OS BRAÇOS BRASILEIROS DA DESINFORMAÇÃO
RUSSA
O céu sobre Yablonovo,
cidadezinha russa situada a 20 km da fronteira com a Ucrânia, estava cinza na
manhã do último dia 24 de janeiro quando um avião militar do tipo Iliyushin
IL-76, herança da era soviética, surgiu no horizonte envolto numa estranha
nuvem de fumaça, girou em torno de seu próprio eixo, embicou para baixo e, ao
tocar o chão nevado, fez surgir uma bola de fogo que pintou o céu de
laranja e preto. “Leonid, na sua direção! Cacete!”, exclamou em russo uma das
testemunhas do acidente, uma mulher que parecia falar ao telefone com alguém
que estava prestes a ser atingido pelo avião. Naquela manhã, ela foi a única
pessoa que conseguiu filmar o trajeto final da aeronave. Estava na esquina da
rua central da pequena vila, um povoado fundado no início do século XVII que
hoje tem cerca de 2 mil habitantes. A gravação que a mulher não identificada
fez tem cerca de 30 segundos de duração e pouco revela sobre o que ocorreu. Só
não é possível confirmar, a partir dela, se o IL-76 caiu por acidente ou foi
derrubado. “Muitos saíram às ruas [para ver o que tinha acontecido], mas
ele [o avião] caiu muito longe, no meio da floresta”, disse uma moradora
à agência de notícias estatal russa Ria Novosti. Na mesma reportagem, um homem
foi mais preciso: “O avião caiu uns 3 km mata adentro.” Embora houvesse muitas
dúvidas sobre a queda, impossíveis de serem esclarecidas pelos relatos dos
moradores de Yablonovo, Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da
Rússia, parecia não ter nenhuma. No fim daquela manhã, em uma coletiva de
imprensa convocada às pressas no âmbito da ONU, ele afirmou sem pestanejar
que a explosão do avião militar havia sido um “ataque terrorista” cometido pela
Ucrânia que deixara 74 mortos. Entre as vítimas, enfatizou o chanceler,
estariam três oficiais russos, seis membros da tripulação e nada menos do que
65 militares ucranianos. Ainda de acordo com Lavrov, o grupo de ucranianos
teria sido preso pelas Forças Armadas russas na guerra que se arrasta há dois
anos e, naquela manhã, estaria a caminho de Kiev como parte de um acordo de
troca de prisioneiros. “Mas, em vez dessa troca, o lado ucraniano lançou um
míssil de defesa aérea a partir da região de Kharkov”, disse o
diplomata, com os dedos cruzados e os cotovelos fincados na mesa na ONU.
“Miravam o avião e acabaram provocando uma queda fatal.” Ajustando os óculos de
aro fino, Lavrov emendou, dizendo que queria que o Conselho de Segurança da ONU
realizasse um encontro urgente – às três da tarde (horário de Nova York)
daquele mesmo dia – e alfinetou a França, país que presidia o órgão. “Espero
que as autoridades agendem essa sessão.”
De maneira quase
simultânea, na região de Belgorod, onde fica a minúscula Yablonovo, canais
de Telegram, o aplicativo de mensagens mais popular da Rússia, foram
inundados de mensagens, fotos, áudios e vídeos. Usuários davam notícias de que
equipes trabalhavam no local do acidente, que pedaços do avião podiam ser
vistos a 5 km do ponto da queda, que dezenas de janelas haviam sido
estraçalhadas na cidade, e que, milagrosamente, a Igreja de Demétrio de
Tessalônica, único ponto turístico dali, tinha ficado intacta. A fonte dessa
última informação era o líder religioso da cidade, identificado como padre
George Borovikov. Viralizaram nesses canais de Telegram capturas de tela do
site Ukrainska Pravda – que foi banido pela Rússia, mas é
acessível via VPN (ferramenta que permite ao usuário de internet mascarar a
localização de seu IP, de modo a acessar sites que não estão disponíveis ou são
proibidos no país onde reside). Nessas imagens, lia-se que, segundo membros não
identificados das Forças Armadas ucranianas, os militares da Ucrânia tinham,
sim, derrubado o IL-76. O país teria obtido informações de que a aeronave russa
estaria transportando mísseis antiaéreos do tipo S-300, razão pela qual a
Ucrânia a teria abatido. As capturas de tela eram verdadeiras. Entretanto, a
informação sobre o suposto envolvimento de Kiev na explosão do IL-76 foi
alterada pelo Ukrainska Pravda minutos depois de ser postada.
