partir do envenenamento de suas águas e seus corpos, pelo mercúrio; devemos, ainda, lembrar a sistemática violência sexual cometida
contra as meninas e mulheres indígenas por garimpeiros, o que é visto com indiferença pela sociedade brasileira, uma
vez que se as terras indígenas são consideradas violáveis em nome de um
questionável progresso que está levando a humanidade a um processo de extinção
em massa – também violáveis seriam os corpos da mulheres indígenas, pensamento
racista e colonizador até hoje presente na sociedade brasileira.
Tais exemplos, dentre
inúmeros outros que poderiam ser mencionados, embora possam lembrar livros de
história sobre o período da colonização, constituem menções a casos atuais.
Significa afirmar que,
se o Estado brasileiro ainda deve à sua sociedade a apuração detalhada sobre o
período da ditadura militar, ainda mais deve aos povos originários do país que
vêm sendo erradicados por todos os meios possíveis já concebidos por uma sociedade
e por suas instituições, desenvolvidos sobre o genocídio racista de tais povos
e que foram profundamente reprimidos e exterminados pela ditadura militar de
1964.
A lawfare praticada
contra os povos originários no Congresso Nacional ou a destruição de seus
biomas por garimpeiros ilegais; a inanição de crianças indígenas ou a crescente
violência contra suas mulheres, são consequências de um passado que precisa ser
definitivamente conhecido em seus detalhes e em suas bases racistas e
colonizadoras. Afinal, temos um presente resultante de nossas opções passadas.
A criação de uma
Comissão Nacional Indígena da Verdade, embora exija a coragem política
necessária, é um dos destinos de um país que se pretende realmente democrático
e civilizado.
O Brasil não tem como
se furtar ao seu destino: um dia terá que instalar sua Comissão Nacional Indígena da Verdade e promover as políticas necessárias de não repetição, como
exigem os povos indígenas e como insistia Marcelo Zelic.
Enquanto não
efetivarmos os processos de Justiça de Transição indígena e referente à
escravidão africana, não teremos capacidade de nos reconhecer perante o
espelho, enquanto nação democrática. Até lá, seremos sempre um remendo de país.
Esperança paira no ar,
apesar de um mundo que caminha rumo aos extremismos.
O Brasil possui hoje
seu primeiro Ministério dos Povos Indígenas que, também, vem exercendo seu
protagonismo, inclusive com lideranças exercendo funções importantes, por
exemplo, na Funai.
As mulheres indígenas
lideram a luta pelos direitos dos povos ancestrais, originários, da floresta;
vêm brilhando nas carreiras e nas artes, além da política. Hoje, são 92
associações de mulheres indígenas, como a Wayrakuna – rede
ancestral, filosófica, artística e cosmológica de indígenas mulheres e
a Anmiga – Associação das
Mulheres-Bioma em Defesa da Ancestralidade.
Mais do que isso e que
é significativo para a efeméride que marca os sessenta anos do golpe de Estado
de 1964, é a realização, pela Comissão de Anistia, de sessão para realização do
julgamento administrativo para reparação coletiva do povo Krenak, uma das
nações indígenas mais perseguidas e espoliadas da história do Brasil – desde a
decretação das guerras justas contra tal povo, durante a colonização. Foi em
suas terras que a ditadura colocou em prática o famigerado “reformatório”,
autêntico campo de concentração para onde vítimas indígenas do Brasil eram
enviadas para sofrer toda sorte de abuso por forças policiais que representavam
o regime de exceção.
E ainda hoje o povo
Krenak luta para receber de volta sua terra sagrada de Sete Salões.
É o primeiro caso de
decisão para reparação coletiva de todo um povo, vitimado pela ditadura, da
história do Brasil.
Nos sessenta anos do
golpe militar, a sociedade brasileira deve exigir a verdade sobre a repressão
aos indígenas. Assim, poderá se (re)conhecer melhor.
A criação de uma
Comissão Nacional Indígena da Verdade não é uma questão de política, mas uma
obrigação moral da sociedade brasileira.
Fonte: Brasil 247/Le
Monde
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