LÍDER GLOBAL OU CHEFE DE ESTADO? O dilema
de Lula na condução de uma política externa transversal
Em 18 de fevereiro de
2024 teve início uma grave crise político-diplomática do governo Lula 3, após o
presidente brasileiro declarar que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza e
com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu
quando Hitler resolveu matar os judeus”. A fala se referia à resposta militar
que Israel vem dando, nos últimos meses, aos ataques terroristas do Hamas de 7
de outubro de 2023 e foi proferida na Etiópia, onde Lula participava como
convidado de honra de uma cúpula da União Africana. Dias antes, ele estava no
Egito, onde fez um discurso, na sede da Liga Árabe, em que prometeu aumentar a
ajuda financeira do Brasil à agência da ONU que cuida de palestinos (UNRWA),
depois que uma série de países, liderados pelos Estados Unidos, anunciarem a
suspensão de pagamentos.
A declaração na Etiópia
foi repudiada, no mesmo dia, por Israel. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu
classificou-a como vergonhosa e acusou Lula de cruzar uma linha vermelha e agir
como um antissemita ao desonrar a memória das vítimas do Holocausto. O
embaixador brasileiro em Israel foi chamado para ouvir uma reprimenda oficial
no Museu do Holocausto, em Jerusalém, ao passo que Lula foi declarado persona
non grata no país enquanto não se retratar. Nos dias seguintes, autoridades do
governo israelense reiteraram as críticas e o pedido de retratação por meio de
redes sociais, em tom inflamado. Por sua vez, o governo brasileiro convocou seu
embaixador em Israel e chamou, para uma reunião, o embaixador de Israel em
Brasília, a fim de expressar insatisfação com as atitudes das autoridades
israelenses.
No plano
internacional, a fala de Lula gerou pouca repercussão, tanto em declarações de
apoio (que vieram, por exemplo, do presidente colombiano Gustavo Petro e da
Alba, bloco que reúne Bolívia, Cuba, Venezuela, entre outros países), quanto
manifestações de discordância (como por parte do porta-voz do Departamento de
Estado dos Estados Unidos e da ministra alemã de Relações Exteriores).
Entretanto, no plano doméstico, o episódio recebeu grande atenção midiática,
despertou um debate público acalorado, suscitou notas de repúdio ou apoio à
fala de Lula por entidades representativas de judeus ou palestinos,
respectivamente, e gerou discussões no Congresso Nacional, onde a bancada
evangélica liderou críticas ao presidente.
Para além de
instituições, o caso inflamou a polarização entre esquerda e extrema-direita na
sociedade brasileira, que vem encontrando, na política externa, um terreno
amplo para embates. A politização da política externa é um fenômeno crescente
no Brasil, observado há décadas, desde a redemocratização e a abertura da
economia, que ampliaram o número de pessoas interessadas nas relações
internacionais. Contudo, a politização passou por uma mudança qualitativa
durante o governo Bolsonaro, quando a extrema-direita radicalizou suas posições
e enfrentamentos. Hoje, a diplomacia presidencial intensa de Lula o coloca no
centro dos processos de formulação e aplicação da política externa, o que a
torna alvo de atenção destacada da oposição bolsonarista.
No debate público
suscitado, algumas vozes argumentaram que a fala de Lula foi improvisada e
voluntarista, sem respeito à moderação e à tradição diplomática, enquanto
outros apostaram que o presidente fez um cálculo político consciente para
mobilizar apoios no Sul geopolítico e animar sua base eleitoral ao subir o tom
contra Israel. O ônus da fala, entretanto, superou qualquer bônus, tanto no
cenário de uma improvisação, que abriu espaço para críticas de que a atual
política externa carece de institucionalização e seriedade, quanto na
alternativa do cálculo racional visando novos ganhos, posto que Lula já tinha
prestígio notório no Sul geopolítico e sua posição crítica à guerra já era
amplamente conhecida. Posteriormente, membros do governo confirmaram que a fala
não foi calculada e minimizaram as consequências negativas no plano externo.
Ainda assim, convém
atentarmos para elementos mais gerais sobre a política externa do atual governo
em que esse episódio se encaixa, a fim de extrairmos algumas reflexões sobre o
conteúdo e o processo decisório que vêm pautando a inserção internacional do
Brasil desde janeiro de 2023. O objetivo das seções a seguir é destacar o
aumento de importância que o Oriente Médio ganhou para essa inserção nos
últimos tempos, problematizar críticas recentes a seu respeito e propor
reflexões sobre os desafios sui generis que o peso político de Lula vem
colocando para a condução de uma política externa mais transversal, cujos
efeitos atravessam rapidamente as dimensões doméstica e internacional do Brasil
hoje.
