terça-feira, 26 de março de 2024

Jorge Folena: O mito dos salvadores da pátria

Quando Gilmar Mendes, em 11 de julho de 2020, disse que o Exército estava “se associando a genocídio na pandemia do novo coronavírus”, o mundo caiu sobre a cabeça do ministro do Supremo Tribunal Federal

Os comandantes militares do Exército, Marinha e Aeronáutica da época, associados com o ministro da Defesa do governo de Jair Bolsonaro, assinaram nota de repúdio e até ameaçaram representar ao Procurador Geral da República contra o juiz da Suprema Corte.

Naquela data, o Brasil tinha no comando do Ministério da Saúde um general da ativa do Exército, Eduardo Pazuello, e apresentava milhões de infectados, além de milhares de mortos pelo novo coronavírus, sem nenhuma política pública federal de controle da pandemia que assolava o país.

Na ocasião, o comportamento dos comandantes das forças armadas (e o dos militares da ativa e da reserva que integravam o governo federal) escancarou o passado autoritário brasileiro, representado pela ditadura de 1964-1985.

Com efeito, Aloy Jupiara e Chico Otavio, em Os Porões da Contravenção, relatam “a senha para a barbárie”:

“O rosto sorridente do presidente Costa e Silva, no casamento de seu ajudante de ordens, o tenente Cláudio Barbosa de Figueiredo, com Sandra Maria de Souza Maselli, não denunciava o que estava por vir. A cerimônia, celebrada na igreja Nossa Senhora do Carmo, pelo monsenhor Ivo Calliari, no dia 8 de dezembro de 1968, reuniu a elite governante. Costa e Silva era padrinho da união religiosa. Ao seu lado, também sorridente, capitão Guimarães assinava o livro como padrinho do casamento civil. O menino de Vila Valqueire, amigo do noivo desde os tempos da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), experimentava os degraus mais altos do poder. Nos quartéis, a tropa rugia à espera de um sinal. E ele veio cinco dias depois, em 13 de dezembro, quando Costa e Silva baixou o Ato Institucional número 5, que mudaria a história do país, manchando-a de sofrimento e sangue. Era o momento de passar à ofensiva. A medida, expressão mais acabada da ditadura militar brasileira, também mudaria para sempre a carreira de Guimarães.”

Leonêncio Nossa, no livro “Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, descreve como se deu a ação dos militares na garimpagem de Serra Pelada:

“Curió pernoitou no povoado de Carajás. No dia seguinte retornou a Brasília. Chegou com o ouro empacotado no gabinete do general Octávio Medeiros. O Jornal do Brasil publicou que ele jogou o ouro na mesa do presidente Figueiredo. General que gostava de andar a cavalo e com uma espada na mão pelo centro de Brasília, Newton Cruz, chefe do Serviço Nacional de Informações, mandou Curió fazer uma exposição para o governo. Por volta de quatro horas, numa sala do Centro de Informações do Exército, o agente fez uma explanação para o ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, e o presidente da Caixa Econômica Federal, Gil Macieira. Defendeu a exclusividade na compra de ouro do garimpo e um trabalho de massificação para contrapor à esquerda. Macieira foi contrário à ocupação do garimpo. Dizia que era inviável o esquema de compra de ouro. Newton Cruz perguntou se precisava de tropa no garimpo.

- Lá não é para tropa, general. É para geólogo. Eu faço o trabalho de conscientização – respondeu Curió. Octávio Medeiros aprovou a intervenção em Serra Pelada.

O regime, à beira da falência, entregou a Curió o garimpo. O governo avaliava que o ouro daria tranquilidade ao país num momento de crise internacional provocada pela indústria do petróleo e de aumento no valor do metal na Europa.”

Vale esclarecer que a região de Serra Pelada se chama hoje Curionópolis, em homenagem ao seu fundador, prefeito e representante parlamentar na Câmara dos Deputados, que integrou a linha dura da ditadura de 1964-1985.

Num deboche ao Estado Democrático de Direito, no dia 4 de maio de 2020, em plena pandemia, Sebastião Curió (que veio a falecer em 17 de agosto de 2022) foi recebido com distinção por Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, num gesto de reavivamento das lembranças do passado do autoritarismo, da tortura, da grilagem de terras, do contrabando de ouro e do genocídio indígena, que foram abertamente defendidos pelo ex-presidente, durante o seu governo.

Relembro estes lamentáveis fatos agora, às vésperas do primeiro de abril de 2024, data em que o golpe de 1964 completará 60 anos, pois constato que persiste a farsa do mito dos militares salvadores da pátria, como ocorreu na última ditadura e no governo do ex-presidente.

A classe dominante brasileira tem usado as Forças Armadas para controlar as classes subalternas do país e conter suas reivindicações, sendo necessário lembrar que os militares já foram empregados em diversas oportunidades contra a população, a exemplo do período de 1964 a 1985, quando muitos brasileiros foram torturados, assassinados e desaparecidos. Nessas “missões”, nunca tiveram constrangimento de conviver com esquadrões da morte, contraventores, garimpeiros e grileiros de terra pública, como registrado nas obras acima citadas.

