Tilápias do mal: peixes exóticos estão
invadindo mares e rios do Brasil
O Brasil é conhecido
mundialmente por sua biodiversidade. Não é por menos. Só de peixes, já foram catalogadas
mais de 3.500 espécies de água doce no país, o que corresponde a quase 10% da
fauna global desses animais.
Entretanto, vivemos um
paradoxo. Enquanto nossos rios têm uma diversidade gigantesca de espécies
nativas, o que chega à mesa da grande maioria dos brasileiros são peixes
exóticos, ou seja, originários de outros países. Nas prateleiras de
supermercados e nos cardápios de restaurantes, invariavelmente o consumidor irá
encontrar entre as principais e, talvez únicas opções, a tilápia e o salmão.
“Por que estamos
investindo em poucas espécies exóticas se temos a maior diversidade de peixes
de água doce do planeta? Por que priorizar algumas poucas espécies, que não são
daqui, e comprar tecnologia de fora?”, questiona o biólogo Jean Vitule, professor
de Ecologia do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
A resposta está na
ponta da língua do presidente da Associação Brasileira da Piscicultura (Peixe BR), Francisco Medeiros. “A tilápia, o salmão, a carpa e o panga
são os peixes, dentre as milhares de espécies globais, que o homem escolheu
para cultivo.”
A tilápia, em
particular, é a menina dos olhos desse setor — tanto no exterior como no
Brasil, que atualmente é o quarto maior produtor mundial da espécie. Originária
do Rio Nilo, na África, e introduzida no país na década de 1970, a
espécie Oreochromis niloticus representou 65% das 860 mil
toneladas de peixes produzidos em cativeiro em 2022 e 98% das exportações da piscicultura brasileira.
Entretanto, ao se
tornar a principal aposta da aquicultura nacional, vários cientistas demonstram
preocupação e alertam sobre a falta de fiscalização na criação de tilápia e os
impactos de descartes ilegais e escapes dessa e outras espécies não nativas em
nossas bacias, algo relatado com frequência nos últimos anos.
“A aquicultura
destaca-se como o principal vetor de introdução de espécies não nativas no
mundo. No Brasil, a tilapicultura é a atividade com maior expressão. Dentre as
espécies cultivadas, a Oreochromis niloticus figura como uma
das dez mais invasoras, com graves consequências ambientais”, afirma Almir
Cunico, doutor em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais e coordenador do
Laboratório de Ecologia, Pesca e Ictiologia da UFPR.
Desde 2010, Cunico
participa de um estudo, juntamente com outros pesquisadores, como Vitule, que
monitora a presença da tilápia na bacia hidrográfica do Alto Rio Paraná, estado
onde está o maior polo de produção da espécie.
Num período de cinco
anos, entre 2014 e 2019, se observou um aumento de 1.500% na captura de
tilápias em riachos da região. Para eles, esse crescimento está diretamente
relacionado ao salto na produção em tanques, onde esses peixes deveriam estar
confinados.
“Nossos resultados
sugerem a ocorrência de importantes falhas na evitação de escapes para
ambientes naturais, caracterizando a atividade como importante fonte de
propágulos [partes desses organismos, como ovos ou larvas, que podem gerar uma
nova população], e contribuindo para a elevação do risco de invasão biológica
da tilápia na bacia”, alerta Cunico.
·
Escapes em água doce e salgada
Em um artigo científico divulgado na publicação Aquatic Ecology, em outubro de 2023, pesquisadores brasileiros relatam o
registro de diversos cardumes de tilápias na costa brasileira, em pontos do
litoral do Maranhão, Espírito Santo, São Paulo, Santa Catarina e Rio de
Janeiro.
A espécie pertence à
família dos ciclídeos, um dos últimos grupos marinhos que migraram para a água
doce. Seus ancestrais viviam no mar e por isso, ela pode ter mais facilidade em
se readaptar à água salgada.
“Não são registros
pontuais”, salienta Ana Clara Franco, pesquisadora do Laboratório de Ictiologia
Teórica e Aplicada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, e
principal autora da análise.
Em nota, o Ibama, um
dos órgãos a quem cabe a fiscalização do setor, afirmou que está atento ao
aumento da presença da tilápia no litoral.
“Os registros de
tilápia no mar são fruto do rompimento de lagunas costeiras, algumas com água
salobra onde ela consegue sobreviver por ser uma espécie eurialina, capaz de
suportar grandes variações de salinidade. Contudo, após o rompimento e chegada
ao mar, cuja salinidade é bem mais elevada, as tilápias não sobrevivem por
muito tempo e vão morrendo ao longo dos dias, portanto não é fator de
preocupação do ponto de vista ambiental”, diz o Ibama.
Vitule argumenta que
infelizmente o governo não faz monitoramento desses casos, que precisam ser
levados mais a sério.
“Não há dados nem
estudos de impacto ambiental sobre esses escapes. Mesmo mortas, essas tilápias
mudam fluxos de matéria e nutrientes em escala local”, rebate o biólogo.
O fato é que os
escapes estão ocorrendo. E não deveriam.
“O atual sistema de
produção é arcaico e amador. Cavar buraco, encher de água e colocar peixes é
feito desde 2 mil anos a.C.”, critica Cunico. “Ao continuar produzindo da forma
como é feito hoje, existirá sempre alto impacto, seja com espécie exótica ou nativa.