INTERESSES BRASILEIROS
NO ORIENTE MÉDIO
Em meio à celeuma
sobre a fala de Lula, especulou-se se o Brasil deveria deixar de tomar parte,
ou se envolver menos, em um conflito longínquo como o de Israel-Palestina. A
guerra, entretanto, ocorre no coração do Oriente Médio, região onde se
localizam uma série de novos interesses do país no governo Lula 3. Ao longo do
seu primeiro ano, o Brasil despendeu esforços em quatro temas de destaque da
política internacional, ao menos: mudanças climáticas, expansão do Brics,
integração da América do Sul e mediação de conflitos. Um ponto que atravessou
todas estas agendas foi o envolvimento de países árabes, Irã ou Israel como
peças importantes para o governo alcançar seus objetivos, de modo que a atenção
em relação ao que acontece no Oriente Médio como um todo aumentou.
Em termos bastante
resumidos, na agenda climática, o Brasil apresentou, na COP-28, realizada nos
Emirados Árabes Unidos (EAU), a proposta de um fundo de conservação para
florestas tropicais, como a Amazônia, cujos principais doadores seriam países
com fundos soberanos, como as economias ricas em petróleo do Oriente Médio.
Essas economias são maioria na Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(Opep), da qual o Brasil se tornou membro observador. No Brics, foi acelerada
uma agenda de redução do uso do dólar como moeda de troca e foram convidados a
fazer parte do bloco, como novos membros plenos, quatro países do Oriente Médio
(Arábia Saudita, EAU, Egito e Irã), além de um país do seu entorno (Etiópia).
Egito e EAU também foram admitidos como sócios do Banco dos Brics, do qual
Dilma Rousseff é hoje presidenta.
Na pauta da integração
sul-americana, houve uma enorme dificuldade em alcançar uma convergência
política entre os atuais governos, o que se agravou após a posse, na
presidência da Argentina, de Javier Milei, que prometeu, na campanha eleitoral,
não inserir o país no Brics e buscar um alinhamento com os Estados Unidos e
Israel. Por fim, na tentativa de mediar conflitos na Ucrânia, em Essequibo e em
Gaza, o governo brasileiro não encontrou apoio internacional no primeiro caso,
alcançou sucesso no segundo (um tema regional) e não foi efetivo no terceiro.
No caso da mediação
tentada em Gaza, o governo se frustrou ao ver reprovada uma resolução de
cessar-fogo que propôs no Conselho de Segurança da ONU, presidido pelo Brasil
no mês em que a guerra eclodiu, devido ao veto dos Estados Unidos. Além disso,
houve consternação quando, em 8 de novembro de 2023 (um mês após o início da
guerra), o embaixador israelense no Brasil se reuniu, na Câmara dos Deputados,
com Jair Bolsonaro e parlamentares aliados que queriam demonstrar apoio a Tel
Aviv no conflito e, portanto, discordância em relação à posição do Executivo
brasileiro de buscar uma mediação.
Somou-se à
insatisfação de Lula com o governo Netanyahu o incômodo expresso com a demora
de Tel Aviv em liberar brasileiros que queriam deixar a Faixa de Gaza nas
primeiras semanas da guerra, após gestões que haviam envolvido o próprio
presidente. Por sua vez, no início de 2024, ocorreu outro episódio de alerta em
relação a Israel, quando a Polícia Federal expediu mandatos de busca e
apreensão contra membros do governo Bolsonaro que teriam recebido informações
de vigilância eletrônica coletadas ilegalmente pela Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) sobre membros da oposição e da sociedade civil. Essas
informações eram armazenadas em Israel, na sede da empresa que havia vendido o
programa de espionagem ao Brasil.
O que essa série de
eventos sugere é que o Oriente Médio se tornou um lugar-chave para a adoção da
atual política externa brasileira por causa da presença de países que podem
ajudar ou dificultar a conquista de objetivos. Essa política obedece a um projeto,
anunciado na eleição de 2022, que pode ser resumido em envolver o Brasil na
construção de um sistema internacional multipolar, no qual instituições
multilaterais e processos de integração regional tenham força suficiente para
conter ações unilaterais de grandes potências, nos marcos do capitalismo
internacional. Tal projeto guarda similaridades com o que foi executado pelos
governos petistas entre 2003 e 2015, mas é operado em um contexto internacional
mais turbulento e um espaço doméstico mais restritivo, marcado pela influência
de uma extrema-direita transnacional que parece cada vez mais bem articulada e
que está presente no Brasil e em Israel.