Relato esses episódios, porque faz alguns dias acompanhamos nas redes o posicionamento de certos expoentes da mídia empresarial, segundo os quais os ex-comandantes da Aeronáutica e do Exército foram legalistas e “ajudaram” a salvar o país da aventura golpista, liderada pelo ex-presidente e seus seguidores, entre os quais se incluem muitos integrantes das forças militares, como o ex-comandante da Marinha.

Esses meios de comunicação deram destaque, inclusive, para “a ameaça de prisão” que alegadamente teria feito o general Freire Gomes contra o ex-presidente, mas, na verdade, a atuação dele pode caracterizar uma grave omissão, pois, ao verificar que estava diante de um flagrante delito (a proposta de um golpe de Estado, que é crime), deveria ter efetivado a prisão do ex-presidente e todos os participantes da conspiração contra o Estado Democrático de Direito.

Com a liberação pública dos depoimentos tomados pela Polícia Federal, pudemos apurar que o general Freire Gomes, ex-comandante do Exército, não foi tão legalista conforme alardeado.

O general Freire Gomes, em seu depoimento à PF, disse “Que se recorda de ter participado de reuniões no Palácio do Alvorada, após o segundo turno das eleições, em que o então Presidente da República JAIR BOLSONARO apresentou hipóteses de utilização de institutos jurídicos como GLO, ESTADO DE DEFESA e ESTADO DE SÍTIO em relação ao processo eleitoral. (…) QUE foi convocado pelo então Presidente da República JAIR BOLSONARO, por meio do então Ministro da Defesa PAULO SÉRGIO, a comparecer no dia 07/12/2022, para uma reunião no Palácio do Alvorada; QUE não foi informado ao depoente qual seria a pauta da reunião; QUE a reunião correu na biblioteca do Palácio da Alvorada; QUE estavam presentes o depoente, o então Ministro da Defesa General PAULO SERGIO, o então Comandante da Marinha Almirante GARNIER e, possivelmente, o então Assessor para Assuntos Internacionais FILIPE MARTINS; QUE na reunião o assessor leu os ‘considerandos’, que seriam ‘fundamentos jurídicos’ da referida minuta de decreto.”

Ou seja, pelo menos desde 07/12/2022, o general sabia da tentativa de golpe organizada diretamente pelo ex-presidente e nada fez para evitar as diversas ações golpistas que foram executadas depois daquela data contra o Estado Democrático de Direito, como a ocorrida na noite de 12/12/2022 em Brasília; a tentativa de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília em 24/12/2022; e os atos de 08/01/2023 na Praça dos Três Poderes; além disso, por outra parte do seu depoimento ficou nítido que ele permitiu o prosseguimento das arruaças nas portas dos quartéis do Exército, que, segundo ele, não foram terminadas antes de 8 de janeiro de 2023 porque não existia “decisão judicial” determinando a liberação das áreas militares.

A esse respeito, o general depôs afirmando:

“QUE nunca houve uma ordem judicial para remoção das manifestações; QUE com base no parecer 484/2019/CONJUR- IMD/CGU/AGU, o entendimento jurídico era de que o Exército tinha apenas o poder de Polícia Administrativa para atuar na preservação do patrimônio da instituição e na integridade física e circulação das pessoas que trabalhavam nas instalações militar.”

Isto é, o general tentou justificar a grave omissão do Exército comandado por ele. Por isso, ficam claras as muitas omissões praticadas por um alto servidor público militar, que deveria ter agido de ofício, não apenas dando voz de prisão aos golpistas, mas tomando medidas concretas para evitar o golpe; deveria, inclusive, ter impedido a instalação de acampamentos na porta de quartéis do Exército, de onde saíram os delinquentes do 08/01/2023 e para onde, depois de praticados os graves crimes, muitos retornaram em busca da proteção do Comando Militar Planalto contra a investida da Polícia do Distrito Federal, conduzida pelo interventor federal na segurança pública, naquela oportunidade.

Assim, ao contrário do que sustentou o ex-comandante da Aeronáutica, e propagado pelos meios de comunicação empresarial, não estamos diante de um militar legalista, pois constatamos que as Forças Armadas conviveram com naturalidade com o ambiente autoritário que tentaram reencenar no país.

Portanto, em 11 de julho de 2020, quando o ministro Gilmar Mendes fez referência ao “genocídio” e criticou a associação do Exército ao lamentável episódio de mortes em massa no país durante a pandemia, tratou-se de mera constatação da realidade; mas a reação desnecessária e exagerada dos militares deixou patente a incapacidade de muitos deles de conviver com a democracia, numa ordem republicana, como consagra a Constituição de 1988.

Ao longo da história, não vimos nem ouvimos do estamento militar brasileiro nenhuma defesa verdadeira do povo e da soberania; ao contrário, são constantes suas ameaças contra pessoas e instituições progressistas e seu emprego violento contra sua própria gente. Foi o que se viu durante a ditadura de 1964-1985, que fascistas associados a militares tentaram repetir como farsa no episódio do 08/01/2023.

 

Fonte: Brasil 247

 

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