ANATOMIA DE UMA CHACINA
Por dois anos, vinte
peritos do Instituto Nacional de Criminalística (INC) se debruçaram na análise
dos cenários da maior chacina da história da Polícia Rodoviária Federal (PRF), quando
26 pessoas, das quais 25 eram suspeitas de integrar uma quadrilha de assalto a
banco, foram assassinadas em duas chácaras na zona rural de Varginha, Sul de
Minas Gerais. Foram feitas mais de cem imagens em ângulo de 360º e cerca de
quinhentas fotografias de vestígios do crime. O objetivo era investigar em
profundidade se de fato os policiais foram recebidos a tiros pelos criminosos
nas duas chácaras antes de revidarem a “injusta agressão”, conforme a versão
deles à Polícia Federal.
Relatos colhidos pela
piauí, em reportagem publicada em 2022, apontavam uma série de ilegalidades na
forma como a PRF atuou no caso. Tudo indicava se tratar de uma chacina
premeditada, e não de uma troca de tiros, como alegaram os cinquenta policiais
envolvidos na matança (28 da PRF e 22 da Polícia Militar de Minas). Agora, a
reportagem teve acesso ao laudo de pouco mais de mil páginas que desmonta a
tese dos policiais e comprova: apenas um dos 26 mortos reagiu com tiros à
chegada dos policiais, que executaram o grupo sem chance de defesa.
A primeira evidência
de que os policiais mentiram foi obtida pela câmera de segurança de um posto de
gasolina em Muzambinho, a 140 km de Varginha. Os agentes contam a seguinte
versão: horas depois da chacina, que aconteceu no começo da manhã de 31 de outubro,
eles encontraram nesse posto um caminhão com fundo falso (abandonado e sem
ninguém por perto), que seria usado pelos assaltantes depois de roubarem 65
milhões de reais de uma agência do Banco do Brasil. Mas as imagens de câmeras
de segurança do posto, analisadas pelo INC, derrubam essa versão: na madrugada
de 31 de outubro, pouco antes das três da madrugada (horas antes da chacina,
portanto), ao menos quatro policiais, entre eles Francisco de Paula Cavalcanti
Moura e Douglas Porpino Cordeiro Batista, foram filmados rendendo o
caminhoneiro Francinaldo Araújo da Silva, que dirigia o veículo, e Gleisson
Fernandes da Silva Morais, um dos mentores do assalto, programado para o dia
seguinte, 1° de novembro (a Polícia Federal não conseguiu desvendar como os policiais
rodoviários chegaram até a dupla no posto). Silva e Morais foram colocados
dentro de uma caminhonete descaracterizada da PRF, que deixou o posto em poucos
minutos, rumo a Varginha.
Há fortes indícios de
que Silva e Morais tenham sido torturados nesse caminho para que revelassem o
paradeiro do restante do bando que participaria do assalto – a perícia
encontrou sinais de que este último foi torturado, inclusive com uso de faca.
Como os policiais suspeitavam que Morais fosse um dos mentores do roubo,
pararam no meio do trajeto, em local não determinado pela investigação,
obrigaram seu colega caminhoneiro a deitar no chão e o assassinaram com dois
tiros no peito (o laudo não identifica o autor dos tiros, mas informa que os
disparos partiram de uma arma do PM Welison Teixeira de Souza).
Tudo indica que,
aterrorizado, Morais tenha cedido à pressão e informado a localização de dois
sítios em Varginha: o primeiro deles, todo murado e com casa de dois
pavimentos, abrigava dezoito homens e a maior parte do armamento, vinte fuzis e
seis pistolas. Já no segundo estavam mais oito do bando e 40 kg de explosivos
que seriam utilizados para dinamitar o cofre do banco.
Pouco antes das cinco
da manhã, o primeiro sítio foi cercado pelos 28 agentes da PRF – todos do
Comando de Operações Especiais (COE) e do Grupo de Resposta Rápida (GRR), a
tropa de elite da corporação – e 22 policiais militares do Bope, vindos de Belo
Horizonte. Naquele momento, segundo os peritos, todas as armas da quadrilha no
primeiro sítio estavam embaladas e guardadas, indisponíveis para uso naquele
momento. Não houve, portanto, resistência armada por parte das vítimas.
Enquanto os policiais militares foram para o fundo do sítio, os policiais
rodoviários se espalharam por todas as imediações do imóvel, concentrando-se
perto do muro da parte frontal.
