Marielle: o fio do novelo
Os últimos lances na
investigação que já dura 6 anos, desde o assassinato de Marielle e Anderson,
foram celebrados como a aproximação do seu fim, com o esclarecimento dos
mandantes e da motivação do crime bárbaro, a partir da convocação de um
coletiva pelo Ministro Lewandowski para anunciar que a delação premiada do
assassino confesso Ronnie Lessa havia sido homologada pelo Supremo Tribunal
Federal. Para a família, as esperanças foram renovadas como expressou a
Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco; para a viúva, vereadora Mônica
Benício, a coletiva convocada pelo Ministro causou frustração e dor, enquanto o
Governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, reagiu dizendo que até agora tudo
que se sabe são fofocas. Aliás, sua postura tem variado ao longo do tempo entre
a necessidade de manter uma aparente neutralidade, como em 2021 quando declarou
que cobrava uma solução mas não garantia um desfecho da investigação, até a
postura atual, cujo cinismo ao afirmar que tudo não passa de fofoca, o retira,
definitivamente da sua busca de neutralidade, Em ambos os casos, apresenta
posturas não condizentes com a autoridade máxima do Estado onde o crime foi
executado e investigado, até recentemente, pela polícia civil do seu governo.
Neste 6 anos de
investigação, foram detidos o ex-policial e traficante de armas Ronnie Lessa e
o ex-PM Élcio Queiroz, réus confessos de terem participado diretamente do
assassinato, e o bombeiro Maxwell Simões também envolvido, todos vinculados ao
Escritório do Crime e à milícia, e, mais recentemente, o dono do ferro-velho
que desmanchou o carro usado no crime. Nenhum deles, até o momento foi julgado
e condenado. O processo de investigação na polícia civil, no entanto, é digno
de uma investigação sobre o percurso rocambolesco, com a participação e
posterior afastamento de uma promotora bolsonarista, a substituição por quatro
vezes do delegado responsável pela investigação, a tentativa de delação
premiada envolvendo homicídios e ligação com políticos da viúva do chefe do
Escritório do Crime, o ex-PM Adriano Nóbrega, executado na Bahia – agraciado
com a medalha Tiradentes por Flavio Bolsonaro e considerado um herói por Jair
Bolsonaro – o pedido de afastamento da promotoras Simoni Sibilio e Leticia
Emile do MPRJ, sob alegação de riscos e interferências externas no processo, a
partir do vazamento de informações sigilosas pelo Delegado Mauricio Demétrio –
posteriormente preso e condenado a 9 anos, acusado de comandar uma quadrilha –
vazamento autorizado pelo secretário da Polícia Civil Alan Turnowski,
posteriormente preso por ligação com o jogo do bicho.
Em outubro de 2023 o
inquérito foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, para o
STF, após surgirem suspeitas do envolvimento no crime de um membro do clã
Brazão, com imunidade. O nome de Domingos Brazão, ex-deputado estadual por cinco
mandatos consecutivos e atual conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de
Janeiro, foi mencionado como mandante do crime. Trata-se do líder de um
poderoso grupo político da zona oeste do Rio, berço das milícias, que tem uma
vasta folha corrida, com acusações de assassinato, improbidade administrativa,
fraude, envolvimento na máfia dos combustíveis, com as milicias e na compra de
votos.
Após a homologação da
delação premiada de Ronnie Lessa, seus advogados de defesa abandonaram o caso,
em clara manifestação de contrariedade com o rumo que as investigações tomaram.
Também chama atenção o acesso da imprensa a informações confidenciais da delação,
divulgadas pelo jornal O Globo, nas quais além da informação sobre os mandantes
do crime, envolvendo também Chiquinho Brasão, deputado federal, Ronnie Lessa
teria afirmado que a motivação do crime se deveu ao fato de a vereadora ter
entrado em rota de colisão com os interesses da milícia em relação à expansão
de terrenos sob seu domínio na zona oeste. O investigado afirma ter tido pelo
menos quatro encontros com os mandantes depois do crime, preocupado com a
enorme repercussão do assassinato de Marielle, ao que teria sido tranquilizado
por eles pois “a investigação não ia dar em nada”.