Seguindo as melhores práticas do jornalismo, o site inseriu em seu texto uma
nota de “correção” e explicou a mudança feita. Aparentemente, a fonte da
reportagem voltara atrás e já não confirmava qualquer participação da Ucrânia
no incidente com o avião militar russo.
Resultado: capturas de
tela aterrissaram nos grupos de Telegram com o primeiro e o segundo textos
do Ukrainska Pravda, jogando milhares de pessoas nos labirintos das
teorias da conspiração. Em poucas horas, dezenas de postagens feitas no
Telegram misturavam críticas ao jornalismo e teorias geopolíticas com pouco
lastro na realidade.
Ao iniciar sua
cobertura sobre a queda do avião militar, a agência de notícias russa Interfax publicou outro link que também se popularizou no Telegram.
Nele, o militar da reserva Andrei Kartapolov, presidente do comitê de defesa da
Duma (o Parlamento russo), dizia que o IL-76 havia sido abatido por “três
mísseis Patriot ou Iris-T”. Segundo Kartapolov, os mísseis usados pela Ucrânia
teriam vindo dos Estados Unidos e comprovariam o uso inadequado do apoio que o
Ocidente tem dado à Ucrânia para que o país se defenda nessa guerra, batizada
pelo presidente Vladimir Putin de “operação especial”. Foi então que o governo
de Volodymyr Zelensky partiu para o contra-ataque. Numa transmissão ao vivo
feita pela internet na mesma noite de 24 de janeiro, o presidente ucraniano
acusou Moscou de estar “jogando com a vida de prisioneiros ucranianos, com os
sentimentos daqueles que os amam e com a emoção da sociedade ucraniana. A
Ucrânia está trabalhando para saber o que aconteceu com os prisioneiros de
guerra, e o serviço de segurança ucraniano está investigando as circunstâncias
[da queda do IL-76]”, enfatizou Zelensky, com o nariz a poucos
centímetros da câmera. “Eu instruí nosso ministro de Relações Exteriores a
dizer a nossos apoiadores [no exterior] que queremos uma data para a
abertura de uma investigação internacional sobre esse caso.”
Também naquela noite,
a inteligência ucraniana fez chegar à imprensa mundial duas informações que
considerava vitais para sua defesa. Kiev confirmou que negociava uma troca de
prisioneiros com Moscou (algo que acabou ocorrendo, sem qualquer incidente,
em 31 de janeiro), mas enfatizou que, até o dia da queda do IL-76, não
sabia quantos presos seriam trocados, que aviões poderiam ser usados no
processo e que rotas eles tomariam. Numa publicação feita no Telegram, a
inteligência ucraniana negou ter recebido qualquer pedido da Rússia para
garantir a segurança do espaço aéreo sobre Belgorod em 24 de janeiro e fez
questão de destacar que esse tipo de informação, quando efetivamente passada,
costuma ser cumprida à risca pelas partes. Até aquele dia, segundo Kiev, ao
menos outros cinquenta episódios de troca de prisioneiros já haviam sido
concluídos, sem maiores problemas, dentro do mesmo conflito com a Rússia. Não
haveria, portanto, espaço para erro. Com isso, a Ucrânia dava a entender que,
se a Rússia tinha realmente decidido devolver prisioneiros naquela manhã fria
de quarta-feira, não havia combinado absolutamente nada com ela. Tratava-se de
uma ação unilateral. Uma semana passou, e o empurra-empurra sobre a culpa pela
queda do IL-76 persistiu. Em 1º de fevereiro, os ucranianos colocaram um
porta-voz da inteligência na tevê para cutucar os russos com vara curta.