Apesar das condições
distintas, cabe lembrar que a experiência de 2003-2015 também foi marcada por
episódios de hostilidade entre Brasil e Israel. Em 2010, quando Lula e
Netanyahu também eram chefes de Estado, o Brasil costurou um acordo entre Irã e
Turquia para que urânio iraniano fosse enriquecido em território turco, para
fins de energia e com monitoramento internacional, a fim de reduzir temores de
que Teerã pudesse desenvolver armas nucleares perigosas a Tel Aviv. Contudo, o
movimento foi esvaziado pelos Estados Unidos (ainda que, anteriormente, este
tenha estimulado uma ação com a Turquia na mesma direção). Além disso, em 2014,
quando Dilma Rousseff presidia o Brasil, o país foi chamado de “anão
diplomático” por um ministro de Netanyahu depois que o governo protestou contra
um episódio de uso de força desproporcional por Israel em Gaza.
Tanto no período de
2003-2015 quanto hoje, a reforma da governança global é um objetivo colocado
como prioridade na agenda da política externa brasileira, especialmente no que
concerne o Conselho de Segurança da ONU, no qual se almeja um assento permanente
para o Brasil. Novamente, o Oriente Médio aparece como lugar estratégico nesse
tema, posto que os conflitos da região, particularmente entre Israel e
Palestina, ocupam a ONU desde a sua criação, nos anos 1940. Embora a causa
palestina tenha grande apoio histórico entre países do Sul geopolítico, Israel
recebe proteção habitual das grandes potências ocidentais, com destaque para os
Estados Unidos, que usam seu poder de veto a qualquer resolução que contrarie
os interesses daquele país. Alimentam-se, assim, desencontros recorrentes entre
o desejo brasileiro de influir na paz internacional e os obstáculos que grandes
potências impõem a qualquer redução de seu controle sobre a ordem regional do
Oriente Médio.
A HIPÓTESE DE UMA
“DOUTRINA AMORIM”
Apesar dos interesses
racionais que ligam o Brasil ao Oriente Médio hoje, foi sugerido pela grande
imprensa, durante a crise com Israel, que a política externa do governo Lula 3
teria deixado o pragmatismo de lado e embarcado em uma rota confrontacionista,
formulada com base em uma suposta “doutrina Amorim”. Tal perspectiva tenta
imputar a essa doutrina a responsabilidade de criar impasses na economia e na
geopolítica do mundo (como ao valorizar o Brics), dar aval tácito a autocratas
(como Nicolás Maduro e Vladimir Putin) e defender aliados econômicos e
ideológicos em vez de princípios universais da política externa brasileira
(como a mediação equilibrada e respeitável de conflitos internacionais).
Em verdade, a
aspiração por se diversificar os polos de poder do sistema internacional e
aumentar a autonomia do Brasil frente a todos eles tem sua expressão inicial na
Guerra Fria do início dos anos 1960. O governo conservador de Jânio Quadros
lançou a autodeclarada Política Externa Independente (PEI), comandada então por
Afondo Arinos, quadro liberal da UDN, buscando expandir mercados para o
capitalismo brasileiro no Oriente Médio, na Ásia, na África e na Europa, sem
considerações ideológicas sobre a inclinação de um governante ou o regime
político-econômico de um país. O projeto foi mantido no governo reformista de
João Goulart pelas mãos de San Tiago Dantas, do PTB, e Araújo Castro, diplomata
de carreira. Nos anos 1970, durante o governo militar de Ernesto Geisel, o
chanceler Azeredo da Silveira, também diplomata, retomou postulados da PEI.
Embora sempre passando por adaptações conforme os contextos, a continuidade
dessa aspiração em linhas gerais, ao longo de décadas, confere-lhe a
característica de uma tradição de pensamento político-diplomático.