Como um integrante do
bando estava na varanda do primeiro piso, possivelmente como vigia, um dos
policiais posicionou-se como sniper, na lateral do imóvel, com vista
privilegiada de toda a varanda. Quando esse policial fez os primeiros disparos,
que atingiram a parede da varanda sem acertar o sentinela, treze PRFs jogaram
granadas de luz e som no gramado em frente à casa e, com o auxílio de uma
caminhonete (possivelmente a mesma que sequestrara Silva e Morais em
Muzambinho), arrombaram o portão. Em fila, doze deles ingressaram no imóvel,
enquanto outro pulou o muro. Nesse momento, três dos assaltantes, Gerônimo
Souza Filho, Dirceu Martins Netto e José Nepomuceno, tentaram fugir pulando do
primeiro andar para o telhado de fundos da casa do sítio e de lá para a área da
piscina do imóvel vizinho, onde foram atingidos por tiros dos policiais
militares. Mesmo ferido, Martins Netto ainda deu alguns passos, até cair. Nesse
momento, foi executado com dois tiros no peito, disparados a menos de 1 metro
de distância (segundo os peritos, os tiros saíram das armas dos policiais
rodoviários Lucas Fabio Fontenele Victor e Kleberson Ferreira Vilarino).
Enquanto atiravam na
varanda do piso superior e na janela do quarto do primeiro andar, os policiais
avançaram para a varanda do térreo, à esquerda. Quando os policiais rodoviários
chegaram aos fundos da casa, pela varanda, o assaltante Itallo Dias Alves tentou
fugir pelo quintal, mas foi ferido na perna direita e no pescoço por tiros da
PM, que cercava o fundo do sítio. Segundo os peritos, é “pouco provável” que
Alves, depois de ferido, “representasse ameaça ou pudesse oferecer resistência
a eventual abordagem”. Mesmo assim, já deitado, foi executado com quatro tiros
no peito e um no abdome por um fuzil a menos de 1 metro de distância (de acordo
com o INC, os disparos saíram da arma do PRF Fábio Torres de Oliveira).
Outra vítima, Giuliano
Silva Lopes, levou dez tiros ao tentar fugir pela porta da cozinha, em direção
ao quintal. Com um aríete, os policiais arrombaram a porta da sala. Não havia
ninguém nesse cômodo, mas o policial rodoviário Fábio Torres viu o assaltante
José Rodrigo Dama Alves tentando escapar pela cozinha, em direção ao quintal.
Alves escorregou antes da porta e levou sete tiros, dois deles de Torres, nos
glúteos, no tórax e no antebraço, um indicativo de que tentou se defender dos
disparos. Na sequência, Raphael Gonzaga Silva, que tentava se esconder atrás da
geladeira, também na cozinha, levou oito tiros, parte deles do policial Rudh
França de Carvalho. Enquanto isso, o outro integrante da PRF Vilarino encontrou
Wellington dos Santos Silva tentando se esconder no banheiro, vizinho à sala.
Vilarino acertou dois tiros no abdome da vítima, que caiu no canto do cômodo,
debaixo da área do chuveiro. Mesmo com a vítima caída, o policial atirou uma
terceira vez, na cabeça – partes do cérebro ficaram espalhadas pelo piso.
Nos dois quartos do
piso térreo, outros quatro assaltantes foram mortos, todos com tiros nas costas
e nos braços e antebraços, que os peritos chamam de “lesões de defesa”, um
indicativo de que instintivamente as vítimas, desarmadas, tentaram se defender dos
disparos com os braços em frente ao corpo. Um dos mortos, Gilberto de Jesus
Dias, levou seis tiros quando já estava deitado. Outros três policiais
rodoviários, incluindo Adellan de Paula Santos, Roger Lemos e Lucas Fontenelle
Victor, subiram para a varanda, no primeiro andar, onde atingiram Daniel
Antônio de Freitas Oliveira com nove disparos e Artur Rodrigues com sete (essa
última vítima também tentou se defender dos tiros com os braços). Gravemente
ferido, Oliveira foi levado para um dos quartos do piso térreo, onde acabou
executado com mais três tiros no peito (os peritos não conseguiram identificar
a autoria desses disparos).
Em um dos dois quartos
do andar superior, mais três assaltantes foram assassinados: Julio Cesar de
Lira, Thalles Augusto Silva e, possivelmente, Nunis Azevedo Nascimento. Lira
levou seis tiros, que atingiram as costas, os glúteos, a cabeça (ele perdeu a maior
parte do cérebro), o pé esquerdo e a perna direita e o braço esquerdo,
indicando que ele estava deitado no chão, tentando se proteger das balas.