Andriy Yusov, um
político ativista de 41 anos que lembra o ex-ministro da Justiça Anderson
Torres e desde 2022 ocupa o cargo de porta-voz do Ministério da Defesa da
Ucrânia, reivindicou, em cadeia nacional, que os restos mortais dos
prisioneiros supostamente mortos no avião fossem devolvidos a seu país. Se eram
realmente 65 pessoas, alguns corpos com certeza teriam sido recuperados.
Precisariam, então, ser identificados e entregues a seus familiares. No dia
seguinte, o Kremlin deu o troco. Mandou seu porta-voz, Dmitry Peskov, dizer à
agência de notícias RIA Novosti que Moscou estranhava muito aquela cobrança
pública, já que jamais havia recebido de Kiev qualquer pedido referente à
repatriação dos restos mortais dos prisioneiros mortos em 24 de janeiro. Peskov
não disse à RIA Novosti se atenderia ou não a solicitação de Yusov. Encerrou a
entrevista sem se comprometer com nada.
Até a primeira semana
de fevereiro, havia dúvidas consideráveis sobre o nome dos 65 prisioneiros de
guerra supostamente mortos na queda do IL-76 – e uma poderosa personalidade da
mídia russa estava associada a tais incertezas. Margarita Simonyan, uma jornalista
de 43 anos, olhos tristonhos e sobrancelhas bem demarcadas, havia divulgado, no
próprio dia 24 de janeiro, uma lista com os nomes dos possíveis mortos no
IL-76. Ela é a editora-chefe dos veículos estatais russos Russia Today e Rossiya
Segodnia/Sputnik, ambos muito próximos ao Kremlin, mas publicou a lista em
seu próprio canal de Telegram. Contumaz propagadora de informações falsas ou
distorcidas, Simonyan é tratada pela mídia ocidental como “propagandista”, e
seu nome aparece em praticamente todas as listas de sanções aplicadas a
cidadãos russos. Daí o mundo ter duvidado de sua lista de mortos, e diversas
equipes de jornalistas terem sido deslocadas para tentar confirmar – em vão –
as informações divulgadas por ela. O projeto independente Schemes, da Rádio
Free Europe, chancelou a lista de oficiais russos mortos na queda,
entrevistando familiares e rastreando postagens de luto em redes sociais. Não
obteve, no entanto, quaisquer dados sobre os supostos prisioneiros ucranianos.
O site de fact-checkingSuspilne, baseado na Ucrânia,
conseguiu confirmar que os ucranianos listados por Simonyan realmente eram
prisioneiros de guerra, mas não foi capaz de atestar suas mortes.
Diretor de projetos
especiais do Centro para Resiliência da Informação (CIR, na sigla em inglês), o
britânico Tom Southern é um homem calvo, de olhos claros, que carrega
no currículo uma graduação em direito pela Universidade de Surrey e uma pós-graduação
na mesma área pela Universidade de Londres. Há dez anos ele estuda as
falsidades impulsionadas pela Rússia, e seus olhos brilham quando lhe perguntam
sobre isso. Em um encontro que uniu especialistas em desinformação, em meados
de janeiro, Southern resumiu os objetivos da Rússia ao lançar mão da
desinformação como estratégia geopolítica: A Rússia busca dividir as
pessoas, as nações, as ideias. Opõe o universo doméstico ao estrangeiro. Vende
a ideia de que o que há na Rússia é melhor do que em qualquer outro lugar.