O que chama atenção é
a certeza de impunidade dos mandantes, que parecem seguros que não ia dar em
nada a investigação da morte de uma mulher preta favelada, mesmo sendo a quinta
vereadora mais votada e tendo se tornado a expressão de uma nova forma de fazer
política – a mandata, que deixou muitas sementes -, chegando junto das
populações de favelas, das mulheres negras, dos movimentos LGBTQIA+, dentre
outros, encantando com sua coragem jovens de toda a cidade, que viam na sua
atuação uma esperança de mudança política. Mais além da sua atuação junto ao
deputado Marcelo Freixo na CPI das Milícias ou dos interesses das milícias em
sua expansão territorial, o assassinato de Marielle ceifou sua potência
política e a esperança de que seria possível uma nova política no Rio de
Janeiro. Sua morte, no entanto, tornou-a um símbolo internacional das lutas
identitárias e urbanas.
Os avanços na
investigação, com a denúncia dos nomes dos mandantes e da motivação do crime,
sinalizam para alguns, para em breve, o possível término da investigação,
enquanto, para muitos, ainda restam inúmeras questões a serem esclarecidas,
sendo o assassinado a ponta do fio do novelo que deveria desvendar, entre
outras, as seguintes perguntas:
– O que aconteceu com
o porteiro do condomínio onde Bolsonaro e Ronnie Lessa eram vizinhos, depois
que ele declarou que o presidente autorizou a entrada de Élcio Queiroz no dia
do crime?
– Existe relação da
morte de Adriano Nóbrega, considerada queima de arquivos, com o assassinato de
Marielle e Anderson, já que Adriano e Ronnie Lessa atuaram juntos em vários
crimes, segundo depoimento de Orlando Curicica sobre o Escritório do Crime?
– Quais as relações do
Escritório do Crime e das milícias com a polícias, o Executivo, o Legislativo e
o Judiciário?
– Será que o
assassinato de Marielle e Anderson poderá ser o fio do novelo que poderia
desvendar, como fez o mapa do domínio das milicias e tráfico nos território do
Rio de Janeiro, um novo mapa deste domínio na política?
MARIELLE FOI MORTA PARA QUE BRAZÃO
CONSEGUISSE APROVAR PL DE GRILAGEM DE TERRAS NA ZONA OESTE DO RIO
O DIRETOR-GERAL DA
POLÍCIA FEDERAL diz que são várias as situações que motivaram o deputado
Chiquinho Brazão, o irmão, Domingos Brazão, e Rivaldo Barbosa, a planejarem e
encomendarem a morte da vereadora Marielle Franco em 2018.
A mais latente é uma disputa imobiliária: os
Brazão tinham interesse em fazer loteamentos na zona oeste do Rio, e Marielle
se opunha ao empreendimento. O assassino Ronnie Lessa receberia terrenos como
pagamento pelo crime.
Em seu relatório final
sobre o caso Marielle, a Polícia Federal menciona que Chiquinho foi
“surpreendido por dificuldades na obtenção de votos para a aprovação [do
projeto], sendo certo que, em primeiro turno, com votos contrários da bancada
do Psol e, consequentemente, de Marielle Franco, houve a apresentação de um
substitutivo, ampliando a abrangência territorial da lei”.
Segundo as
investigações, em 2017 os Brazão haviam infiltrado Laerte Silva de Lima no Psol
para monitorar Marielle Franco, pela qual eles tinham “repugnância”. Lima e a
mulher se filiaram ao partido naquele ano.
Foi por meio do
infiltrado que os milicianos souberam que a vereadora pedia para a população
para que não aderisse aos loteamentos erguidos em áreas de milícia. Em 2021, a
polícia encontrou documentos que apontavam que Laerte lavou milhões de reais
para a milícia com criptomoedas. Ele chegou a ser investigado no caso Marielle,
mas isso não foi adiante.
• Projeto foi aprovado no dia da morte de
Marielle
Na Câmara de
Vereadores carioca, Chiquinho Brazão, hoje deputado federal pelo União Brasil –
e na época do crime vereador pelo Avante –, tinha um interesse especial no PLC
n.º 174/2016, projeto sobre regularização de loteamentos em Vargem Grande,
Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá.
O projeto, proposto
por Chiquinho, visava favorecer a expansão de construções irregulares na zona
oeste, área onde ele, Marcelo Siciliano e Junior da Lucinha disputam votos. Ele
já havia tentado aprovar um projeto semelhante anos antes.
