quarta-feira, 27 de março de 2024

Marielle: o fio do novelo

Os últimos lances na investigação que já dura 6 anos, desde o assassinato de Marielle e Anderson, foram celebrados como a aproximação do seu fim, com o esclarecimento dos mandantes e da motivação do crime bárbaro, a partir da convocação de um coletiva pelo Ministro Lewandowski para anunciar que a delação premiada do assassino confesso Ronnie Lessa havia sido homologada pelo Supremo Tribunal Federal. Para a família, as esperanças foram renovadas como expressou a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco; para a viúva, vereadora Mônica Benício, a coletiva convocada pelo Ministro causou frustração e dor, enquanto o Governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, reagiu dizendo que até agora tudo que se sabe são fofocas. Aliás, sua postura tem variado ao longo do tempo entre a necessidade de manter uma aparente neutralidade, como em 2021 quando declarou que cobrava uma solução mas não garantia um desfecho da investigação, até a postura atual, cujo cinismo ao afirmar que tudo não passa de fofoca, o retira, definitivamente da sua busca de neutralidade, Em ambos os casos, apresenta posturas não condizentes com a autoridade máxima do Estado onde o crime foi executado e investigado, até recentemente, pela polícia civil do seu governo.

Neste 6 anos de investigação, foram detidos o ex-policial e traficante de armas Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Queiroz, réus confessos de terem participado diretamente do assassinato, e o bombeiro Maxwell Simões também envolvido, todos vinculados ao Escritório do Crime e à milícia, e, mais recentemente, o dono do ferro-velho que desmanchou o carro usado no crime. Nenhum deles, até o momento foi julgado e condenado. O processo de investigação na polícia civil, no entanto, é digno de uma investigação sobre o percurso rocambolesco, com a participação e posterior afastamento de uma promotora bolsonarista, a substituição por quatro vezes do delegado responsável pela investigação, a tentativa de delação premiada envolvendo homicídios e ligação com políticos da viúva do chefe do Escritório do Crime, o ex-PM Adriano Nóbrega, executado na Bahia – agraciado com a medalha Tiradentes por Flavio Bolsonaro e considerado um herói por Jair Bolsonaro – o pedido de afastamento da promotoras Simoni Sibilio e Leticia Emile do MPRJ, sob alegação de riscos e interferências externas no processo, a partir do vazamento de informações sigilosas pelo Delegado Mauricio Demétrio – posteriormente preso e condenado a 9 anos, acusado de comandar uma quadrilha – vazamento autorizado pelo secretário da Polícia Civil Alan Turnowski, posteriormente preso por ligação com o jogo do bicho.

Em outubro de 2023 o inquérito foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, para o STF, após surgirem suspeitas do envolvimento no crime de um membro do clã Brazão, com imunidade. O nome de Domingos Brazão, ex-deputado estadual por cinco mandatos consecutivos e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, foi mencionado como mandante do crime. Trata-se do líder de um poderoso grupo político da zona oeste do Rio, berço das milícias, que tem uma vasta folha corrida, com acusações de assassinato, improbidade administrativa, fraude, envolvimento na máfia dos combustíveis, com as milicias e na compra de votos.

Após a homologação da delação premiada de Ronnie Lessa, seus advogados de defesa abandonaram o caso, em clara manifestação de contrariedade com o rumo que as investigações tomaram. Também chama atenção o acesso da imprensa a informações confidenciais da delação, divulgadas pelo jornal O Globo, nas quais além da informação sobre os mandantes do crime, envolvendo também Chiquinho Brasão, deputado federal, Ronnie Lessa teria afirmado que a motivação do crime se deveu ao fato de a vereadora ter entrado em rota de colisão com os interesses da milícia em relação à expansão de terrenos sob seu domínio na zona oeste. O investigado afirma ter tido pelo menos quatro encontros com os mandantes depois do crime, preocupado com a enorme repercussão do assassinato de Marielle, ao que teria sido tranquilizado por eles pois “a investigação não ia dar em nada”.