Insiste que o resto do mundo está errando em tudo o que faz. Classifica como
inimigo, traidor, louco ou idiota quem pensa diferente. E faz tudo isso de
forma simultânea nos campos político, diplomático, militar, social, midiático e
até mesmo religioso. Não é fácil acompanhar. Depois de dez anos dedicados
ao estudo da desinformação russa, Southern certificou-se de que ela está por
todos os lados. Ele disse à piauí que “a Rússia investiu massivamente
em redes humanas e digitais que funcionam em português”. Também alertou para o
fato de que “essas redes passaram despercebidas durante décadas, inclusive no
Brasil”. Southern conta que a base teórica para a manipulação da realidade como
política de Estado na Rússia moderna antecede Putin e é obra do político e
empresário de mídia Vladislav Surkov, hoje com 59 anos. Ele começou sua
vida profissional no meio das artes e foi um dos primeiros oligarcas a colocar
um grupo de comunicação inteiro a serviço do Kremlin. Entre 2011 e 2013, foi
vice-primeiro-ministro da Rússia. Nos sete anos seguintes, serviu de
conselheiro e assistente de Putin. Possivelmente um dos mentirosos mais
renomados da Rússia pós-soviética, Surkov se destacou na política por sua
habilidade para usar a manipulação psicológica que aprendeu em um curso de
direção teatral (que não chegou a terminar). “A ideia de Surkov era não apenas
manipular pessoas, e sim ir mais a fundo. Era mexer com a percepção delas sobre
a realidade de modo que nunca tenham total certeza do que realmente está
acontecendo. E isso é algo difícil de conter, porque é simplesmente bem difícil
de definir”, disse Southern.
No Brasil, as ideias
de Surkov reverberaram menos que as do doutrinador político de extrema direita
Aleksandr Dugin, considerado o guru de Putin e do expansionismo russo. Em 2002, ele fundou o
partido Eurásia, nome que alude à sua crença de que a Rússia tem um destino tão
imenso que não poderia ser enquadrada geopoliticamente nem na Europa nem na
Ásia. Na formulação de sua Quarta Teoria Política, é a Rússia que ele destaca
como melhor posicionada para exercer um papel de liderança no mundo atual,
multipolarizado e regido por uma nova ordem que substituiria as três ideologias
dominantes do século XX – liberalismo, fascismo e comunismo. É baseado nesse
enredo que Dugin justifica a invasão da Ucrânia. O conflito seria, na verdade,
o resultado dos esforços de Moscou para evitar que prevaleça a dominância do
Ocidente (leia-se, dos Estados Unidos) no mundo multipolarizado. Para ele, a
invasão da Ucrânia é como uma missão divina ou sobrenatural, o “início da luta
contra Satã”, como disse à revista britânica The Spectator, em
janeiro passado. A mesma lógica valeria para eventuais conflitos entre China e
Taiwan, entre as Coreias ou mesmo para a guerra entre Israel e o Hamas,
pressupondo que por trás de um dos polos dessas disputas estão os Estados
Unidos, buscando impedir a multiplicação das lideranças no mundo. No caso
específico de Israel, Dugin enxerga o atual conflito com o Hamas como um
caminho para que o país deixe de ser um fantoche dos Estados Unidos, dando
também espaço ao mundo multipolar. Dugin começou a investir no Brasil a partir
de um debate online (que virou livro) com o astrólogo e polemista Olavo de
Carvalho. O guru de Putin esteve por duas vezes no país, onde participou de
diversos eventos acadêmicos. Estudo feito por pesquisadores do CIR
identificou dezenove pesquisadores, acadêmicos e professores em ao menos seis
universidades e escolas militares brasileiras que têm promovido as ideias de
Dugin. São pessoas ligadas à USP, à Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) e à Escola Superior de Guerra (ESG). Em 2014, com o apoio de duas
pessoas ligadas à USP – um professor e uma pesquisadora afiliada – , Dugin
inaugurou em São Paulo o Centro de Estudos da Multipolaridade (CEM, hoje
desativado), que chegou a reunir 2 mil pessoas, entre elas, a filha do músico Djavan.