Desde o pós-Segunda
Guerra, havia um consenso entre as elites brasileiras com relação ao objetivo
comum de superar o subdesenvolvimento brasileiro. As divergências entre elas
diziam respeito aos meios para tal: a aliança aos Estados Unidos e ao bloco dos
países desenvolvidos versus a diversificação das relações exteriores, em
particular na direção do mundo em desenvolvimento, no sentido de garantir maior
margem de manobra à política externa no contexto bipolar da Guerra Fria ou
unipolar que se seguiu com a vitória dos Estados Unidos. O governo Bolsonaro
rompeu com essa dicotomia. A política externa, entre 2019-2022, passou a ser
concebida como um dos instrumentos de realização de seu projeto pessoal de
poder. A aliança incondicional ao governo Trump e às lideranças da
extrema-direita transnacional tornaram-se meios de instrumentalizar tal
objetivo no plano externo.
Ora, se a
diversificação das relações internacionais brasileiras é um caminho político
legítimo e assentado em práticas anteriores; se, hoje, o Oriente Médio aparece
como região estratégica para se alcançar diversos objetivos neste sentido; e se
o governo Lula 3 representa uma antítese clara à extrema-direita bolsonarista,
o enquadramento da crise entre Brasil e Israel como tendo suporte em uma
doutrina sem estratégia é pouco convincente. Tratou-se, mais bem, de uma crise
que refletiu a maior inserção do Brasil no Oriente Médio por meio da
aproximação em relação a países árabes e ao Irã, com os quais há interesses em
comum no presente, em um momento no qual o governo Netanyahu investe em
alianças de base ideológica, mais próprias de uma lógica de guerra. Nesse
contexto, aumenta, para Israel, a sensibilidade de gestos políticos e
diplomáticos do Brasil quando envolve palestinos e países vizinhos.
Para além do conflito
em Gaza, as evidências de que uma “doutrina Amorim” daria sustentação
ideacional à política externa do governo Lula 3 nos parecem precárias ou
inexistentes. Não faz sentido que o Brasil liste a reforma da governança global
como uma das prioridades da política externa e formule uma doutrina
confrontacionista que nada tem de estratégica. A política externa de Lula, na
atualidade, tem por base os mesmos princípios e ações construídas em seus
governos anteriores, nos quais Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco
Aurélio Garcia colaboraram para construir a política externa “ativa e altiva”.
É essa a política que está sendo colocada em prática em um contexto
internacional geopoliticamente muito mais restritivo e conflitivo do que no
passado, que estimula apostas mais altas por parte do Brasil, frente a uma
condição doméstica com muito menos espaços de manobra do que aquela enfrentada
pelos dois governos Lula anteriores.
O FATOR LULA NA
POLÍTICA EXTERNA
No entanto, uma
questão permanece. Por que Lula muitas vezes escala o tom de suas declarações
de improviso em temas internacionais e age como um líder global que quer
disputar a opinião pública e não como um presidente da República mais contido e
protocolar? Em abril de 2023, o presidente brasileiro declarou, sobre o início
da guerra na Ucrânia a partir de uma invasão da Rússia, em 2022, que “a decisão
da guerra foi tomada por dois países”, referindo-se ao invadido e ao invasor.
No mês seguinte, quando recebeu Nicolás Maduro, em Brasília, afirmou haver uma
“narrativa que se construiu, contra a Venezuela, de antidemocracia e do
autoritarismo”. Ambas as falas também agitaram o debate doméstico e tiveram
alguma repercussão externa.
Mesmo confessando a
impossibilidade de uma resposta adequada à pergunta, cabe distinguir as duas
funções. Se Lula fosse apenas um líder global – o que é, de fato –, tudo o que
falasse não teria repercussão institucional imediata para a política externa, seja
no plano doméstico, seja no externo, pois possíveis ônus e bônus recairiam
sobre a sua pessoa e a sua biografia. Não é o caso de uma fala como chefe de
Estado, em que todas as consequências domésticas e internacionais recaem sobre
seu país. Neste segundo caso, há que se levar em conta as consequências
prováveis de seus atos e ser mais estratégico. É por isso que os presidentes
falam a partir de textos previamente elaborados. Isso é tão mais verdade quanto
menos recursos de poder um país dispõe. O desafio fica maior, ainda, quando se
trata do chefe de um governo para o qual pretende dar, declaradamente, um
perfil de frente ampla, reunindo esquerda, centro e direita democrática contra
a extrema-direita bolsonarista (que, sempre é bom ter em mente, quase venceu a
eleição de 2022).
