A “DIPLOMACIA TIKTOK” DE ISRAEL
“Israel está fazendo
uma diplomacia de TikTok. O chanceler israelense posta vídeos e dá declarações
mentirosas em suas redes sociais atacando o Brasil e o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Não dá para discutir com um sujeito desse nível”, me disse um
contrariado diplomata brasileiro, que acompanhou a comitiva do ministro das
Relações Exteriores do Brasil, embaixador Mauro Vieira, no encontro do G20, que
reuniu os chanceleres dos países das vinte maiores economias do mundo, nos dias
21 e 22 deste mês, no Rio de Janeiro.
A indignação com o
governo de Israel por parte do governo brasileiro, do Itamaraty e de diplomatas
brasileiros aposentados se deu, inicialmente, com o constrangimento que o
ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, impôs ao embaixador do
Brasil, em Tel Aviv, no começo da semana. E se ampliou quando ele passou a dar
um espaço inesperado a ataques contra o Brasil e o presidente em suas redes
sociais, em razão das declarações do presidente brasileiro em Adis Abeba,
capital da Etiópia, no dia 18 de fevereiro, ao comparar o massacre dos
palestinos ao dos judeus cometido por Hitler, na Segunda Guerra.
A reação do governo de
Israel surpreendeu o Brasil por ser totalmente anômala às regras diplomáticas.
“Como você lida com um chanceler que posta fake news nas redes sociais atacando
um país e seu presidente de forma tão desrespeitosa?”, me disse este diplomata
que não quis ter o nome divulgado por não ser voz oficial do Itamaraty.
Este é o dilema
brasileiro agora. Como reagir, diplomaticamente, às táticas que estão sendo
lidas por diplomatas do Itamaraty como “violentas” e, ao mesmo tempo,
“infantis”, do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e de seu
chanceler, a fim de evitar a escalada da crise entre os dois países. Tem
consumido bastante energia da chancelaria brasileira lidar com o fato de Israel
Katz fazer provocações diárias ao presidente da República em suas redes,
insuflando boa parte dos políticos, de líderes evangélicos e da comunidade
judaica de direita brasileira a agirem contra o governo Lula. Tudo reverberado
pela imprensa que, desde a declaração de improviso de Lula, em Adis Abeba, tem
tratado o que poderia ser um incidente diplomático de resolução factível como
uma crise maior, que chegou a levar parlamentares da direita e da bancada
evangélica brasileira a pedirem o impeachment do presidente.
A diplomacia
brasileira mapeou o contexto em que o assunto ganhou tamanha dimensão. O
estremecimento das relações entre Brasil e Israel se dá quando Benjamin
Netanyahu se vê cada vez mais isolado no mundo, em razão do massacre dos
palestinos na Faixa de Gaza. Isso faz com que Netanyahu “crie situações para
tentar sensibilizar a comunidade internacional a favor de Israel”, na visão de
representantes brasileiros.
Prova desse
isolamento, me disse um diplomata, foi o resultado da última reunião do
Conselho de Segurança da ONU, no dia 20, onde só os Estados Unidos, em um grupo
de catorze participantes, votaram contra o cessar-fogo na Faixa de Gaza. Como o
país tem poder de veto no Conselho, o cessar-fogo não foi aprovado.
Na análise de
diplomatas do Itamaraty, Israel tenta fazer agora, com o Brasil, o que pratica
há anos com os Estados Unidos: buscar apoio da comunidade judaica e dos
cristãos de ultradireita americanos para enfraquecer os governantes. “O
presidente Joe Biden, na questão Palestina, teme desagradar o forte lobby
judaico americano, principalmente em um ano eleitoral”, anota um diplomata.
“Netanyahu faz isso desde Barack Obama, quando ignorou a proposta de
entendimento do presidente americano com os palestinos e foi para o Congresso
americano dizer que a paz era irreal”, lembrou. “No caso brasileiro, o governo
de Israel está claramente tentando atiçar a comunidade judaica de extrema
direita no Brasil e os evangélicos conservadores contra o governo que vem se posicionando
a favor da paz desde que o conflito entre Israel e a Faixa de Gaza estourou,
logo após o atentado terrorista do Hamas. Seria uma forma de tentar forçar o
governo brasileiro a recuar no seu apoio ao cessar-fogo e à criação de dois
Estados.”