Em abril de 2022, já
durante a guerra na Ucrânia, professores da Uerj e pesquisadores afiliados à
universidade anunciaram que Dugin participaria – pela quarta vez – de um
evento, que acabou cancelado, devido a críticas e protestos. Segundo os
pesquisadores do CIR, há uma estreita ligação entre o Laboratório de Estudos
Políticos de Defesa e Segurança Pública, da Uerj, e o Laboratório de Segurança
Internacional e Defesa Nacional (Labsden), da ESG. Frequentemente, eventos de
uma das instituições são promovidos e prestigiados por pesquisadores da outra. Em
abril de 2023, por exemplo, quando o jornal da ESG, que é
administrada pelo Ministério da Defesa, fez uma edição sobre a guerra na
Ucrânia, deu espaço para um artigo de Dugin de quinze páginas, que reverberou
no Laboratório de Estudos de Defesa e Segurança Pública. O texto,
intitulado O Segundo Mundo, a semiperiferia e o estado-civilização na
teoria do mundo multipolar, é uma tentativa de convencer o Brasil a apoiar
a nova ordem mundial postulada pelo guru de Putin. Fora do eixo Rio-São Paulo
foram localizadas ainda outras duas conexões de Dugin com universitários
brasileiros. Membros da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizaram ao menos
dois eventos com ele, ambos financiados pelo Alexander Gorchakov
Public Diplomacy Fund. Todas as traduções de Dugin no Brasil são feitas
por Uriel Irigaray Araújo, doutorando em antropologia pela Universidade de
Brasília (UnB), que ganhou popularidade entre os seguidores do guru ao
entrevistá-lo em 2020. No mundo virtual, Dugin e toda desinformação russa
também chegam aos brasileiros por meio das redes sociais. Entre novembro e
dezembro de 2023, pesquisadores do CIR coletaram dados públicos sobre as
conversas travadas em português em 31 canais do Telegram e
identificaram que narrativas falsas disseminadas pelo guru e pelo Kremlin não
encontram ali qualquer barreira. Justificativas estapafúrdias para a guerra na
Ucrânia e insinuações de que Kiev leva a cabo um genocídio se misturam com postagens
homofóbicas alinhadas com a política de Putin.
Quando o mundo
assistiu ao massacre de civis em Bucha, cidade a noroeste de Kiev, os canais de
Telegram em português não só aderiram ao discurso de Moscou negando
qualquer responsabilidade pelo ocorrido como o difundiram. No Telegram, a
Sputnik Brasil postou que as acusações que atribuíam à Rússia as dezenas de
corpos filmadas e fotografadas no local eram “completamente infundadas”, uma
espécie de “conto da carochinha”. Num canal de Telegram com 37,6 mil inscritos,
usuários concordavam que o “suposto massacre de Bucha é uma fake news das
televisões ocidentais”. E comemoravam que a Embaixada da Rússia no Brasil
havia se somado à conversa, negando que tivesse ocorrido um massacre na
cidade ucraniana. Em dezembro de 2022, usando imagens de câmeras de segurança e
registros de fontes governamentais, o New York Times mostrou
que o massacre em Bucha foi cometido, sim, por tropas
russas. Soldados de Putin foram flagrados interrogando e executando homens
desarmados e crianças.