Em depoimento que
consta no relatório da PF, um assessor da Câmara disse que “o risco da não
aprovação do PLC 174/2016 teria causado grande insatisfação do Vereador
Chiquinho Brazão com a bancada do Psol e, consequentemente, com Marielle, que
votou contra por entender que o projeto não atendia ‘áreas carentes’, mas
regiões de classe média e alta”.
Chiquinho não gostou
da oposição do Psol e de Marielle. Considerava que o voto contrário da
vereadora, e a consequente aprovação apertada do projeto, geraria desgaste
político a ele. Conforme a testemunha, Chiquinho ficou irritado, algo incomum
para alguém habitualmente “discreto e tranquilo”.
A testemunha apontou o
Psol como o “calcanhar de Aquiles” do MDB, partido de Brazão, na época. Ela
citou ainda um outro caso que desestabilizou ainda mais o partido, que estava
sofrendo os impactos da Operação Lava Jato. Uma ação popular do Psol impediu que
o ex-deputado Edson Albertassi, do MDB, fosse nomeado ao Tribunal de Contas do
Estado. Isso impediria qualquer gerência do MDB sobre a operação para o
Superior Tribunal de Justiça.
A testemunha disse
ainda que a morte de Marielle “paralisou o Psol no Rio de Janeiro, uma vez que
amedrontou os parlamentares, assessores e demais empregados do partido”.
O relatório da Polícia
Federal diz que o descontentamento de Brazão “ocorreu em período compatível com
aquele mencionado por Ronnie Lessa” em colaboração premiada, no segundo
semestre de 2017, “o que pode ter sido o estopim para que fosse decretada a pena
capital de Marielle pelos irmãos Brazão”.
Marielle e Anderson
foram executados no dia 14 de março de 2018. Foi coincidentemente a mesma data
em que foi aprovada a redação final do PLC n.o 174/2016 no Plenário da Câmara.
O PLC acabou vetado
pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, do Republicanos, em 5 de
abril de 2018. O veto foi derrubado cerca de um mês depois e a Lei Complementar
188/2018 foi publicada. A vontade de Chiquinho foi cumprida.
CHEFE DE POLÍCIA RIVALDO BARBOSA FEZ UMA
'ÚNICA EXIGÊNCIA' PARA A EXECUÇÃO
AS PRISÕES DOS
MANDANTES do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista
Anderson Gomes revelaram duas bombas. A primeira já era conhecida desde 2019 e
foi confirmada pelo Intercept Brasil em janeiro deste ano: o deputado estadual
fluminense Chiquinho Brazão, do União Brasil, e seu irmão Domingos Brazão, são
os idealizadores do crime brutal.
A outra, que pegou até
a família de Marielle de surpresa, é o envolvimento de Rivaldo Barbosa, chefe
da Polícia Civil do Rio, no planejamento do crime e obstrução da investigação.
Segundo a decisão de
Alexandre de Moraes, Barbosa planejou “meticulosamente” o assassinato e tinha
total ingerência sobre a execução, “com a imposição de condições”. A única
exigência de Barbosa, então diretor da divisão de homicídios da Polícia Civil
do Rio de Janeiro, ainda segundo a decisão, era que “a execução não poderia se
originar da Câmara de Vereadores”. A
preocupação era manter as investigações sob controle.
“Tal exigência tem
fundamento na necessidade de se afastar outros órgãos, sobretudo federais, da
persecução do crime em comento, de modo a garantir que todas as vicissitudes da
investigação fossem manobradas por Rivaldo, então supervisor de todas as investigações
de homicídios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”, escreveu Alexandre de
Moraes.
Logo após a morte de
Marielle, em 14 de março de 2018, foi Barbosa quem atendeu o deputado Marcelo
Freixo, colega de Marielle no Psol, e se encontrou com a família e os amigos.
Hoje, ele é um dos acusados de estarem por trás do crime e ter agido para obstruir
as investigações.
“Rivaldo Barbosa
encontra-se em uma lotação estratégica aos interesses do grupo criminoso, tendo
em vista que é a autoridade que centraliza e planeja a comunicação de todas as
operações da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, inclusive aquelas de teor
sigiloso e aquelas que contam com a integração das demais forças de segurança”,
diz o relatório da Polícia Federal.
Segundo o
diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, são várias as motivações do
crime. Elas têm origem, principalmente, no interesse dos Brazão em terrenos na
zona oeste do Rio. A atuação de Marielle como parlamentar pelo Psol atrapalhava
os negócios.