Há alta demanda de água e nenhum controle sanitário da água em que esses
animais são produzidos”.
Se a presença da
espécie africana no mar não parece preocupar o Ibama – ainda –, em rios a
situação é diferente.
“Como uma espécie
exótica, seus impactos na biodiversidade brasileira podem variar desde a
diminuição das espécies nativas, via competição, até a introdução de doenças e
o desequilíbrio da cadeia alimentar”, reconhece a equipe técnica do Ibama.
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Não é só a tilápia: espécies nativas também
podem ser invasoras
No ano passado, o
Ibama lançou uma campanha entre pescadores para
controlar a proliferação de peixes exóticos no Pantanal. As espécies não eram
de outros países, e sim brasileiras, mas originárias de outras bacias
hidrográficas.
Na lista estavam o
tucunaré, tambaqui, tambacu, corvina e pirarara. A maioria é natural da
Amazônia e acredita-se que são espécies encontradas nos rios de Mato Grosso do
Sul devido a prováveis solturas ilegais ou escapes de tanques de empresas que
criam peixes para comercialização – seja pela carne ou para atender à demanda
da pesca esportiva.
Tanto o tucunaré
quanto o pirarucu são predadores, ou seja, provocam um imenso desequilíbrio
ambiental fora de seu habitat natural.
“O tucunaré está hoje
em todas as bacias do Brasil. Foi introduzido inicialmente num reservatório do
Rio de Janeiro, depois no Nordeste e no Sul”, diz Ana Clara.
Ela destaca o que
aconteceu no Panamá há décadas com a introdução do tucunaré em outras bacias.
“Houve extinção de várias espécies nativas. O que cabe na boca dele, ele come.”
Naquele país, inclusive, detectou-se o aumento da malária, já que o tucunaré deu
cabo do peixe que comia as larvas do mosquito transmissor da doença.
A ameaça do tucunaré
também foi sentida na bacia do São Francisco e pesquisadores da Universidade
Federal do Alagoas relatam preocupação com o as espécies exóticas ali.
“A tilápia é apenas a
ponta do iceberg de um problema mais grave”, alerta Vitule. “A questão
ambiental dos possíveis impactos negativos da aquicultura sobre os ecossistemas
naturais está sendo ignorada de diversas formas. Não sou contra a aquicultura,
mas como é feita no Brasil ela só visa a produtividade. Ninguém pensa no custo
ambiental. Não há estudos de quantificação de escapes ou nitrogênio e fósforo
jogados na água, ou outros impactos ecológicos, diretos ou indiretos, caros e
morosos, e quem arca no final é a sociedade como um todo”.
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Nativa ou exótica, nenhum escape é
aceitável
De acordo com o
Ministério da Pesca e Aquicultura, a escolha das espécies exóticas, como a
tilápia, surgiu de uma demanda do setor. Embora China, Índia e Indonésia sejam
os grandes da aquicultura mundial – setor que entre 1990 e 2020 teve um aumento
de mais de 600% na produção –, o Brasil já se posiciona, ainda que bem atrás
deles, entre os dez maiores quando se trata de peixes de água doce (excluindo
moluscos, crustáceos e algas).
Mas para cultivar e
comercializar as espécies que vendem bem, aquicultores precisam adquirir um
pacote tecnológico para operar em larga escala que inclui a aquisição de
matrizes genéticas das espécies. No caso brasileiro, esses pacotes vêm de
outros países, assim como insumos, hormônios e antibióticos.
Um artigo científico divulgado em 2006, na publicação Biological
Invasions, já
apontava que o Brasil é o país que cultiva a maior porcentagem de espécies de
peixes de água doce exóticas, 87%. Na China, que lidera esse mercado, somente
5% delas não são nativas.
A Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) admite o contrassenso de termos uma imensa
diversidade de espécies nativas e priorizar as exóticas, mas destaca que há
várias pesquisas em curso.
“Temos desenvolvido
pesquisas com espécies nativas com bons resultados que começam a chegar aos
produtores. No entanto, para o desenvolvimento de pacotes tecnológicos
completos para cada espécie-alvo, há necessidade de investimentos financeiros
consideráveis e em recursos humanos capacitados, assim como considerar o tempo
de experimentação necessário para alcançar os resultados almejados”, reconhece
Lícia Lundstedt, chefe-adjunta de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Pesca e
Aquicultura (Palmas-TO).
Para diminuir a
dependência de espécies exóticas e da tecnologia vinda de fora, o que biólogos
recomendam é o desenvolvimento de pacotes específicos para cada bacia
hidrográfica do Brasil, permitindo o cultivo de peixes regionais, assim como o
emprego de sistemas de aquicultura mais modernos para evitar escapes e impacto
ambiental.
“Nenhum animal deveria
escapar, até mesmo se forem nativos, uma vez que mesmo nativos usados na
aquicultura vêm de poucas matrizes, o que ocasiona homogeneidade genética, caso
se misturem com linhagem selvagens, o que inclusive é uma das principais causas
de extinções de espécies e perda de biodiversidade”, reforça Cunico.
Fonte: Mongabay
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