Uma amostra dessa
pressão se deu na manifestação organizada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, no
último domingo, 25, na Avenida Paulista, a favor dele mesmo. Sua intenção foi
demonstrar ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao governo que ainda tem força política
e que conta com apoio de dezenas de milhares de seguidores. Durante a
manifestação, bolsonaristas evangélicos, entoando hinos cristãos, se misturavam
a manifestantes carregando bandeiras de Israel. Os evangélicos pentecostais e
neopentecostais – que em boa parte acreditam que a volta de Cristo se dará
somente depois que todos os judeus voltarem para a Terra Santa – têm
fortalecido os laços com judeus brasileiros da direita para fazerem oposição ao
presidente Lula desde o início do seu governo. Na manifestação pró-Bolsonaro, a
dobradinha ficou ainda mais evidente.
A confusão entre
Brasil e Israel começou no domingo, dia 18 de fevereiro, após Lula dar uma
coletiva à imprensa, no encerramento da 37ª Cúpula Ordinária de Chefes de
Estado de Governo da União Africana, em Adis Abeba, capital da Etiópia. Em sua
declaração, Lula afirmou que o que está acontecendo em Gaza é um genocídio por
se tratar de uma guerra entre Israel, um país altamente armado, contra uma
população civil indefesa. E soltou a declaração que se voltaria contra ele: “O
que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em
nenhum momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os
judeus. E você vai deixar de ter ajuda humanitária? Quem vai ajudar a
reconstruir aquelas casas que foram destruídas? Quem vai devolver a vida das
crianças que morreram sem saber por que estavam morrendo?”, disse o presidente.
A declaração inflamada
de Lula na África, embora dada de improviso, era resultado, segundo me relatou
um diplomata, das “informações angustiantes” que ele recebera sobre a guerra.
No dia 16 de fevereiro, Lula teve duas reuniões importantes em Adis Abeba, das
quais saiu arrasado, segundo pessoas presentes. Uma delas foi com o presidente
do Egito, Abdul Fatah Khalil Al-Sissi. A outra, com o primeiro-ministro da
Autoridade Palestina, Mohammad Shtayyeh.
Nesses encontros, os
dois líderes mostraram a Lula imagens de crianças mutiladas pelo devastador
ataque das Forças de Defesa de Israel, IFD, na Faixa de Gaza, em represália ao
bárbaro ataque do Hamas a civis desarmados, no Sul de Israel, em 7 de outubro passado,
onde morreram cerca de 1200 pessoas e cerca de 240 foram feitas reféns. Nas
imagens de Gaza mostradas a Lula, o que mais o transtornou foram as de crianças
e bebês sem braços e pernas, outros com queimaduras por todo o corpo e outros
com cabeças estilhaçadas por tiros. Em seus relatos, os dois líderes contaram a
Lula que as amputações estavam sendo feitas sem anestésico, por falta do
suprimento, e que a maioria dos hospitais estava fora de operação em razão dos
bombardeios israelenses.
Lula também recebeu a
informação de que pessoas estavam sem água e sem comida, principalmente porque
mais de dez países, entre eles, Estados Unidos, Reino Unido, Suíça, Itália,
Irlanda, Canadá e Austrália, cortaram a ajuda humanitária à Agência das Nações
Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (Unrwa),
na sigla em Inglês, depois que o governo de Israel declarou que sete membros da
entidade estavam entre os terroristas dos Hamas que atacaram Israel. Com isso,
o socorro à população palestina confinada no Sul da região ficou ainda mais
comprometido. Até agora, segundo informações da Unrwa à imprensa israelense,
Netanyahu não conseguiu provar que havia funcionários da entidade no atentado
terrorista. Por esta razão, inclusive, a Irlanda decidiu retomar a ajuda.
