'Igrejas encontram espaço em vazios
culturais', diz ministra Margareth Menezes
Escolhida para chefiar
o Ministério da Cultura após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva recriar a
pasta, em janeiro de 2023, a cantora Margareth Menezes se deparou com um país
rachado pela política e por "guerras culturais".
Uma das últimas
batalhas nesse campo tem sido travada em torno do livro O Avesso da Pele, de
Jeferson Tenório. Vencedor do prêmio Jabuti na categoria Romance Literário em
2018, o livro foi selecionado pelo Ministério da Educação para uso no Ensino
Médio em 2022, no governo de Jair Bolsonaro.
Neste ano, porém, os
governos de Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás - todos chefiados por políticos
próximos de Bolsonaro - decidiram retirar o livro das escolas públicas,
argumentando que a obra contém passagens de teor sexual impróprias para
adolescentes. Razões semelhantes levaram grupos conservadores a pressionar pelo
cancelamento de exposições sobre temas LGBT nos últimos anos.
Na música, as divisões
ficaram evidentes em 2023: enquanto muitos nomes da MPB e do hip hop apoiaram
Lula, figurões do sertanejo e da música gospel pediram votos para Bolsonaro.
Apesar da polarização,
Margareth Menezes diz que o Ministério da Cultura está aberto a todas as
vertentes políticas. "Democracia é isso: aceitar quem pensa diferente de
você e ir para o embate sem necessidade de matar ninguém. São todos bem-vindos
aqui", ela afirma à BBC.
Menezes foi
entrevistada na última segunda-feira (18/3), mesmo dia em que o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva reuniu seus ministros na esteira da divulgação de
pesquisas que mostraram uma piora na popularidade da gestão.
Questionada sobre o
momento político, a ministra avaliou que "o governo está aprendendo"
a se posicionar no mundo digital. "Está melhorando inclusive, porque eu
acho que já esteve pior nesse sentido."
Aos 61 anos e nascida
em Salvador, Menezes ocupa pela primeira vez um cargo público. Como cantora,
projetou-se como um dos grandes nomes da música afro-brasileira com sucessos
como Faraó (1987), Dandalunda (2001) e As Áfricas que a Bahia Canta (2023), samba-enredo
da Mangueira no Carnaval do ano passado.
Em 2004, fundou a
Associação Fábrica Cultural, que promove ações culturais e educacionais para
jovens na Península de Itapagipe, antiga região industrial de Salvador onde ela
própria nasceu.
Menezes diz, aliás,
que uma de suas prioridades no ministério é levar cinemas, teatros e
bibliotecas para bairros periféricos, onde a oferta de apresentações culturais
está muitas vezes restrita a igrejas.
Para ela, "as
igrejas encontram espaço em vazios culturais", expandindo-se onde há pouca
oferta de centros de cultura.
>>>>
Confira abaixo a entrevista:
• O campo da cultura foi afetado pelas
divisões e pela polarização política que temos hoje no Brasil. Algumas
expressões culturais são associadas à esquerda, e outras, à direita. Como é
gerir o ministério nesse cenário?
Margareth Menezes -
Temos recebido aqui políticos da direita e da esquerda. Já vieram grupos de
Santa Catarina, como já vieram também da região Norte, da região Centro-Oeste.
Eles trazem aqui as propostas, e o que a gente faz é orientar, dizer como tem que
inscrever na Lei Rouanet etc.
Até porque é um
direito do cidadão ser de esquerda ou ser de direita. A gente não pode decidir
para onde o projeto vai. Temos que buscar fazer uma política que abrace a
todos.
• O sertanejo, gênero musical mais popular
hoje no Brasil, ficou muito associado à direita. Vários grandes nomes do
sertanejo apoiaram Jair Bolsonaro na última eleição. Há políticas de apoio ao
sertanejo no seu ministério?
Menezes - Com certeza.
Democracia é isso: aceitar quem pensa diferente de você e ir para o embate sem
necessidade de matar ninguém. São todos bem-vindos aqui.
• Enquanto cantora, o avanço do sertanejo
a surpreende?
Menezes - O Brasil é
muito diverso. O sertanejo tem o lugar dele, assim com o funk, o hip hop, a axé
music.
Teve um momento que
foi do rock, do pop rock. Outro momento foi da Tropicália, outro momento, que é
agora, é do sertanejo. Depois vem o forró... Faz parte, isso é que é a beleza
do nosso povo.
Acho que os artistas
sertanejos têm uma qualidade maravilhosa de cantores. Aquela parte de arranjos
é uma coisa belíssima.