Também segundo
Rodrigues, a relação entre os irmãos Brazão e o delegado Barbosa era anterior
ao crime. Em outra delação, o miliciano Orlando Curicica, que chegou a ser
investigado pelo assassinato de Marielle, já havia afirmado que Rivaldo Barbosa
recebia dinheiro para engavejar investigações na Delegacia de Homicídios.
Para o ministro da
Justiça, Ricardo Lewandowski, a investigação do caso Marielle está encerrada.
Os Brazão e Barbosa idealizaram, planejaram e agiram para matar a vereadora e
garantir que as investigações não avançassem. Não por acaso, Ronnie Lessa, o assassino
preso desde 2019, disse em sua delação premiada que se encontrou com os
mandantes após o crime. Ouviu que “não ia dar em nada”.
• Investigação do caso Marielle foi
marcada por erros gritantes
Os Brazão tinham razão
para estarem confortáveis com o parceiro de crime. Até fevereiro de 2018,
Rivaldo Barbosa era delegado da Divisão de Homicídios da Capital. No dia 22 de
fevereiro, foi nomeado pelo general Walter Souza Braga Netto, comandante da Intervenção
Federal, como novo chefe da Polícia Civil no estado. A nomeação havia sido
contraindicada pelo setor de inteligência, mas o interventor foi em frente
mesmo assim. Rivaldo Barbosa foi empossado no novo cargo no dia 13 de março. No
dia seguinte, Marielle foi assassinada.
Logo após a morte da
vereadora, Rivaldo Barbosa nomeou o delegado Giniton Lages como titular da
Delegacia de Homicídios, responsável por investigar o crime. Já mostramos que
os primeiros momentos da investigação foram marcados por erros gritantes, como
imagens de câmeras que sumiram, testemunhas que não foram localizadas e
perícias que não puderam ser feitas por incompetência. Lages, também alvo de
busca e apreensão, é apontado como uma pessoa de “extrema confiança” de
Barbosa.
“Com a assunção do
cargo por Giniton, se operacionalizou a garantia da impunidade dos autores do
delito”, escreveu Moraes.
Rivaldo Barbosa é
descrito em reportagens elogiosas como um delegado meticuloso que “adorava
números”. A revista Veja chegou a apelidá-lo de “Sherlock Carioca”. Em 2018,
uma reportagem da Época revelou que o delegado tinha faturado quase R$ 500 mil
com empresas de consultorias de inteligência no nome da mulher, Erica de
Andrade Almeida Araújo.
Após o assassinato de
Marielle, o gabinete da intervenção divulgou uma nota reiterando a confiança no
“trabalho dedicado” da polícia civil do Rio. “A integração dos órgãos de
segurança pública do Estado com a Polícia Federal já está consolidada, particularmente
na área de inteligência”, dizia a nota.
• Intervenção Federal era alvo de críticas
de Marielle
O presidente Michel
Temer havia decretado a Intervenção Federal no início de 2018 para tentar
combater uma suposta escalada de violência no Rio de Janeiro – que não era
amparada pelos números do próprio governo do Rio. Em uma canetada só, Braga
Netto, que havia chefiado a segurança dos Jogos Olímpicos de 2016, assumiu o
comando das polícias militar e civil e dos bombeiros do Rio de Janeiro. Se
reportava diretamente ao presidente Michel Temer, do MDB.
A intervenção, como
sabemos, foi um fiasco. Ainda no final de fevereiro, pouco mais de duas semanas
antes de ser assassinada, Marielle Franco assumiu a relatoria da comissão que
fiscalizaria as atividades da Intervenção. Muito crítica, ela deu uma entrevista,
naquele mês, afirmando que o gabinete era pouco transparente e pouco eficiente.
“Não só pouco efetiva,
mas também pouco eficiente, com pouca transparência, um decreto tão genérico
que teremos dificuldade, por exemplo, para obter números que costumávamos ter
acesso, porque antes havia prestação de contas ao Tribunal de Contas”, ela disse.
Tinha razão: em 2023,
uma outra operação da PF constatou que houve compras superfaturadas em mais de
R$ 4 milhões durante a intervenção. Braga Neto é hoje investigado por isso. O
outro mandante do crime preso neste domingo, também vale destacar, também ocupa
uma posição estratégica: Domingos Brazão é conselheiro do Tribunal de Contas do
Rio.
Fonte: Por Sonia
Fleury, em Outras Palavras/The Intercept
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