O fato é que, ao despejar
sua angústia diante de jornalistas, comparando duas tragédias humanas, Lula
mexeu com o mais profundo trauma judaico, que levou à morte mais de 6 milhões
de judeus durante a Segunda Guerra Mundial: o Holocausto. Assim que acabou de
se pronunciar, sua fala já repercutia – muito mal – no Brasil e em Israel. As
reações foram imediatas. Os termos usados para criticar Lula por sua declaração
iam de “antissemita” a “ignorante”.
No Congresso, os
presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, exigiam
retratação imediata do presidente e um pedido de desculpas a Israel.
Parlamentares da ultradireita bolsonarista se uniram aos evangélicos para pedir
o impeachment do presidente pelo “desrespeito” com o povo judeu. As federações
israelitas do Rio e de São Paulo afirmaram que as falas do presidente
comparando as ações de Israel em Gaza ao Holocausto eram “uma visão distorcida
do conflito no Oriente Médio”. As federações mencionaram ainda a falta de
crítica por parte do governo brasileiro “ao verdadeiro terrorismo imposto pelo
Hamas”. O presidente do Instituto Rav Sany, rabino Sany Sonnenreich, que
promove projetos a jovens judeus nos bairros dos Jardins e de Moema, em São
Paulo, subiu o tom: “Repudiamos energética e veementemente mais uma divulgação
falsa, antissemita, racista, ignorante, mentirosa proferida pelo presidente
Lula. Quando ele diz que nunca viu tantas crianças e mulheres assassinadas numa
guerra, leia-se ‘pelo próprio Hamas’, que os coloca como escudos humanos, em
locais estratégicos, a fim de que sejam atingidos propositalmente.”
Até mesmo o embaixador
aposentado Sérgio Florêncio, que costuma ser mais moderado, foi crítico. Numa
entrevista à TV Bandeirantes, ele disse: “Não é compreensível e lógica a
manifestação do presidente Lula, ao fazer a comparação, totalmente inadequada,
entre os ataques devastadores das Forças de Defesa de Israel, que constituem
uma barbárie, com o Holocausto. Esta declaração de Lula foi um erro histórico.
Não se compara uma das maiores tragédias do século XX com uma guerra,
devastadora, condenável, mas localizada no contexto de ataques do Hamas e
também desproporcionais da IDF. Foi uma impropriedade diplomática. O que Lula
fez foi dar argumento ao líder israelense reconhecidamente autoritário,
antidemocrata e que tem seus dias contados. Acabada a guerra, Netanyahu vai
cair.” Ao dar como exemplo o genocídio judaico, Lula deixou de citar, na sua
entrevista, que o mundo, depois da Segunda Guerra, passara por vários
genocídios além do Holocausto: o do Camboja, que matou 2 milhões de civis; o da
região dos Bálcãs e o de Ruanda. A não inclusão desses outros crimes levou
muitos judeus, por isso mesmo, a entenderem a comparação específica como
provocação.
Já a imprensa
brasileira declarou guerra diária a Lula, acusando-o de flertar com o caos.
Colunistas afirmaram, entre outras coisas, que a fala era “um constrangimento
para o Brasil”, que iria “arruinar as relações de Lula com o chanceler
americano, Antony Blinken, às vésperas de ele chegar ao Brasil para a reunião
dos chanceleres do G20”, e dificultar a participação do Brasil na discussão do
processo de paz. O jornal O Estado de S. Paulo chegou a acusar Lula de
“vandalismo diplomático”.
Fosse “erro
histórico”, “impropriedade”, “racismo”, ou “vandalismo”, dependendo do ponto de
vista de cada um, Lula poderia ter amenizado o tom de seu comentário caso ele
achasse pertinente. O problema, como me explicou um diplomata, é que Lula e a
diplomacia brasileira nem tiveram tempo para isso, dada a violenta e inusitada
reação do governo de Israel.