Aletã Nika Aleksejeva
e o ucraniano Roman Osadchuk são bolsistas do think tank americano
Atlantic Council e estudam como a Rússia tem usado a desinformação para
influenciar no entendimento global sobre a guerra com a Ucrânia. Em fevereiro
de 2023, quando o conflito entre os dois países fez um ano, Aleksejeva e
Osadchuk se uniram numa transmissão ao vivo e compartilharam algumas de suas
conclusões. Aleksejeva analisou mais de 10 mil publicações feitas por catorze
meios de comunicação pró-Kremlin nos setenta dias que antecederam a invasão do
território ucraniano. No texto intitulado Narrative Warfare, ela
afirma que a mídia pró-Putin não só impulsionou flagrantes falsidades alinhadas
com os interesses do presidente como também pavimentou o apoio popular ao
Kremlin na região. Para fazê-lo, a imprensa pró-Kremlin martelou cinco
narrativas absolutamente falsas. Publicou textos dizendo que “a Rússia só
queria paz para a região”, que “tem a obrigação moral de proteger a segurança”
daquela parte do mundo, que “a Ucrânia é um país agressivo” e “o Ocidente
estaria criando tensões na região” de própósito. Alekseveja também achou
centenas de publicações acusando a Ucrânia de ser “uma marionete do Ocidente”,
que Kiev teria armas de destruição em massa e o governo do judeu Zelensky
seria, na verdade, uma junta nazista. No evento do Atlantic Council,
Osadchuk, por sua vez, demonstrou que o Kremlin distribuiu desinformação sob
medida depois da invasão da Ucrânia. Para ganhar adeptos na Polônia, por
exemplo, a Rússia impulsionou postagens que promoviam um possível atrito entre
poloneses e refugiados ucranianos. Na França, espalhou rumores de que as armas
dadas por Paris a Kiev estariam sendo revendidas no mercado negro pelos
ucranianos, o que faria deles parceiros pouco confiáveis. Na Geórgia, país que
tentava entrar na União Europeia, os russos disseminaram a ideia de que, se o
país apoiasse a Ucrânia, não teria paz e, em consequência, não seria aceito no
bloco europeu. Era melhor que a Geórgia ficasse afastada do conflito.
Em Undermining
Ukraine (Minando a Ucrânia), Osadchuk mostra que Moscou também não se
esqueceu do Sul global. Na África do Sul, diplomatas russos fizeram tuítes
acusando a embaixada ucraniana de recrutar mercenários na região (o que era
falso). Contas russas também impulsionaram, em 4 de março de 2022, a hashtag
#IStandWithPutin (Eu estou com Putin), espalhando a ideia de que os ucranianos
são racistas. Na imprensa dos países latino-americanos de língua espanhola,
Osadchuk observou que diplomatas russos difundiam desinformação. Fizeram
pedidos diretos de desmilitarização e de “desnazificação” da Ucrânia, em
“reportagens” da Russia Today e do Sputnik News,
em espanhol, que viralizaram entre os latino-americanos. Até a publicação deste
texto, nenhuma autoridade independente havia sido capaz de ir a Yablonovo
investigar a queda do avião, validar a lista final de mortos e determinar de
quem foi a culpa pelo incidente. Não havia confirmação sequer da presença de
ucranianos no voo. Com isso, uma velha expressão voltou a circular nas
conversas entre civis russos e ucranianos: o episódio envolvendo aquele IL-76
com certeza era o mais novo caso de vranyo.
Quem fala ou estuda a
língua russa sabe que há dois verbos com o significado de “mentir”: lgat e vrat.
O primeiro significa mentir de fato. O segundo tem uma carga pejorativa e de
deboche, e significa mentir sobre algo que o interlocutor não levará a sério
(nem como mentira). Vranyo é um substantivo derivado do verbo vrat.
Numa adaptação moderna, é uma versão russa para a fake news ocidental,
mas anabolizada e institucionalizada. É uma mentira descarada, dita sem nenhuma
pretensão de que alguém acredite nela: você sabe que eu estou mentindo, e eu
sei que você sabe que eu estou mentindo. Você sabe que eu sei que você sabe que
eu estou mentindo, mas continua mentindo mesmo assim. Então você continua me
ouvindo atentamente e, ainda por cima, toma notas do que eu estou dizendo, como
se fosse coisa séria.