Concluída a
carnificina, os policiais rodoviários Macedo e Vilarino foram até a chácara
vizinha, onde uma das vítimas, José Nepomuceno, ainda agonizava. De acordo com
a perícia, os dois policiais deram mais quatro tiros no peito e abdome do
assaltante. Por último, Gleisson Morais, que havia sido rendido no posto em
Muzambinho, foi executado com seis tiros na sala (três disparos saíram a da
arma do policial Douglas Porpino).
De acordo com o INC,
logo após a matança os policiais rodoviários e militares desembalaram as armas
dos assaltantes e atiraram na direção de onde vieram os policiais, simulando um
tiroteio que nunca existiu. A farsa se torna evidente em duas ligações ao serviço
190 da PM. Às 5h23 da manhã de 31 de outubro, o policial rodoviário Lucas do
Carmo Monteiro telefonou para o número a fim de comunicar o suposto confronto
com os bandidos. “Dominamos a área do ‘novo cangaço’ aqui, o sítio que eles
tão.” Depois de dizer isso, Monteiro desligou abruptamente o telefone, mas
voltou a ligar às 5h26 e reforçou que o confronto havia acabado: “Eu tô aqui
fazendo o perímetro e tá tudo dominado, já.”
No entanto, no minuto
seguinte, um vizinho do sítio acionou o mesmo 190 para avisar à polícia sobre o
tiroteio. Os peritos notaram que, na ligação, é possível ouvir barulhos de
tiros, o que contradiz a versão de Monteiro de que o suposto confronto havia acabado.
A PF suspeita que,
naquele instante, os policiais estivessem atirando com as armas dos criminosos
(já mortos) para simular um tiroteio e, com isso, enganar a futura perícia.
“Tinha elementos armados lá, tinha disparos e foi muito rápido, a gente entrou
muito rápido [no imóvel] para não ser atingido”, afirmou o policial rodoviário
André Neves à Polícia Federal. Somente cinquenta minutos após serem mortos é
que os corpos foram levados ao Hospital Bom Pastor (um dos policiais chegou ao
hospital sentado sobre os cadáveres) e a uma unidade de pronto-atendimento de
Varginha, com o argumento de que estavam sendo socorridos ainda com vida, ainda
que duas das vítimas estivessem sem parte do cérebro. “Tinha que prestar
[socorro] o mais rápido possível”, disse o policial rodoviário Santos em
depoimento à PF. Os policiais também mudaram todos os móveis de lugar dentro da
casa, na tentativa de confundir a perícia.
Restava o segundo
sítio, a 15 km do primeiro, onde havia mais oito assaltantes. Cinco integrantes
da PRF e dois policiais militares cercaram o imóvel, menor do que o primeiro e
sem muros. Enquanto os policiais rodoviários Rudh França, Mateus Belchior e João
Henrique Botelho acessavam a varanda, ao lado da piscina, os demais cercavam a
propriedade pelos fundos. Nesse instante, os assaltantes Zaqueu e Isaque Xavier
Ribeiro, irmãos, perceberam o cerco e tentaram fugir pela porta da frente, mas
acabaram atingidos por tiros vinculados aos armamentos de França e Botelho.
Quando os policiais lançaram uma granada de luz e som na sala, o caseiro do
sítio, Adriano Garcia, que assistia à tevê, surgiu na porta da casa dos fundos,
onde ele morava. Acabou atingido por quatro tiros, um deles da arma do policial
rodoviário Teles Basílio.
Em meio ao barulho das
granadas e dos tiros, os assaltantes tentaram fugir pelos fundos. Um deles,
possivelmente Darlan Ribeiro dos Santos, viu a silhueta de um dos policiais no
vitrô, pelo lado de fora, e disparou doze tiros na janela e na porta da sala
com uma pistola. Santos, o único assaltante armado dentro da casa, foi morto
com cinco tiros fora do imóvel (a perícia não conseguiu precisar o local
exato). Ao entrar na sala, o policial França atirou oito vezes em outro
assaltante, Eduardo Pereira Alves – no total, ele levou onze tiros. Em um dos
quartos, Luiz André Felisbino foi morto com três tiros, dois deles nas costas..