Na segunda-feira, 19,
dia seguinte à fala de Lula, o chanceler Israel Katz convocou o embaixador
brasileiro no país, Fred Meyer, para que ele se explicasse. O episódio teria
sido considerado natural na diplomacia – dado que o país se sentiu ofendido
pelas declarações do presidente de outro país – caso o embaixador do Brasil não
tivesse sido colocado em uma “armadilha”, nas palavras de um diplomata
brasileiro. Em vez de ser chamado para a chancelaria, como seria natural, Meyer
foi levado para o Museu do Holocausto, em Tel Aviv. Lá, Katz, com um microfone
na lapela, do tipo usado por influencers nas redes sociais, fez um discurso, em
hebraico, atacando o Brasil e declarando Lula “persona non grata” no país. E,
também, como fazem os influencers, postou tudo nas suas redes.
Ou seja, o embaixador
brasileiro tomou uma reprimenda pública, sem entender o que estava sendo dito
para que pudesse defender o Brasil e o seu presidente, já que não havia
intérpretes no local. Inconformado com o comportamento do governo israelense, o
Brasil chamou seu embaixador de volta, demonstrando sua insatisfação com
Israel. E mais. Na véspera da abertura do encontro do G20, na terça-feira, 20,
o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, foi chamado pelo ministro
das Relações Exteriores do Brasil, embaixador Mauro Vieira, no Palácio
Itamaraty, no Rio, para também dar explicações sobre o comportamento de seu
governo. O embaixador israelense não sofreu nenhuma humilhação pública. Ele
entrou e saiu da reunião sem dar declarações.
Mas as agressões de
Israel Katz não se limitaram ao constrangimento infringido ao embaixador
brasileiro em Tel Aviv. Ferindo todas as regras da diplomacia e demonstrando
disposição de escalar a crise, Katz passou a postar vídeos e mensagens nas suas
redes sociais atacando Lula e o Brasil. Em uma das postagens afirmou que Lula
era “negacionista do Holocausto”. Em outra, disse que a comparação de Lula
entre Gaza e Holocausto era “promíscua e delirante”, e “um cuspe no rosto dos
judeus brasileiros”.
O ponto alto da
hostilidade ao Brasil veio com a postagem de um vídeo de mais de 8 minutos, no
qual Katz aparece ao lado da brasileira de origem judaica Rafaela Treistman,
que vive há três anos em Israel, e que estava na rave onde judeus foram mortos
cruelmente pelo Hamas, inclusive o namorado dela, o também brasileiro Ranani
Glazer. Com o apoio de Katz, que, com cara contrita, balançava a cabeça
afirmativamente, Treistman repreendeu o governo Lula. No vídeo, postado pelo
chanceler, ela afirma que não foi dada qualquer assistência aos brasileiros
sobreviventes e às famílias dos mortos, e se diz impossibilitada de voltar ao
Brasil em razão, segundo ela, “do forte antissemitismo existente no país”.
O vídeo provocou uma
reação dura do ministro Mauro Vieira, que reagiu afirmando serem falsas as
declarações de Treistman, e derrubou ponto por ponto as declarações dela,
mostrando todas as ações da Embaixada do Brasil em Israel, após o 7 de outubro,
que mandou inclusive representante para o funeral de Glazer e tratou do
traslado dos mortos. Numa entrevista, durante a reunião do G20, Mauro Vieira
também fez uma crítica aberta ao comportamento do chanceler israelense nas
redes sociais, afirmando que Katz “distorce posições do Brasil para tentar
tirar proveito em política doméstica”. E foi enfático. “Estou certo de que a
atitude do governo de Netanyahu e de sua antidiplomacia não refletem o
sentimento da sua população. O povo israelense não merece essa desonestidade,
que não está à altura da história de luta e de coragem do povo judeu. Em
cinquenta anos de carreira, nunca vi algo assim.” E finalizou: “Nossa amizade
com o povo israelense remonta à formação daquele Estado, e sobreviverá aos
ataques do titular da chancelaria de Netanyahu.”