Em dezembro de 2011,
por exemplo, o canal de televisão russo Rossiya 24 transmitiu ao vivo os
resultados da última pesquisa de intenção de voto para as eleições
parlamentares de Rostov-on-Don, no Sul da Rússia. Atrás da apresentadora, uma
jovem de perfil delgado e cabelos loiros, havia um telão que mostrava os nomes
dos vários partidos em disputa e as respectivas pontuações percentuais obtidas
na pesquisa. Tudo estaria correto na cena não fosse o fato de que, somados, os
números supostamente obtidos pela coligação pró-Kremlin chegavam à inimaginável
marca de 146% das intenções de voto. Erro do infografista? De forma alguma. A
mesma cena – um caso clássico do vranyo – tem se repetido
sistematicamente na tevê russa desde então. Alguns russos estão tão habituados
a isso que chegam a pensar que se trata de uma piada ou ironia dos jornalistas
de plantão, não uma tática desinformativa. Como em outras partes do mundo, na
Rússia a desinformação também é prática antiga e recurso usado nos mais
diversos cenários. No século XVIII, por exemplo, Grigory Potemkin criou vilas
de fachada para que sua amada, a imperatriz Catarina, a Grande, acreditasse que
a conquista da Crimeia havia sido bem-sucedida. Por trás das fachadas, não
havia nada. Quando entrevistamos russos e estudiosos da Rússia sobre esse
assunto, encontramos um ponto de interrogação. Enquanto uns garantem que a
aldeia de Potemkin existiu, outros dizem que elas eram lorotas – um vranyo de
primeira. Fato é que a expressão “vilas de Potemkin” aparece em alguns idiomas
(inclusive o português) para designar obras de fachada. Os Estados Unidos já
fizeram uso dela para se referir a feitos da China, da Coreia do Norte ou do
Irã.
Na política externa, a
negação russa dos fatos foi levada ao extremo pelas mãos do diplomata Andrey
Gromyko, um dos idealizadores da ONU. Conhecido como “Mr. Nyet (Senhor
não)” por ter exercido mais de 25 direitos a veto como representante da União
Soviética na organização, Gromyko também tentou engabelar John Kennedy durante
a crise dos mísseis cubanos. Numa reunião realizada com o presidente
americano pouco depois de serem obtidas evidências fotográficas de que os
soviéticos realmente haviam deposto mísseis nucleares em bases militares de
Cuba, Gromyko disse que seu país jamais seria uma ameaça aos Estados Unidos e
que não havia motivos para se preocupar com seu país. Em suas memórias, Gromyko
completa que em nenhum momento durante aquela conversa Kennedy perguntou sobre
a existência de mísseis soviéticos em Cuba. “Consequentemente não havia nenhuma
necessidade de eu dizer se eles estavam ou não estavam lá”, acrescenta o
diplomata, que depois foi presidente da URSS (entre 1985 e 1988).
Identificar a
desinformação russa no Telegram vai além da análise da narrativa. Passa também
pelo estilo da escrita comumente usada pelos teóricos da conspiração. Os
desinformadores que atuam a favor do Kremlin em português costumam abusar, por
exemplo, das chamadas estratégias de revelação. Usam, com excessiva frequência,
frases como “conheça a verdadeira história”. Outra maneira de identificar as
campanhas de influência russa são erros gramaticais, escolha de palavras pouco
comuns na língua portuguesa, uso de termos mal traduzidos e formalidades
inadequadas, que indicam uso de tradução automatizada, típico recurso de quem
quer inundar as redes o mais rápido possível, replicando conteúdos de outros
idiomas. Em 30 de novembro de 2023, uma postagem feita por um administrador de
canal dizia o seguinte: “A julgar pela fotografia de Tinkov, a descrição que
ele deu ao presidente russo lhe convém melhor.” A frase,
possivelmente traduzida automaticamente, soa estranha para o estilo coloquial
das redes sociais. Em outra, o administrador afirmou que “imagens SAR de
satélite, ou imagens de radar, mostram claramente como as Forças Armadas
Russas concentraram sistemas de guerra electrónica tão
poderosos nas baías de Sebastopol que criam iluminação nos sensores dos
satélites.” O termo “eletrônica” foi grafado em espanhol. No X (antigo
Twitter), o grupo pró-Kremlin que faz mais barulho em língua portuguesa é a
Nova Resistência (NR), tachado pelo Departamento de Estado dos Estados
Unidos como uma organização neofascista. Criada no Rio de Janeiro em 2015,
a NR diz contar com 250 militantes e estar presente em vinte estados
brasileiros. Seu logo mostra uma estrela verde com a sigla do movimento escrita
em preto.