Essas duas personas –
o líder carismático dentro e fora do Brasil e o político que se submete à
institucionalidade – sempre conviveram em Lula, mas hoje, como os eventos
internacionais tendem a ser transversais, multiplicam-se as incertezas e os
possíveis danos de qualquer fala. Lula não mudou; o que mudou foi a natureza
transversal dos atos internacionais, e essa faceta maximiza os custos de falas
de improviso. Talvez, por várias razões, hoje Lula se sinta mais empoderado
como um líder global e com mais liberdade para dizer o que sente pensando no
seu legado para o plano internacional e para a política doméstica, em especial
para o PT, partido de sua criação.
Diante disso, o que
parece acontecer quando Lula age como líder global e tem falas que produzem
consequências deletérias é que o controle de danos fica por conta da diplomacia
profissional. Aparentemente, as reações da Assessoria Internacional da Presidência
da República estariam mais direcionadas para o público interno dos apoiadores
de Lula, endossando suas falas, enquanto as respostas à comunidade
internacional ficariam a cargo da Chancelaria, suavizando palavras e tons.
Como hipótese sobre o
processo decisório da atual política externa, sugerimos que não existe conflito
de orientação entre os distintos personagens diplomáticos, mas, ao contrário,
estaria se repetindo o mesmo tipo de coordenação que existiu no passado entre a
Chancelaria e a Assessoria Internacional da Presidência da República, em um
contexto geopolítico distinto, bem mais desafiador e restritivo que no passado
e diante da natureza transversal mais evidente da política externa.
Para além desse jogo
de discursos, há outra possível consequência das duas personas de Lula no que
se refere a táticas adotadas para se alcançar objetivos da política externa.
Enquanto um líder global tem apenas a si mesmo para se envolver em ações pontuais
na política internacional e auferir louros individuais, um chefe de Estado tem
toda a sorte de instrumentos institucionais para operacionalizar uma ação do
país de longo prazo. A diplomacia presidencial intensa executada por Lula está
na interseção dos dois caminhos, somando o capital político do sujeito aos
recursos de poder do Brasil.
O que parece ter
apenas pontos fortes guarda, porém, um risco quando usado em excesso,
seguidamente e em vários temas divisivos: a reputação de uma pessoa se desgasta
muito mais facilmente do que a de um país e pode contaminar a legitimidade da
diplomacia presidencial. E se o contexto geopolítico mais restritivo estimula
que, na busca por autonomia e diversificação, a atual política externa seja
mais contundente, como o próprio governo admite, trata-se de mais uma razão
para haver maior cuidado com a forma dessa diplomacia.
Se 2023 foi um ano de
uso intenso da diplomacia presidencial de Lula para refazer a imagem do Brasil
após quatro anos de retrocesso com Bolsonaro, um dos recados da crise com
Israel é o de que dosar o tom se tornou prudente. Refrear a diplomacia
presidencial é sensato quando, por exemplo, já existe a liderança de um país em
campo, com posições muito semelhantes à brasileira, sobre determinada questão
internacional.
No caso da guerra em
Gaza, a África do Sul é uma potência média como o Brasil, mas vem desenvolvendo
uma estratégia mais sólida de denúncia a abusos e violações de direitos humanos
e humanitários que ocorrem na região, em parte motivada pelo trauma nacional do
apartheid. O acionamento sul-africano da Corte de Haia para que haja uma
definição formal se o ataque israelense configura ou não um genocídio (ato
apoiado pelo Brasil) e a articulação na União Africana para suspender o status
de membro observador de Israel são ações institucionais e multilaterais mais
efetivas na direção de atenuar a tragédia em Gaza e capazes de criar um
consenso constrangedor sobre o apoio incondicional dos Estados Unidos à
barbárie que o governo Netanyahu está cometendo.
Tendo em vista que o
Brasil está tacitamente vetado por Israel a atuar como mediador da guerra e que
o Conselho de Segurança da ONU não consegue avançar resoluções consensuais por
ora, investimentos em ações coletivas que tentem frear os danos humanitários do
conflito, com o apoio do maior número possível de países, pode ajudar a
minimizar a trajetória trágica da intervenção militar israelense em Gaza.
Mostrar, portanto, maior sintonia com a África do Sul e aceitar sua liderança
no Sul geopolítico, no tema em questão, é um caminho possível para o governo
seguir colocando o Brasil como um ator crítico e interessado na pacificação do
Oriente Médio, mas por meio de uma tática que provavelmente contaria com uma
base de apoio doméstico maior e reduziria a tensão entre as duas personas de
Lula, sem pretensão (aliás, impossível) de anular alguma delas.
Fonte: Por Maria
Regina Soares de Lima e Diogo Ives, pra Le Monde
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