Israel Katz parece,
realmente, ter pouca familiaridade com as regras diplomáticas, embora já
tivesse ocupado o posto de ministro das Relações Exteriores do seu país, em
2019, numa atuação bastante controversa. Ele voltou a ocupar o cargo em janeiro
deste ano, no lugar do então chanceler Eli Cohen, que tinha uma relação
amistosa com o governo brasileiro e com o embaixador Fred Meyer. Cohen esteve
ao lado das famílias dos brasileiros mortos e foi muito prestativo aos pedidos
da Embaixada do Brasil para agilizar o processo de repatriação de brasileiros
de origem judaica e palestina que optaram por retornar ao Brasil após a
tragédia do 7 de outubro. Também facilitou a liberação dos corpos para que
pudessem ser transladados para o país.
Antes de voltar para a
chancelaria, Katz era o titular da pasta de Infraestrutura e Energia, para onde
Cohen foi deslocado (Katz também ocupou os postos de ministro dos Transportes e
das Finanças). A troca foi feita para agradar ao grupo radical que cerca Bibi
Netanyahu, que exigia um posto mais distinto para seus pares, conforme
reportagem do Haaretz, influente jornal israelense, de cunho liberal e forte
crítico de Netanyahu e seu governo.
No dia 2 de janeiro, a
chamada do Haaretz sobre a nomeação de Katz dizia o seguinte: “O homem que era
chamado de fantoche [de Netanyahu], mas que se compara ao rei Herodes, está de
volta ao Ministério de Relações Exteriores.”
Na reportagem, a
jornalista Allison Kaplan Sommer afirma que Katz, membro desde 1998, do Likud,
o partido de ultradireita controlado por Netanyahu, foi transferido para a
chancelaria para “acalmar o ego machucado dos legisladores seniores do Likud
depois de postos mais prestigiosos terem sido ocupados por membros de outras
coalizões”, ou seja, ganhou o posto por conveniências políticas. O resultado é
que já no seu discurso de posse, Katz mostrou seu perfil provocativo e nada
contemporizador. Principalmente para um chanceler. Ele disse: “Nós estamos no
meio de uma Terceira Guerra Mundial com o Irã e os islamitas.” Por razões como
essas, os diplomatas de carreira israelenses não gostaram da indicação de Katz.
Conforme o relato à jornalista do Haaretz, eles não tinham boa recordação da
atuação dele na sua primeira experiência no ministério, em 2019.
E contaram isso para a
repórter, em 2020. “Em 2019, o ministro Katz veio com grandes expectativas
considerando suas realizações como ministro dos Transportes. Hoje, podemos
dizer que o desapontamento é tão grande quanto eram as expectativas.” Outros o
depreciaram ainda mais. Disseram que Katz “era o fantoche de Netanyahu”, além
de “limitado para a média israelense”. De acordo com o think tank Mitvin, era
Netanyahu quem tomava as decisões e fazia a política externa, cabendo a Katz
participar de poucos encontros e visitas. Segundo o relatório do instituto, o
primeiro-ministro dominava a página do Ministério das Relações Exteriores. Das
350 citações, 250 mencionaram Netanyahu e, apenas vinte, Katz.
O Haaretz analisou
que, apenas uma vez Katz discordou da linha de Netanyahu, na sua primeira
gestão no Ministério de Relações Exteriores. Foi quando disse que os poloneses
tinham colaborado com os nazistas na Segunda Guerra, durante o Holocausto.
“Eles amamentaram o antissemitismo com sua mãe de leite”, disse ele, causando
uma tempestade diplomática. O primeiro-ministro da Polônia reagiu, à época,
afirmando que não permitiria que os judeus tirassem dinheiro da Polônia, na
busca por reparação de suas propriedades retiradas pelos nazistas durante a
guerra. Segundo a agência AP, em reportagem de 22 de fevereiro de 2019, o então
primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, disse que a fala de Katz em
relação aos poloneses era “nada menos que racista”.
Na pasta dos
Transportes, Katz também criou confusão. Ele tentou forçar a aprovação de dois
projetos tidos como irreais: construir uma ilha artificial na costa da Faixa de
Gaza (proposta que ele voltou a fazer recentemente na reunião com a União
Europeia e nem chegou a ser considerada) e uma ferrovia conectando os estados
do Golfo com Haifa. Outra proposta polêmica era fazer a divisão de gênero
dentro dos ônibus, com homens e mulheres sentados separadamente.