• Muitos músicos brasileiros já tiveram
grande projeção no exterior, assim como as novelas brasileiras. Mas hoje o
mercado mudou e é dominado pelos streamings, como Netflix, HBO etc. Como a
senhora vê a projeção internacional da cultura brasileira hoje?
Menezes - O consumo da
cultura, da indústria cinematográfica, da indústria do audiovisual, está muito
ligado aos streamings, então nós precisamos ter nossa regulamentação. Tivemos
agora que recuperar as cotas de tela [exigência de que TVs por assinatura ofertem
um percentual mínimo de produções nacionais].
Retroagimos um pouco
no conjunto no último governo, que não trabalhou muito bem essa parte. Nós
estamos retomando.
Estamos lançando para
a produção nacional, pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), R$ 180 milhões
para produtoras nacionais e mais R$ 320 milhões para colaborações entre
produtoras nacionais e internacionais para a produção de filmes.
• Tem algum país em que a senhora se
inspire em relação a políticas culturais?
Menezes - A Coreia do
Sul. Meu sobrinho está querendo aprender a falar coreano (risos). Isso foi uma
ação de governo. Eles incrementaram a política (cultural). Passaram cinco anos
investindo, criando escolas ligadas totalmente à produção cultural e à produção
artística.
Nós podemos pegar
experiências da Coreia e de outros lugares que fizeram esse dever de casa para
fortalecer as suas indústrias culturais. Os Estados Unidos fizeram isso em
algum momento, a França, também.
Vale a pena a gente
fazer esse exercício de fortalecer a indústria, buscar mais recursos, trazer
centros e escolas de tecnologias novas do audiovisual. Porque nós temos também
um público consumidor da nossa própria cultura.
• E a Coreia é um país pequeno…
Menezes - E o Brasil,
além de ser um país grande, tem referências positivas no exterior. Até pouco
tempo atrás, éramos o 13º país que mais influencia culturas de outros países [o
US News & World Report, veículo americano especializado em rankings, divulgou
neste ano um estudo que apresenta o Brasil como o 11º país com maior influência
cultural no mundo; a lista é encabeçada por Itália, França e EUA, e a Coreia do
Sul é o 7º].
• O que o Brasil ganha tendo projeção
cultural no exterior?
Menezes - Mostra a
força do país. Quando você tem um país que investe na sua cultura, que consome
a sua própria cultura, você dá um recado para quem está lá fora também.
Um país que não
reconhece a sua cultura fica alijado, fica submetido. Ele é colonizado pela
cultura alheia.
• Alguns Estados (Paraná, Mato Grosso do
Sul e Goiás) recentemente retiraram das escolas públicas o livro Avesso da
pele, de Jeferson Tenório, argumentando que a obra teria conteúdo impróprio, de
teor sexual, para crianças e adolescentes. Como encarou o episódio?
Menezes - É muito
ruim, é uma ação de censura. É preciso dizer isso: é uma censura. Foi um livro
escolhido pelo próprio Ministério da Educação, com participação da sociedade
civil. Não foi uma coisa feita aleatoriamente. E qual é a essência do livro?
Ele fala sobre o racismo.
Precisamos fortalecer
ainda a ideia de democracia no Brasil e entender que a luta racial é a luta de
todo o povo brasileiro.
• O Ministério da Cultura pode tentar
reverter a decisão desses Estados?
Menezes - A ligação
desse assunto especificamente é com o Ministério da Educação. O que nós podemos
fazer, por parte do Ministério da Cultura, é dizer que nós não apoiamos nenhum
tipo de discriminação, de preconceitos, desse tipo de censura com a cultura
brasileira.
• Nos últimos anos, exposições de temática
LGBT foram alvo de movimentos que, em muitos casos, forçaram o encerramento ou
cancelamento dessas exposições. Qual é a visão do ministério sobre o assunto?
Menezes - Somos um
país que ainda está atravessando a necessidade de fortalecer a democracia.
Nesse sentido, a gente não pode nunca aceitar ações que venham a constranger
pessoas em seu direito democrático, de pensamento e de expressão.
Nós estamos fazendo
políticas com cotas para todas as linguagens culturais. Estamos contemplando os
quilombolas, os LGBTs, a cultura cigana, as mulheres.
E quando você coloca a
cota, você não está colocando um limite, mas dizendo que são cidadãos
brasileiros que merecem também a sua participação em relação ao fomento.
• Como a senhora vê o avanço do mercado
cultural religioso? A música gospel hoje é muito forte, assim como séries
televisivas sobre a Bíblia, e o mercado de livros religiosos.
Menezes - A humanidade
tem essas dinâmicas. Vejo isso da mesma maneira que vejo a questão dos estilos
musicais. Hoje existe um grande público que consome a cultura gospel. Então,
dentro do Ministério da Cultura, nós acolhemos essas manifestações culturais. A
gente não está aqui para brigar.