O que chama atenção é a certeza de impunidade dos mandantes, que parecem seguros que não ia dar em nada a investigação da morte de uma mulher preta favelada, mesmo sendo a quinta vereadora mais votada e tendo se tornado a expressão de uma nova forma de fazer política – a mandata, que deixou muitas sementes -, chegando junto das populações de favelas, das mulheres negras, dos movimentos LGBTQIA+, dentre outros, encantando com sua coragem jovens de toda a cidade, que viam na sua atuação uma esperança de mudança política. Mais além da sua atuação junto ao deputado Marcelo Freixo na CPI das Milícias ou dos interesses das milícias em sua expansão territorial, o assassinato de Marielle ceifou sua potência política e a esperança de que seria possível uma nova política no Rio de Janeiro. Sua morte, no entanto, tornou-a um símbolo internacional das lutas identitárias e urbanas.

Os avanços na investigação, com a denúncia dos nomes dos mandantes e da motivação do crime, sinalizam para alguns, para em breve, o possível término da investigação, enquanto, para muitos, ainda restam inúmeras questões a serem esclarecidas, sendo o assassinado a ponta do fio do novelo que deveria desvendar, entre outras, as seguintes perguntas:

– O que aconteceu com o porteiro do condomínio onde Bolsonaro e Ronnie Lessa eram vizinhos, depois que ele declarou que o presidente autorizou a entrada de Élcio Queiroz no dia do crime?

– Existe relação da morte de Adriano Nóbrega, considerada queima de arquivos, com o assassinato de Marielle e Anderson, já que Adriano e Ronnie Lessa atuaram juntos em vários crimes, segundo depoimento de Orlando Curicica sobre o Escritório do Crime?

– Quais as relações do Escritório do Crime e das milícias com a polícias, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário?

– Será que o assassinato de Marielle e Anderson poderá ser o fio do novelo que poderia desvendar, como fez o mapa do domínio das milicias e tráfico nos território do Rio de Janeiro, um novo mapa deste domínio na política?

 

       MARIELLE FOI MORTA PARA QUE BRAZÃO CONSEGUISSE APROVAR PL DE GRILAGEM DE TERRAS NA ZONA OESTE DO RIO

 

O DIRETOR-GERAL DA POLÍCIA FEDERAL diz que são várias as situações que motivaram o deputado Chiquinho Brazão, o irmão, Domingos Brazão, e Rivaldo Barbosa, a planejarem e encomendarem a morte da vereadora Marielle Franco em 2018.

 A mais latente é uma disputa imobiliária: os Brazão tinham interesse em fazer loteamentos na zona oeste do Rio, e Marielle se opunha ao empreendimento. O assassino Ronnie Lessa receberia terrenos como pagamento pelo crime.

Em seu relatório final sobre o caso Marielle, a Polícia Federal menciona que Chiquinho foi “surpreendido por dificuldades na obtenção de votos para a aprovação [do projeto], sendo certo que, em primeiro turno, com votos contrários da bancada do Psol e, consequentemente, de Marielle Franco, houve a apresentação de um substitutivo, ampliando a abrangência territorial da lei”.

Segundo as investigações, em 2017 os Brazão haviam infiltrado Laerte Silva de Lima no Psol para monitorar Marielle Franco, pela qual eles tinham “repugnância”. Lima e a mulher se filiaram ao partido naquele ano.

Foi por meio do infiltrado que os milicianos souberam que a vereadora pedia para a população para que não aderisse aos loteamentos erguidos em áreas de milícia. Em 2021, a polícia encontrou documentos que apontavam que Laerte lavou milhões de reais para a milícia com criptomoedas. Ele chegou a ser investigado no caso Marielle, mas isso não foi adiante.

•        Projeto foi aprovado no dia da morte de Marielle

Na Câmara de Vereadores carioca, Chiquinho Brazão, hoje deputado federal pelo União Brasil – e na época do crime vereador pelo Avante –, tinha um interesse especial no PLC n.º 174/2016, projeto sobre regularização de loteamentos em Vargem Grande, Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá.

O projeto, proposto por Chiquinho, visava favorecer a expansão de construções irregulares na zona oeste, área onde ele, Marcelo Siciliano e Junior da Lucinha disputam votos. Ele já havia tentado aprovar um projeto semelhante anos antes.