Ainda em 2020, ele deu
uma declaração ainda mais estapafúrdia, segundo a reportagem do Haaretz, quando
se gabou nas redes sociais de dois portos marítimos que ele tinha desenvolvido.
“Meu nome será associado com isso para sempre – como o rei Herodes, que
construiu o porto de Cesarea quando ele quis transformar Israel em um centro
internacional de comércio. Ele não teve sucesso. Eu tive.”
Já sua experiência
como ministro das Finanças de Israel, de 2020 a 2021, foi desastrosa, de acordo
com a imprensa do país. A colunista de finanças do Haaretz escreveu que nessa
sua curta experiência, Katz provou ser “o pior ministro das Finanças da história
de Israel”. E afirmou que ele operava com uma “chocante irresponsabilidade e
estreitas considerações políticas”, o que piorou a crise e “devastou a
economia”.
Katz tem também visões
controversas em questões referentes à segurança de Israel. Recentemente,
defendeu a continuação da construção de assentamentos dos colonos judeus, a
extensão da soberania israelense à Cisjordânia e a rejeição da solução de dois
Estados. De acordo com o Jerusalem Post, Katz já propôs que palestinos na
Cisjordânia deveriam ter uma administração associada à Jordânia e que a Faixa
de Gaza deveria ser isolada de Israel e conectada ao Egito.
Fora do governo, seu
histórico também não é dos melhores. Em 1980, foi indiciado por dirigir com
carteira suspensa, violar a investigação nesse caso e ainda de fraude e quebra
de confiança em relação ao mesmo episódio da carteira. Na juventude, Katz atuava
com violência nos movimentos estudantis e participou de algumas situações em
que dispersou estudantes árabes portando correntes de ferro. Na imprensa
israelense, Katz não usufrui de grande prestígio. No dia 19 de fevereiro, após
o episódio com o embaixador brasileiro em Tel Aviv, o programa jornalístico do
Canal 13, uma das principais emissoras do país discutiu, em seu horário nobre,
a crise entre Brasil e Israel. Os debatedores criticaram não só a decisão do
governo de declarar Lula persona non grata no país como também a forma de o
chanceler conduzir a questão, embora concordassem que as falas do presidente
brasileiro deveriam ser “fortemente condenadas”.
Diante do perfil tão
conturbado do chanceler Israel Katz, o governo brasileiro resolveu não escalar
a briga com Israel. A avaliação é de que Bibi Netanyahu está acabado e tenta
manter a guerra apenas para se segurar no poder. Seus dias talvez estejam mesmo
contados, dizem os diplomatas, já que os Estados Unidos, o Catar e o Egito
estão em intensas negociações com o Hamas e com autoridades israelenses para
tentar pôr um fim ao conflito. O chanceler americano, Antony Blinken, já esteve
cerca de dez vezes no Oriente Médio buscando uma solução. E deixou claro que
ela passa pela construção de dois Estados, o que Netanyahu rejeita
peremptoriamente.
Já no Brasil, o
esperado enfrentamento de Blinken com Lula, profetizado pela imprensa, não se
confirmou. Blinken se reuniu com Lula por quase duas horas em Brasília. Ambos
posaram para as fotos sorridentes e com aperto de mão. Já no Rio, para a
reunião do G20, em uma entrevista para a GloboNews, ao ser questionado sobre
como via a declaração de Lula, comparando a tragédia da Palestina com a dos
judeus na Segunda Guerra, Blinken, que é judeu, foi amistoso. “É comum dois
amigos (como ele e Lula) terem divergências”, disse. “O presidente Lula falou
aquilo por causa do seu sofrimento com a morte das pessoas na guerra.”
Já Lula, que vinha se
mantendo calado apesar dos ataques da imprensa e do chanceler Katz, reagiu e
partiu para o contra-ataque. Ele postou no Twitter, no sábado, 24: “Da mesma
forma que eu disse quando estava preso que eu não aceitaria acordo para sair da
cadeia e não trocaria minha liberdade pela minha dignidade, eu digo [..] Eu sou
favorável à criação do Estado Palestino soberano [..] que possa viver em
harmonia com o Estado de Israel.”