Por último, os peritos
do INC encontraram indícios de que “houve ferimentos e até mortes” no
galinheiro do sítio, quando a situação no imóvel já estava totalmente
controlada pelos policiais. A suspeita é de que o caseiro Adriano Garcia, que
não integrava a quadrilha de assaltantes, tenha sido executado nesse local. O
INC não conseguiu identificar o local onde duas das vítimas do segundo sítio,
Evando José Pimenta Júnior e Romerito Araújo Martins, foram mortas (os peritos
encontraram indícios de que o primeiro tenha sido torturado antes de ser
assassinado). Assim como no primeiro sítio, todos os corpos foram levados ao
hospital, depois que os policiais dispararam as armas dos assaltantes para
simular um tiroteio. No total, os policiais fizeram quinhentos disparos nos
dois sítios; as armas dos assaltantes, apenas vinte.
Na época, a chacina
foi celebrada pelo clã Bolsonaro. “Apreensão de fuzis, munições, granadas,
explosivos e, após confronto, 25 criminosos tiveram a conversa antecipada com o
Capiroto”, escreveu o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), no Facebook. O deputado
Eduardo Bolsonaro (PL-SP), seu irmão, também fez festa no X (antigo Twitter).
“Nenhum policial morto. Parabéns PRF e PM-MG”, escreveu e, em seguida, fez a
provocação de praxe: “Fiquem tranquilos, só vagabundos reclamarão. #GrandeDia.”
Anderson Torres, então
ministro da Justiça, a quem a PRF é subordinada, também comemorou a chacina no
Facebook. “Mais uma ação de sucesso! […] Parabéns às forças policiais pela
condução da ocorrência. Enfrentar a criminalidade nas ruas é o grande desafio e
o diferencial do nosso trabalho.”
Olaudo do INC embasou
o indiciamento de quinze policiais rodoviários e de dezessete policiais
militares por homicídio e fraude processual – os membros da PRF Francisco Moura
e Douglas Porpino também foram indiciados pela tortura de Francinaldo Silva e
Gleisson Morais. “Por tudo quanto até aqui apurado, não restam dúvidas: todos
que ingressaram nas edificações e seus perímetros mais próximos queriam o
resultado morte para todos os que ali estavam. Há indivíduos que levaram vários
tiros provenientes de vários atiradores. Logo, vários queriam as mortes destes.
A disposição dos corpos também é clara: a equipe policial foi ‘varrendo’ o
perímetro e abrindo fogo em quem estivesse à frente. Não se sabia quem era
quem. Partiu-se da premissa de que eram criminosos e deveriam ser alvejados.
Quem tentou fugir dos tiros de determinado policial acabou por ser atingido por
tiros de outro ou de outros. Nenhum suspeito sobreviveu. […] A dinâmica das
ações não permite dúvidas. Se houvesse mais alguém nos imóveis esse certamente
seria morto. Mesmo o policial que porventura não tivesse alvejado ninguém
contribuiu para as mortes, já que sua presença condicionou o comportamento de
quem tenha pretendido fugir ou se esconder”, escreve o delegado da PF Carlos
Henrique D’Angelo na conclusão da investigação. O inquérito segue para o
Ministério Público Federal, a quem caberá oferecer ou não denúncia criminal
contra os policiais à Justiça.
Nem a Defensoria
Pública de Minas Gerais, que atua na defesa dos policiais do Bope envolvidos na
chacina, nem o advogado que representa os policiais rodoviários, Jarbas Aredes
Júnior, responderam aos contatos feitos pela piauí até a publicação desta reportagem.
Se a resposta for enviada, este texto será atualizado.
Nos últimos dias, o
Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais de Roraima, presidido por Felipo
Jesus Medeiros, que participou da chacina e está entre os indiciados pela PF,
começou uma campanha nas redes sociais para arrecadar dinheiro para a defesa dos
policiais envolvidos no caso. “A sociedade de Varginha e de todo o Brasil foi
salva naquela manhã e a missão foi cumprida com louvor por todos os policiais
envolvidos na ação, que depois de colocar as suas próprias vidas em risco,
puderam voltar sãos e salvos para as suas famílias. […] Os PRFs agradecem desde
já a colaboração de todos, mesmo que simplesmente compartilhando essa mensagem
com todas as forças policiais e a sociedade de bem que se sente protegida com
ações dessa natureza”, diz o texto. Procurado pela reportagem, Medeiros
confirmou a “vaquinha”, mas não informou o valor já arrecadado.
Fonte: Revista Piauí
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