Em depoimento que consta no relatório da PF, um assessor da Câmara disse que “o risco da não aprovação do PLC 174/2016 teria causado grande insatisfação do Vereador Chiquinho Brazão com a bancada do Psol e, consequentemente, com Marielle, que votou contra por entender que o projeto não atendia ‘áreas carentes’, mas regiões de classe média e alta”.

Chiquinho não gostou da oposição do Psol e de Marielle. Considerava que o voto contrário da vereadora, e a consequente aprovação apertada do projeto, geraria desgaste político a ele. Conforme a testemunha, Chiquinho ficou irritado, algo incomum para alguém habitualmente “discreto e tranquilo”.

A testemunha apontou o Psol como o “calcanhar de Aquiles” do MDB, partido de Brazão, na época. Ela citou ainda um outro caso que desestabilizou ainda mais o partido, que estava sofrendo os impactos da Operação Lava Jato. Uma ação popular do Psol impediu que o ex-deputado Edson Albertassi, do MDB, fosse nomeado ao Tribunal de Contas do Estado. Isso impediria qualquer gerência do MDB sobre a operação para o Superior Tribunal de Justiça.

A testemunha disse ainda que a morte de Marielle “paralisou o Psol no Rio de Janeiro, uma vez que amedrontou os parlamentares, assessores e demais empregados do partido”.

O relatório da Polícia Federal diz que o descontentamento de Brazão “ocorreu em período compatível com aquele mencionado por Ronnie Lessa” em colaboração premiada, no segundo semestre de 2017, “o que pode ter sido o estopim para que fosse decretada a pena capital de Marielle pelos irmãos Brazão”.

Marielle e Anderson foram executados no dia 14 de março de 2018. Foi coincidentemente a mesma data em que foi aprovada a redação final do PLC n.o 174/2016 no Plenário da Câmara.

O PLC acabou vetado pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, do Republicanos, em 5 de abril de 2018. O veto foi derrubado cerca de um mês depois e a Lei Complementar 188/2018 foi publicada. A vontade de Chiquinho foi cumprida.

 

       CHEFE DE POLÍCIA RIVALDO BARBOSA FEZ UMA 'ÚNICA EXIGÊNCIA' PARA A EXECUÇÃO

 

AS PRISÕES DOS MANDANTES do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes revelaram duas bombas. A primeira já era conhecida desde 2019 e foi confirmada pelo Intercept Brasil em janeiro deste ano: o deputado estadual fluminense Chiquinho Brazão, do União Brasil, e seu irmão Domingos Brazão, são os idealizadores do crime brutal.

A outra, que pegou até a família de Marielle de surpresa, é o envolvimento de Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil do Rio, no planejamento do crime e obstrução da investigação.

Segundo a decisão de Alexandre de Moraes, Barbosa planejou “meticulosamente” o assassinato e tinha total ingerência sobre a execução, “com a imposição de condições”. A única exigência de Barbosa, então diretor da divisão de homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro, ainda segundo a decisão, era que “a execução não poderia se originar da Câmara de Vereadores”.  A preocupação era manter as investigações sob controle.

“Tal exigência tem fundamento na necessidade de se afastar outros órgãos, sobretudo federais, da persecução do crime em comento, de modo a garantir que todas as vicissitudes da investigação fossem manobradas por Rivaldo, então supervisor de todas as investigações de homicídios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”, escreveu Alexandre de Moraes.

Logo após a morte de Marielle, em 14 de março de 2018, foi Barbosa quem atendeu o deputado Marcelo Freixo, colega de Marielle no Psol, e se encontrou com a família e os amigos. Hoje, ele é um dos acusados de estarem por trás do crime e ter agido para obstruir as investigações.

“Rivaldo Barbosa encontra-se em uma lotação estratégica aos interesses do grupo criminoso, tendo em vista que é a autoridade que centraliza e planeja a comunicação de todas as operações da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, inclusive aquelas de teor sigiloso e aquelas que contam com a integração das demais forças de segurança”, diz o relatório da Polícia Federal.

Segundo o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, são várias as motivações do crime. Elas têm origem, principalmente, no interesse dos Brazão em terrenos na zona oeste do Rio. A atuação de Marielle como parlamentar pelo Psol atrapalhava os negócios.