Uma análise de um
colunista do Haaretz, porém, não tratou a questão como trivial. E, em 21 de
fevereiro, o jornal afirmou que “em poucas palavras “o presidente do Brasil
apagou todas as afetivas conexões com Israel e Sionismo”.
Não é como enxerga,
contudo, o embaixador brasileiro aposentado José Maurício Bustani, ex-diretor
geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), que foi
retirado do posto por pressão dos Estados Unidos quando avaliou – corretamente
– que o Iraque não tinha armas químicas. “Lula manifestou sua indignação e
emoção, que não são só dele, quanto ao que resta do povo palestino”, me disse.
“Não usou a palavra Holocausto. Extermínio não permite comparações matemáticas
ou entre métodos utilizados.” Continuou. “A reação dos representantes do atual
governo de Israel prejudica e desmerece a dignidade do povo israelense e dos
judeus de todas as nacionalidades e aumenta a censura internacional crescente
quanto às ações militares contra os palestinos.” Em seguida, afirmou que “o
Brasil tem crédito histórico em relação ao Estado de Israel, retomado pela
primeira visita no último século de um chefe de Estado brasileiro, quando Lula
visitou o país, além de nossa relação de amizade e cooperação desde Oswaldo Aranha”.
Por esta razão, disse o embaixador, “são incabíveis as tristes declarações do
chanceler israelense que podem querer sugerir um lamentável rompimento de
relações diplomáticas”.
Outro que se incomodou
com o comportamento de Katz foi o embaixador aposentado Marcos Azambuja.
Normalmente afável, e evitando entrar em polêmicas, ele, inicialmente, se
manteve calado sobre as declarações de Lula. Mas mostrou indignação com a
atitude do chanceler de Israel em relação ao embaixador brasileiro. “Eu tinha
resolvido não me manifestar”, me disse ele por telefone. “Mas o comportamento
do chanceler israelense não atingiu apenas o presidente da República, atingiu
todo o Brasil. Atingiu a diplomacia brasileira.” Para ele, embora a declaração
de Lula tenha sido atrapalhada, “o presidente, obviamente, não tinha a intenção
de ofender os judeus. Foi uma frase dita no improviso. Mas chamar Lula de
antissemita, isso sim é uma impropriedade”. Azambuja não acredita que o que ele
chama de “desentendimento” com Israel irá prosperar. “Netanyahu é um homem
isolado, tentando se manter no cargo, e usa dessas artimanhas para tentar
amenizar o horror que Israel está provocando em Gaza. Mas não considero o que
ocorreu entre os dois países como crise. Foi um incidente e será superado.”
O espanhol Josep
Borrell, alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política
de Segurança, também saiu em defesa de Lula. Em uma declaração em 22 de
fevereiro, ele disse que Lula não quis fazer uma equivalência entre Israel e os
nazistas e defendeu que o presidente brasileiro seja um porta-voz para a
solução dos dois Estados – o de Israel e o da Palestina – no conflito de Gaza.
Em Israel, a
preocupação, no momento, não passa pelo destempero verbal do chanceler
israelense contra o Brasil, nas redes sociais. A preocupação é com o que
realmente pode acontecer em Gaza nos próximos dias. O temor é com a
possibilidade de Israel bombardear os palestinos em Rafah, como Netanyahu já
avisou que irá acontecer. Em seu editorial do dia 20, o Haaretz afirmou que “o
pior governo da história de Israel quer levar o país a queimar”. Já o colunista
do mesmo jornal, Gideon Levy, escreveu: “Tudo o que nós podemos pedir,
implorar, gritar é: não entrem em Rafah. Uma incursão de Israel a Rafah será um
ataque ao maior campo de pessoas deslocadas do mundo. Isso arrastará os
militares israelenses a cometerem crimes de guerra de uma gravidade jamais
cometida. É impossível invadir Rafah agora sem cometimento de crimes de guerra.
Se as Forças de Defesa de Israel invadirem Rafah, a cidade se transformará numa
casa funerária.”
Fonte: Revista Piauí
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