Jorge Folena: O mito dos salvadores da
pátria
Quando Gilmar Mendes,
em 11 de julho de 2020, disse que o Exército estava “se associando a genocídio
na pandemia do novo coronavírus”, o mundo caiu sobre a cabeça do ministro do
Supremo Tribunal Federal
Os comandantes
militares do Exército, Marinha e Aeronáutica da época, associados com o
ministro da Defesa do governo de Jair Bolsonaro, assinaram nota de repúdio e
até ameaçaram representar ao Procurador Geral da República contra o juiz da
Suprema Corte.
Naquela data, o Brasil
tinha no comando do Ministério da Saúde um general da ativa do Exército,
Eduardo Pazuello, e apresentava milhões de infectados, além de milhares de
mortos pelo novo coronavírus, sem nenhuma política pública federal de controle
da pandemia que assolava o país.
Na ocasião, o
comportamento dos comandantes das forças armadas (e o dos militares da ativa e
da reserva que integravam o governo federal) escancarou o passado autoritário
brasileiro, representado pela ditadura de 1964-1985.
Com efeito, Aloy
Jupiara e Chico Otavio, em Os Porões da Contravenção, relatam “a senha para a
barbárie”:
“O rosto sorridente do
presidente Costa e Silva, no casamento de seu ajudante de ordens, o tenente
Cláudio Barbosa de Figueiredo, com Sandra Maria de Souza Maselli, não
denunciava o que estava por vir. A cerimônia, celebrada na igreja Nossa Senhora
do Carmo, pelo monsenhor Ivo Calliari, no dia 8 de dezembro de 1968, reuniu a
elite governante. Costa e Silva era padrinho da união religiosa. Ao seu lado,
também sorridente, capitão Guimarães assinava o livro como padrinho do
casamento civil. O menino de Vila Valqueire, amigo do noivo desde os tempos da
Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), experimentava os degraus mais altos
do poder. Nos quartéis, a tropa rugia à espera de um sinal. E ele veio cinco
dias depois, em 13 de dezembro, quando Costa e Silva baixou o Ato Institucional
número 5, que mudaria a história do país, manchando-a de sofrimento e sangue.
Era o momento de passar à ofensiva. A medida, expressão mais acabada da
ditadura militar brasileira, também mudaria para sempre a carreira de Guimarães.”
Leonêncio Nossa, no
livro “Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, descreve como se deu a
ação dos militares na garimpagem de Serra Pelada:
“Curió pernoitou no
povoado de Carajás. No dia seguinte retornou a Brasília. Chegou com o ouro
empacotado no gabinete do general Octávio Medeiros. O Jornal do Brasil publicou
que ele jogou o ouro na mesa do presidente Figueiredo. General que gostava de andar
a cavalo e com uma espada na mão pelo centro de Brasília, Newton Cruz, chefe do
Serviço Nacional de Informações, mandou Curió fazer uma exposição para o
governo. Por volta de quatro horas, numa sala do Centro de Informações do
Exército, o agente fez uma explanação para o ministro da Fazenda, Ernane
Galvêas, e o presidente da Caixa Econômica Federal, Gil Macieira. Defendeu a
exclusividade na compra de ouro do garimpo e um trabalho de massificação para
contrapor à esquerda. Macieira foi contrário à ocupação do garimpo. Dizia que
era inviável o esquema de compra de ouro. Newton Cruz perguntou se precisava de
tropa no garimpo.
- Lá não é para tropa,
general. É para geólogo. Eu faço o trabalho de conscientização – respondeu
Curió. Octávio Medeiros aprovou a intervenção em Serra Pelada.
O regime, à beira da
falência, entregou a Curió o garimpo. O governo avaliava que o ouro daria
tranquilidade ao país num momento de crise internacional provocada pela
indústria do petróleo e de aumento no valor do metal na Europa.”
Vale esclarecer que a
região de Serra Pelada se chama hoje Curionópolis, em homenagem ao seu
fundador, prefeito e representante parlamentar na Câmara dos Deputados, que
integrou a linha dura da ditadura de 1964-1985.
Num deboche ao Estado
Democrático de Direito, no dia 4 de maio de 2020, em plena pandemia, Sebastião
Curió (que veio a falecer em 17 de agosto de 2022) foi recebido com distinção
por Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto, num gesto de reavivamento das lembranças
do passado do autoritarismo, da tortura, da grilagem de terras, do contrabando
de ouro e do genocídio indígena, que foram abertamente defendidos pelo
ex-presidente, durante o seu governo.
Relembro estes
lamentáveis fatos agora, às vésperas do primeiro de abril de 2024, data em que
o golpe de 1964 completará 60 anos, pois constato que persiste a farsa do mito
dos militares salvadores da pátria, como ocorreu na última ditadura e no
governo do ex-presidente.
A classe dominante
brasileira tem usado as Forças Armadas para controlar as classes subalternas do
país e conter suas reivindicações, sendo necessário lembrar que os militares já
foram empregados em diversas oportunidades contra a população, a exemplo do
período de 1964 a 1985, quando muitos brasileiros foram torturados,
assassinados e desaparecidos. Nessas “missões”, nunca tiveram constrangimento
de conviver com esquadrões da morte, contraventores, garimpeiros e grileiros de
terra pública, como registrado nas obras acima citadas.