Também segundo Rodrigues, a relação entre os irmãos Brazão e o delegado Barbosa era anterior ao crime. Em outra delação, o miliciano Orlando Curicica, que chegou a ser investigado pelo assassinato de Marielle, já havia afirmado que Rivaldo Barbosa recebia dinheiro para engavejar investigações na Delegacia de Homicídios.

Para o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a investigação do caso Marielle está encerrada. Os Brazão e Barbosa idealizaram, planejaram e agiram para matar a vereadora e garantir que as investigações não avançassem. Não por acaso, Ronnie Lessa, o assassino preso desde 2019, disse em sua delação premiada que se encontrou com os mandantes após o crime. Ouviu que “não ia dar em nada”.

•        Investigação do caso Marielle foi marcada por erros gritantes

Os Brazão tinham razão para estarem confortáveis com o parceiro de crime. Até fevereiro de 2018, Rivaldo Barbosa era delegado da Divisão de Homicídios da Capital. No dia 22 de fevereiro, foi nomeado pelo general Walter Souza Braga Netto, comandante da Intervenção Federal, como novo chefe da Polícia Civil no estado. A nomeação havia sido contraindicada pelo setor de inteligência, mas o interventor foi em frente mesmo assim. Rivaldo Barbosa foi empossado no novo cargo no dia 13 de março. No dia seguinte, Marielle foi assassinada.

Logo após a morte da vereadora, Rivaldo Barbosa nomeou o delegado Giniton Lages como titular da Delegacia de Homicídios, responsável por investigar o crime. Já mostramos que os primeiros momentos da investigação foram marcados por erros gritantes, como imagens de câmeras que sumiram, testemunhas que não foram localizadas e perícias que não puderam ser feitas por incompetência. Lages, também alvo de busca e apreensão, é apontado como uma pessoa de “extrema confiança” de Barbosa.

“Com a assunção do cargo por Giniton, se operacionalizou a garantia da impunidade dos autores do delito”, escreveu Moraes.

Rivaldo Barbosa é descrito em reportagens elogiosas como um delegado meticuloso que “adorava números”. A revista Veja chegou a apelidá-lo de “Sherlock Carioca”. Em 2018, uma reportagem da Época revelou que o delegado tinha faturado quase R$ 500 mil com empresas de consultorias de inteligência no nome da mulher, Erica de Andrade Almeida Araújo.

Após o assassinato de Marielle, o gabinete da intervenção divulgou uma nota reiterando a confiança no “trabalho dedicado” da polícia civil do Rio. “A integração dos órgãos de segurança pública do Estado com a Polícia Federal já está consolidada, particularmente na área de inteligência”, dizia a nota.

•        Intervenção Federal era alvo de críticas de Marielle

O presidente Michel Temer havia decretado a Intervenção Federal no início de 2018 para tentar combater uma suposta escalada de violência no Rio de Janeiro – que não era amparada pelos números do próprio governo do Rio. Em uma canetada só, Braga Netto, que havia chefiado a segurança dos Jogos Olímpicos de 2016, assumiu o comando das polícias militar e civil e dos bombeiros do Rio de Janeiro. Se reportava diretamente ao presidente Michel Temer, do MDB.

A intervenção, como sabemos, foi um fiasco. Ainda no final de fevereiro, pouco mais de duas semanas antes de ser assassinada, Marielle Franco assumiu a relatoria da comissão que fiscalizaria as atividades da Intervenção. Muito crítica, ela deu uma entrevista, naquele mês, afirmando que o gabinete era pouco transparente e pouco eficiente.

“Não só pouco efetiva, mas também pouco eficiente, com pouca transparência, um decreto tão genérico que teremos dificuldade, por exemplo, para obter números que costumávamos ter acesso, porque antes havia prestação de contas ao Tribunal de Contas”, ela disse.

Tinha razão: em 2023, uma outra operação da PF constatou que houve compras superfaturadas em mais de R$ 4 milhões durante a intervenção. Braga Neto é hoje investigado por isso. O outro mandante do crime preso neste domingo, também vale destacar, também ocupa uma posição estratégica: Domingos Brazão é conselheiro do Tribunal de Contas do Rio.

 

Fonte: Por Sonia Fleury, em Outras Palavras/The Intercept

 

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