A NR publica no X com
frequência. Em seus posts sobre a guerra na Ucrânia, repete que “a mídia
internacional retrata a operação especial russa como uma ‘agressão
injustificada’”, mas que ela é, na verdade, uma resposta de Moscou a “um longo
processo de cerco e tentativa de balcanização” do território da Rússia. Também
defende que “o Ocidente colocou a Rússia contra a parede” e que, agora, o país
está travando “uma luta pela sua própria sobrevivência”. Alinhando a doutrina
de Dugin com as narrativas falsas do interesse do Kremlin, a NR ainda sustenta
que “uma vitória russa [na guerra com a Ucrânia] acelerará o colapso da
unipolaridade para o benefício de todos os povos oprimidos do mundo, incluindo
o brasileiro”. A conta da NR no X integra uma rede de treze perfis que usam a
plataforma para impulsionar discursos pró-Putin. Juntos, esses perfis têm nas
diversas redes sociais nada menos do que 1 milhão de seguidores. Entre
eles, o paulista Rafael Lusvarghi, descendente de uma família
húngaro-brasileira, que ficou conhecido por ter liderado uma unidade de combate
russa em 2014, quando Moscou invadiu e tomou a região de Donbass da Ucrânia.
Hoje com 39 anos, Lusvarghi fez curso técnico de agronomia, estudou comércio
internacional e entrou para a Polícia Militar, trabalhando em São Paulo e no
Pará. Em 2010 migrou para a Rússia, cursou medicina na Universidade de Kursk e
adotou o nome Riurik Variag Volkovitch. Em janeiro de 2017, depois de lutar ao
lado dos russos em favor do separatismo da região da Crimeia, Lusvarghi foi
condenado a treze anos de prisão na Ucrânia por terrorismo. Ele
aparece em documentos do Departamento de Estado americano como membro da Nova
Resistência. Como se vê, quem pensa que as posições de Putin e Dugin não
encontram eco no Brasil está enganado. Uma análise das conexões entre a
desinformação russa e as correntes políticas ativas no país mostra inclusive
que a visão dominante no Kremlin encontra campo fértil por aqui, tanto à
direita quanto à esquerda.
A extrema direita e
parte da direita não deixam de ver com bons olhos a mão dura usada por Moscou
para punir criminosos e os cidadãos “pouco patriotas”. Também se alinham com
facilidade ao conservadorismo moral e ao discurso anti-LGBTQIA+ de Putin. Parte
da esquerda brasileira, por sua vez, historicamente avessa ao que chama de
“imperialismo americano”, não costuma estranhar a proposta de multipolaridade
mundial defendida por Dugin nem deixa de admirar o nacionalismo propalado por
Putin. Enquanto isso, os críticos do Kremlin vão caindo um a um. Em 16 de
fevereiro, o advogado e ativista russo Alexei Navalny, considerado um dos mais
duros opositores de Putin, morreu numa prisão no Ártico. No dia anterior, ele
havia sido filmado em perfeito estado físico e mental. Demorou dias até que o
governo russo liberasse o corpo de Navalny. Segundo
a imprensa americana, sua mãe foi chantageada a fazer um funeral
privado. Moscou negou seu envolvimento na morte de Navalny, como negou sua
participação no episódio da aeronave IL-76 e dos supostos presos políticos
ucranianos, encompridando dia após dia sua série de vranyos trágicos.
Fonte: Revista Piauí
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