Relato esses
episódios, porque faz alguns dias acompanhamos nas redes o posicionamento de
certos expoentes da mídia empresarial, segundo os quais os ex-comandantes da
Aeronáutica e do Exército foram legalistas e “ajudaram” a salvar o país da
aventura golpista, liderada pelo ex-presidente e seus seguidores, entre os
quais se incluem muitos integrantes das forças militares, como o ex-comandante
da Marinha.
Esses meios de
comunicação deram destaque, inclusive, para “a ameaça de prisão” que
alegadamente teria feito o general Freire Gomes contra o ex-presidente, mas, na
verdade, a atuação dele pode caracterizar uma grave omissão, pois, ao verificar
que estava diante de um flagrante delito (a proposta de um golpe de Estado, que
é crime), deveria ter efetivado a prisão do ex-presidente e todos os
participantes da conspiração contra o Estado Democrático de Direito.
Com a liberação
pública dos depoimentos tomados pela Polícia Federal, pudemos apurar que o
general Freire Gomes, ex-comandante do Exército, não foi tão legalista conforme
alardeado.
O general Freire
Gomes, em seu depoimento à PF, disse “Que se recorda de ter participado de
reuniões no Palácio do Alvorada, após o segundo turno das eleições, em que o
então Presidente da República JAIR BOLSONARO apresentou hipóteses de utilização
de institutos jurídicos como GLO, ESTADO DE DEFESA e ESTADO DE SÍTIO em relação
ao processo eleitoral. (…) QUE foi convocado pelo então Presidente da República
JAIR BOLSONARO, por meio do então Ministro da Defesa PAULO SÉRGIO, a comparecer
no dia 07/12/2022, para uma reunião no Palácio do Alvorada; QUE não foi
informado ao depoente qual seria a pauta da reunião; QUE a reunião correu na
biblioteca do Palácio da Alvorada; QUE estavam presentes o depoente, o então
Ministro da Defesa General PAULO SERGIO, o então Comandante da Marinha
Almirante GARNIER e, possivelmente, o então Assessor para Assuntos
Internacionais FILIPE MARTINS; QUE na reunião o assessor leu os
‘considerandos’, que seriam ‘fundamentos jurídicos’ da referida minuta de
decreto.”
Ou seja, pelo menos
desde 07/12/2022, o general sabia da tentativa de golpe organizada diretamente
pelo ex-presidente e nada fez para evitar as diversas ações golpistas que foram
executadas depois daquela data contra o Estado Democrático de Direito, como a
ocorrida na noite de 12/12/2022 em Brasília; a tentativa de explodir um
caminhão-tanque no aeroporto de Brasília em 24/12/2022; e os atos de 08/01/2023
na Praça dos Três Poderes; além disso, por outra parte do seu depoimento ficou
nítido que ele permitiu o prosseguimento das arruaças nas portas dos quartéis
do Exército, que, segundo ele, não foram terminadas antes de 8 de janeiro de
2023 porque não existia “decisão judicial” determinando a liberação das áreas
militares.
A esse respeito, o
general depôs afirmando:
“QUE nunca houve uma
ordem judicial para remoção das manifestações; QUE com base no parecer
484/2019/CONJUR- IMD/CGU/AGU, o entendimento jurídico era de que o Exército
tinha apenas o poder de Polícia Administrativa para atuar na preservação do
patrimônio da instituição e na integridade física e circulação das pessoas que
trabalhavam nas instalações militar.”
Isto é, o general
tentou justificar a grave omissão do Exército comandado por ele. Por isso,
ficam claras as muitas omissões praticadas por um alto servidor público
militar, que deveria ter agido de ofício, não apenas dando voz de prisão aos
golpistas, mas tomando medidas concretas para evitar o golpe; deveria,
inclusive, ter impedido a instalação de acampamentos na porta de quartéis do
Exército, de onde saíram os delinquentes do 08/01/2023 e para onde, depois de
praticados os graves crimes, muitos retornaram em busca da proteção do Comando
Militar Planalto contra a investida da Polícia do Distrito Federal, conduzida
pelo interventor federal na segurança pública, naquela oportunidade.
Assim, ao contrário do
que sustentou o ex-comandante da Aeronáutica, e propagado pelos meios de
comunicação empresarial, não estamos diante de um militar legalista, pois
constatamos que as Forças Armadas conviveram com naturalidade com o ambiente
autoritário que tentaram reencenar no país.
Portanto, em 11 de
julho de 2020, quando o ministro Gilmar Mendes fez referência ao “genocídio” e
criticou a associação do Exército ao lamentável episódio de mortes em massa no
país durante a pandemia, tratou-se de mera constatação da realidade; mas a reação
desnecessária e exagerada dos militares deixou patente a incapacidade de muitos
deles de conviver com a democracia, numa ordem republicana, como consagra a
Constituição de 1988.
Ao longo da história,
não vimos nem ouvimos do estamento militar brasileiro nenhuma defesa verdadeira
do povo e da soberania; ao contrário, são constantes suas ameaças contra
pessoas e instituições progressistas e seu emprego violento contra sua própria gente.
Foi o que se viu durante a ditadura de 1964-1985, que fascistas associados a
militares tentaram repetir como farsa no episódio do 08/01/2023.
Fonte: Brasil 247
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