• Nas periferias, as igrejas acabaram
suprindo a demanda por bens culturais? Por exemplo, a demanda por música, pelo
ensino de música, por espetáculos - coisas que as igrejas oferecem. Isso se
deveu em alguma medida à ausência de teatros, cinemas e outras ofertas
culturais nesses locais?
Menezes - As igrejas
encontram espaço nesses vazios culturais, pode-se dizer. Vazios de equipamentos
também.
Nós estamos agora
atendendo um apelo que vem da terceira Conferência Nacional de Cultura, que
aconteceu dez anos atrás. De trazer equipamentos culturais em cidades que nunca
os tiveram. Estamos trazendo de volta os CEUs da Cultura [equipamentos
culturais comunitários], recuperando obras que estavam paradas. E fazendo essa
distribuição em todo o Brasil.
Teremos quase 200 CEUs
da Cultura em todos os Estados brasileiros a cada ano até 2027. São R$ 300
milhões para a construção de equipamentos culturais. Estamos também resgatando
os cinemas, as bibliotecas. Então tudo isso preenche o ambiente, dá oportunidade
para que as pessoas entrem em contato com uma diversidade maior de cultura.
• No dia em que esta entrevista acontece
(18/03), houve uma reunião do presidente Lula com todos os ministros - uma
reunião que ocorreu alguns dias depois da divulgação de pesquisas que mostraram
uma piora na popularidade do governo. Qual é a sua leitura do momento?
Menezes - É um governo
que tem entregado, um governo com entregas maiores do que muitos outros anos, e
não só comparando com o governo passado
É difícil você ser um
governo de esquerda e ter um olhar social num país que não está acostumado a
colocar o pobre dentro do orçamento.
Agora, existe a
questão da disputa no ambiente digital. Mas o que vai realmente mudar sua vida?
O que está no ambiente digital ou o que está aqui na sua materialidade?
• O governo está perdendo a batalha no
ambiente digital?
Menezes - O governo
está aprendendo mais. Acho que está melhorando inclusive, porque eu acho que já
esteve pior nesse sentido.
Mas não temos como
pensar negativamente no que está sendo produzido pelo governo. E a gente não
está desistindo. Temos mais três anos de governo e estamos com vontade desse
enfrentamento.
• Qual o balanço que a senhora faz do
período em que está no cargo?
Menezes - Nós estamos
com 20% menos de servidores do que 2016, mas, no entanto, com entregas muito
mais volumosas.
Primeiro teve a
entrega, que era já uma obrigação, de executar a Lei Paulo Gustavo [aprovada em
2022 para amortecer impactos da pandemia no setor cultural, destinando R$ 3,86
bilhões à área até o fim de 2024]. Nós conseguimos uma aderência à lei em 98% das
cidades 100% dos Estados.
Também lançamos uma
instrução normativa nova para a Lei Rouanet [que concede isenções de impostos a
empresas que apoiem iniciativas culturais; as novas regras, segundo o
ministério, buscam facilitar a adesão à lei e dar mais transparência ao
processo].
E estamos querendo o
nosso Marco do Fomento, que está agora para ser aprovado no Congresso [o marco
cria diretrizes para políticas culturais da União, Estados e municípios].
Também entregamos a
Lei Aldir Blanc [aprovada em 2020, prevê R$ 3 bilhões de investimentos no setor
também para atenuar impactos da pandemia].
É uma lei fantástica.
É a primeira vez que nós vamos ter a oportunidade de, durante cinco anos,
irrigar o setor cultural diretamente do governo federal para os Estados e
municípios.
• Numa cerimônia recente, a senhora
agradeceu ao presidente Lula pela nomeação de ministras mulheres, mas disse que
vocês querem a paridade entre homens e mulheres (hoje as mulheres estão no
comando de 9 dos 37 ministérios, 24% do total). A senhora se frustra com a
quantidade de ministras no governo?
Menezes - O governo do
presidente Lula é o que até hoje está nos dando mais essa possibilidade. Ainda
é pouco e precisamos pleitear mais. A gente quer chegar à paridade. A gente
sabe que é uma construção, mas certamente a pauta da mulher é uma pauta importante
para o governo, e cada vez mais nós vamos falar sobre isso.
Sobre a questão da
equiparação de salários (entre homens e mulheres no mercado de trabalho): é
obrigação de todas nós mulheres que estamos participando do governo, que
estamos em lugares de comando, chamar isso como seriedade, porque merecemos
essa equiparação. E merecemos a equiparação de possibilidades, de estar em
lugares de comando.
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário